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Cadernos de Arquitetura e Urbanismo CAU 28 Flipbook PDF

PUC Minas


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Ana Carolina Dias Diório

ISSN 1413-2095 versão impressa

Aristóteles de Siqueira Campos Cantalice II

ISSN 2316-1752

Cecilia Ribeiro Pereira

versão digital

Daniela Abritta Cota Dirceu Piccinato Junior Gabrielle Astier de Villatte Wheatley Okretic Guilherme Fernandes Rolla Guimarães Ivone Salgado Juliana Cardoso Nery Laura Machado de Mello Bueno Lygia Prota Mateus de Oliveira Castilho Naiane Loureiro dos Santos Rodrigo Espinha Baeta

V. 21 N. 28 - 1º sem. 2014

Apoio:

Cadernos de Arquitetura e Urbanismo V. 21 N. 28 - 1º sem. 2014

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Grão-Chanceler • Dom Walmor Oliveira de Azevedo Reitor • Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Vice-Reitora • Patrícia Bernardes Assessor Especial da Reitoria • José Tarcísio Amorim Chefe de Gabinete do Reitor • Paulo Roberto de Sousa Pró-reitorias e Secretarias • Extensão - Wanderley Chieppe Felippe; Gestão Financeira - Paulo Sérgio Gontijo do Carmo; Graduação - Maria Inês Martins; Logística e Infraestrutura - Rômulo Albertini Rigueira; Pesquisa e de Pós-graduação - João Francisco de Abreu; Planejamento e Desenvolvimento Institucional - Carlos Barreto Ribas; Recursos Humanos - Sérgio Silveira martins; Arcos - Jorge Sundermann; Barreiro - Renato Moreira Hadad; Betim - Eugênio Batista Leite; Contagem - Robson dos Santos Marques; Poços de Caldas - Iran Calixto Abrão; São Gabriel - Alexandre Rezende Guimarães; Serro - Eustáquio Afonso Araújo; Guanhães - Ronaldo Rajão Santiago

Departamento de Arquitetura e Urbanismo Diretor • Mário Lucio Pereira Junior Colegiado • Antonio Grillo, José Martins dos Santos Neto, Maria Elisa Baptista

Cadernos de Arquitetura e Urbanismo Editor • Antonio Grillo Assistente editorial • Bruna Marinho Sampaio Conselho Editorial Científico • Jeanne Marie Ferreira Freitas (PUC Minas - Presidente), Aurélio Muzzarelli (Università di Bologna / Itália), Brian Lawson (The University of Sheffield / Inglaterra), Carlos Antônio Leite Brandão (UFMG), Cláudia Damasceno (Université de Paris / França), Cláudio Listher Marques Bahia (PUC Minas), Fernando Luiz Camargos Lara (University of Michigan / EUA), Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG), Marcio Cotrim Cunha (UFPB), Paulo Ormindo (UFBA), Ricardo Moretti (PUC Campinas), Silke Kapp (UFMG), Sônia Marques (UFRN). Projeto gráfico • Antonio Grillo / Adílson Cruz Júnior / José Augusto Barros Diagramação • José Augusto Barros – www.be.net/gutobarros Revisão • Alessandro Faleiro Marques Contato • E-mail: [email protected] – Tel. / Fax: (0xx31) 3319 4264 – Endereço: Cadernos de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas • PUC Minas – Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Av. Dom José Gaspar 500 Prédio 47 sala 227 - Bairro Coração Eucarístico – 30535-901 – Belo Horizonte – MG – Minas Gerais – Brasil Doações e permutas • Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Biblioteca Padre Alberto Antoniazzi / Setor de Periódicos – Av. Dom José Gaspar, 500 Prédio 26 – Bairro Coração Eucarístico – Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil – Tel/Fax: (0xx31)3319 4175 – e-mail: [email protected] Tiragem • 500 exemplares

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Cadernos de Arquitetura e Urbanismo. – v.1, n.1 (abr.. 1993- ). – Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 1993- . v. Semestral ISSN 1413-2095 – versão impressa ISSN 2316-1752 - versão eletrônica em 2003 1. Arquitetura - Periódicos. 2. Planejamento urbano – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. CDU: 72(05)

Cadernos de Arquitetura e Urbanismo volume 21, número 28 1o semestre de 2014 ISSN 1413-2095 (versão impressa) ISSN 2316-1752 (versão eletrônica)

Apoio:

Cadernos de Arquitetura e Urbanismo Versão digital http://periodicos.pucminas.br/index.php/arquiteturaeurbanismo Produção Os Cadernos de Arquitetura e Urbanismo são produzidos, desde 1993, pelo Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas. O periódico é de veiculação semestral e conta com edições impressa e digital. Na versão digital, as imagens são coloridas. Linha editorial Os Cadernos dedicam-se à divulgação de trabalhos técnico-científicos relacionados à área de Arquitetura e Urbanismo, especialmente os vinculados às atividades de ensino, pesquisa, pós-graduação e extensão. O periódico adota uma política de qualidade e diversidade temática. Publica artigos resultantes de projetos de pesquisa, decorrentes de dissertações de mestrado e teses de doutorado, relacionados ao ensino da Arquitetura e Urbanismo, artigos de revisão, resenhas de livros e entrevistas. Esporadicamente, publica números temáticos, organizados com base em eventos, atividades específicas de ensino, extensão e pesquisa, ou temas comuns aos trabalhos aceitos. Estrutura editorial Todo o processo editorial é gerenciado por meio do sistema SEER, no portal dos Cadernos. A seleção de trabalhos observa criteriosa tramitação, envolvendo ampla chamada semestral de artigos, avaliação às cegas por um corpo de pareceristas altamente qualificado, com submissão a, pelo menos, dois pareceristas, retorno aos autores, revisão de normalização e de linguagem, e verificação final pelos autores. Público-alvo O público caracteriza-se por profissionais e estudantes da área de Arquitetura e Urbanismo e também, dada a característica multidisciplinar desse campo do saber, por aqueles de áreas correlatas, como Geografia, História, Sociologia, Filosofia, Engenharia Civil, entre outras. Indexadores O periódico está indexado nas bases: ICAP – Indexação Compartilhada de Artigos de Periódicos (http:// www.pergamum.pucpr.br/icap/index.php) e Latindex – Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal (http://www.latindex.unam.mx/). Periódico cadastrado no CCN (Catálogo Coletivo Nacional), sob o nº 091873-3. Avaliação O periódico é avaliado no Qualis da Capes com o conceito B2 na área de Arquitetura e Urbanismo, e entre B1 e B3 em outras cinco áreas de avaliação: Geografia, História, Sociologia, Planejamento Urbano e Regional / Demografia e Engenharias I. Para atualização, verificar o site da Capes: http://qualis.capes.gov.br/webqualis. Distribuição A distribuição dos números impressos é feita pela Biblioteca da PUC Minas, por meio de doações e permutas, garantindo sua circulação em 186 instituições, sendo 38 no exterior, em 15 países. Os acessos via portal eletrônico são monitorados pelo Google Analytics, que registram milhares de acessos mensais, provenientes de dezenas de países de todos os continentes. Apoio Edição financiada pela Fapemig no Edital 05/2014. Submissão de trabalhos / normas de apresentação A submissão de trabalhos deverá ser feita por meio do Portal Eletrônico dos Cadernos, em http://periodicos.pucminas.br/index.php/arquiteturaeurbanismo, onde estão disponíveis, também em inglês e espanhol, as normas para a apresentação de trabalhos.

SUMÁRIO

Apresentação.......................................................................7 Antonio Grillo

Os movimentos sociais e a reforma do estádio “Mineirão” para Copa do Mundo de 2014, na cidade de Belo Horizonte................................................................9 Naiane Loureiro dos Santos

The social movements and the reform of the “Mineirão” stadium of World Cup 2014 in Belo Horizonte Los movimientos sociales y la reforma del estadio “Mineirão” para la Copa del Mundo de 2014, en la ciudad de Belo Horizonte

A compreensão do processo das remoções em Campinas-SP: o olhar da população diretamente envolvida............................................................................31 Gabrielle Astier de Villatte Wheatley Okretic Laura Machado de Mello Bueno

The understanding of the removal process in Campinas - SP: the affected population’s view La comprensión del proceso de traslado de residentes en zonas de riesgos en Campinas-SP: la visión de la población directamente involucrada

Gerenciamento dos resíduos sólidos da construção civil.............................................................47 Lygia Prota

Management of solid waste in the civil construction Gestión de residuos sólidos en la construcción civil

Cidade intermediária e rede urbana: o caso de São João del-Rei (MG).....................................67 Daniela Abritta Cota Ana Carolina Dias Diório

Intermediate city and urban network: the case of São João delRei, Minas Gerais State Ciudad intermedia y red urbana: el caso de São João del-Rei (MG)

Robert Smith, diálogos e pesquisas no Brasil................87 Cecilia Ribeiro

Robert Smith, dialogues and research in Brazil Robert Smith, diálogos y investigaciones en Brasil

Tendências gerais dos status urbanos no Nordeste paulista...................................................................101 Dirceu Piccinato Junior Ivone Salgado

General status of urban trends in Northeast São Paulo Tendencias generales de los status urbanos en el Noreste de São Paulo

Conflitos entre a Arqueologia e a Arquitetura: o Templo Mayor na Cidade do México e o Pátio Franciscano em Olinda............................................... 121 Juliana Cardoso Nery Rodrigo Espinha Baeta

Conflicts between archeological excavations and the urban heritage: the Templo Mayor in Mexico City and the São Francisco Square in Olinda Los conflictos entre Arqueología y Arquitectura: el Templo Mayor en la Ciudad de México y el Patio Franciscano en Olinda

Existe algo atrás da porta: o brutalismo em Pernambuco............................................. 145 Aristóteles de Siqueira Campos Cantalice II

There is something behind the door: the brutalism in Pernambuco Hay algo detrás de la puerta: el brutalismo en Pernambuco

TRABALHOS ACADÊMICOS

Qualificação do entorno do viaduto Santa Tereza ....... 169 mATEUS DE OLIVEIRA cASTILHO

Parque linear Vale do Arrudas ........................................... 187 Guilherme Fernandes Rolla Guimarães

Normas para apresentação de trabalhos......................200 Norms for submission of papers Directrices para presentación de documentos

APRESENTAÇÃO

Este número dos Cadernos de Arquitetura e Urbanismo apresenta uma série de artigos de temática predominantemente urbana, sobre a qual se lançam múltiplos olhares, críticos, ampliando e enriquecendo a discussão sobre as cidades e sobre os horizontes da profissão de arquiteto e urbanista. Os dois primeiros trabalhos refletem a ênfase na participação da população nos processos de gestão das cidades após junho de 2013: Naiane Loureiro dos Santos discute a participação dos movimentos sociais no processo de reforma do Mineirão, e Gabrielle Astier Okretic e Laura Machado de Mello Bueno discutem as remoções em Campinas, na implantação do programa Minha Casa Minha Vida. O trabalho de Lygia Prota investe em outro tema de vital importância na cidade contemporânea: o gerenciamento de resíduos sólidos da construção civil. Na sequência, Daniela Abritta Cota e Ana Carolina Dias Diório desenvolvem o tema da cidade intermédia, analisando as relações que o Município de São João del-Rei estabelece com as cidades da região. O texto sobre a interlocução de Robert Smith com o IPHAN, de Cecília Ribeiro, abre uma sequência de artigos com olhares sobre a história de nossas cidades. Dirceu Piccinato Junior e Ivone Salgado discutem os fatores que determinaram a formação urbana de cidades do Nordeste paulista. Juliana Cardoso Nery e Rodrigo Espinha Baeta polemizam sobre os conflitos gerados pelos trabalhos arqueológicos em contextos urbanos históricos, tomando como exemplos as cidades de Olinda e do México. E Aristóteles de Siqueira Campos Cantalice II ressalta a relevância do brutalismo na arquitetura pernambucana entre 1960 e 1980. Ao final, dando continuidade à nossa sessão dedicada a trabalhos acadêmicos, publicamos dois trabalhos finais de graduação de 2011, indicados para o Ópera Prima de 2013. Ambos lidam, com muito fôlego e qualidade, com a revitalização de áreas cruciais da cidade de Belo Horizonte. O de Mateus Castilho investe na qualificação do entorno do Viaduto Santa Tereza, propondo, como elemento-chave do projeto, um edifício multifuncional junto à passagem. E o de Guilherme Fernandes Rolla Guimarães desenvolve um extenso projeto ao longo do Ribeirão Arrudas, cruzando boa parte da Região Leste da cidade. Agradecemos a todos que contribuíram para mais este número e desejamos uma boa leitura. Antonio Grillo1 Editor

1. Arquiteto, doutor em Teoria e História da Arquitetura, professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas.

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1. Mestre e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC Minas, graduada e especialista em Filosofia, analista da Comissão Permanente de Avaliação da PUC Minas e professora da Faculdade UNA em Belo Horizonte e Betim.

DOI: 10.5752/P.2316-1752.2014v21n28p8

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Os movimentos sociais e a reforma do estádio “Mineirão” para Copa do Mundo de 2014, na cidade de Belo Horizonte The social movements and the reform of the “Mineirão” stadium of World Cup 2014 in Belo Horizonte Los movimientos sociales y la reforma del estadio “Mineirão” para la Copa del Mundo de 2014, en la ciudad de Belo Horizonte

Naiane Loureiro dos Santos1 Resumo Este artigo tem como objetivo refletir acerca da trajetória dos movimentos sociais diante dos processos decisórios instituídos pelo Poder Público, no que se refere às intervenções necessárias para realização da Copa do Mundo de 2014, na cidade de Belo Horizonte. Com base em um estudo de caso sobre a reforma do estádio “Mineirão”, buscou-se analisar as ações estratégicas desenvolvidas por esses movimentos na exigibilidade de direitos, bem como avaliar os avanços e desafios relacionados à democracia participativa, à gestão pública de governo e a participação popular nas arenas deliberativas no atual o contexto sociopolítico-econômico em que se encontra nosso País. Palavras-chave: Movimentos Sociais. Copa do Mundo de 2014. Democracia participativa.

Abstract This article aims to reflect on the trajectory of social movements against decision processes instituted by the government in regard to necessary for organization the World Cup 2014 in the city of Belo Horizonte. From a case study on the reform of “Mineirão” stadium, we sought to analyze the strategic actions developed by these movements in the enforceability of rights, as well as evaluating the progress and challenges related to participatory democracy, public management and public participation in decisional arenas in the current socio-political and economic context that is our country. Keywords: Social Movements. World Cup 2014. Participatory democracy.

Resumen Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la trayectoria de los movimientos sociales en contra de los procesos de toma de decisiones iniciados por el gobierno en lo que respecta al intervenciones necesario para la realización de la Copa del Mundo de 2014 en la ciudad de Belo Horizonte. De un estudio de caso sobre la reforma de la etapa “Mineirão”, hemos tratado de analizar las acciones estratégicas desarrolladas por estos movimientos en la exigibilidad de los derechos, así como la evaluación de los avances y desafíos relacionados con la democracia participativa, la gestión pública y gobierno la participación popular en las arenas deliberativas en el contexto socio-político y económico actual, que es nuestro país. Palabras claves: Movimientos sociales. Copa del Mundo 2014. Democracia participativa.

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Apresentação Com base na concepção de que a efetividade da dinâmica democrática depende das condições de exercício efetivo dos direitos de cidadania, de arenas públicas de interação entre governo e sociedade civil e do grau de participação cívica do País, propõe-se, neste artigo, uma reflexão acerca da trajetória dos movimentos sociais diante dos processos decisórios instituídos pelo governo, no que se refere às intervenções necessárias para realização da Copa do Mundo de 2014, na cidade de Belo Horizonte. Em especial, objetiva-se realizar um estudo de caso referente a uma obra bastante emblemática, a reforma do Estádio Governador Magalhães Pinto, chamado popularmente de “Mineirão”.2 Tendo em vista as dimensões da governança participativa no contexto brasileiro, julga-se necessário discutir, mesmo que de forma simplista, o desenvolvimento da democracia brasileira com base na relevância da participação popular nos processos de tomada de decisão instituídos pelo Poder Público para realização da Copa de 2014, objetivando aprofundar o tema em questão e propiciar uma discussão acerca dos mecanismos que vêm sendo institucionalizados pelo Poder Público para efetivar a democracia participativa e consolidar os espaços de articulação autônoma da sociedade.

2. O Estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido como Mineirão, é um estádio de futebol do Brasil, tombado pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte.

Há registro de várias evidências sobre a ausência de democracia nos processos que envolvem a estruturação da cidade de Belo Horizonte para a realização do megaevento em questão, o que nos chama a atenção. Casos como a carência de projetos básicos e sem detalhamento, a urgência para a realização das obras, em razão de compromissos firmados com a FIFA, negociações e diálogos realizados com empresas privadas, como da construção civil e do mercado imobiliário, enquanto é negado à população (inclusive à atingida diretamente pelas decisões tomadas) o direito à informação e participação, recusa no estabelecimento de processos de diálogo horizontal com grupos sociais e comunidades ameaçados, a dificuldade de acesso ao apoio jurídico para populações atingidas, levando-as a procurarem autonomamente ajuda para se informarem sobre seus direitos, o fornecimento de informações contraditórias quanto às formas de ter direitos assegurados nos processos de realização das decisões, a falta de consideração quanto às particularidades socioeconômicas e culturais dos grupos atingidos, e a ausência de estudos de impacto de vizinhança e de impacto ambiental mostram a necessidade de análise sobre o desenvolvimento da democracia brasileira. Para refletir sobre esse tema, escolheu-se trabalhar com autores como Santos Junior, Avritzer e Dahl, que discutem modelos de democracia contemporânea e participação popular no cenário brasileiro. Evidencia-se, dessa forma, a nossa preocupação com o impacto na democracia brasileira que esse megaevento pode causar, uma vez que se presencia a deslegitimação e esvaziamento de canais democráticos existentes de participação popular, e, portanto, de interesse público. A existência de uma forte institucionalização de instâncias de governança públicas e, ao mesmo tempo, um baixo grau

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de participação efetiva dos representantes da sociedade civil nesses espaços institucionais também nos chamaram muito a atenção. Observa-se uma diversidade de organismos instituídos em nível federal, estadual e municipal, tais como grupos gestores, comitês, câmaras temáticas e secretarias especiais da Copa. Esses organismos e agências, algumas das quais sob a forma de empresa, constituem um governo excepcional, paralelo, cujas decisões estão isentas de qualquer controle social. Os mecanismos de gestão apresentados parecem seguir o modelo do empresariamento urbano, com ausência de participação social. Tal modelo consiste, nas palavras de Harvey (1996), fazer da cidade ambiente construído para produzir o desenvolver de grandes investimentos e, ou, foco de atenção de investidores para que possam ocorrer novas contribuições econômicas devido às suas características. Além disso, observam-se ainda concessões excessivas, alterações legislativas, medidas administrativas de caráter excepcional e desconsideração dos processos de participação e controle social, inclusive previstos em legislação, como a realização de audiências públicas.3 Informações sobre os processos de preparação para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 não são apenas negadas à população em geral, mas mantidas secretas até mesmo para os órgãos de controle do próprio Estado, como o Ministério Público. O que nos leva a pensar que as intervenções urbanísticas, motivadas por interesses privados, implicam uma profunda reestruturação do território, resultando em remoções de moradores, expulsão de trabalhadores informais, interdições de mobilidade ou intensa militarização, sem que exista qualquer forma de consulta prévia às comunidades afetadas. Nesse sentido, buscou-se compreender de que forma os movimentos sociais de Belo Horizonte estão contribuindo na exigibilidade da ampliação de mecanismos de participação popular nas arenas deliberativas instituídas, bem como nas negociações frente às decisões governamentais que impactaram a vida de pessoas mediante as intervenções previstas para concretização da Copa de 2014, em Belo Horizonte. Para esta reflexão, contou-se com dados da pesquisa nacional “Megaeventos e Metropolização”,4 realizada pela Rede Nacional Observatório das Metrópoles5 e financiada pelo Finep6(2010-2013). Essa pesquisa tem como objetivo elaborar e aplicar instrumentos de monitoramento dos impactos relacionados à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016 na estrutura urbano-metropolitana das metrópoles onde serão realizados os megaeventos, para além dos tradicionais instrumentos de mensuração econômica, correntemente utilizados. Propusemos enfatizar o trabalho que vem sendo realizado pelo Comitê dos Atingidos pela Copa (Copac), em especial o de Belo Horizonte, uma vez que esse movimento tem sido de fundamental importância na luta pela transparência e controle social dos gastos públicos, contra a corrupção e na exigência de canais mais democráticos de governo. O Copac nacional é organizado por pessoas de diversos setores da sociedade que buscam discutir e entender os processos ativados para a

3. A audiência pública é um instrumento previsto na Constituição de 1988 e que prevê a participação popular. Seu objetivo é colher subsídios e informações junto à sociedade, bem como oferecer aos interessados a oportunidade de encaminhamento de seus pleitos, opiniões e sugestões relativas ao assunto em questão.

4. Este projeto vem sendo coordenado nacionalmente pelo Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Junior, regionalmente pelo doutorando desse programa, Hélio Rodrigues, juntamente com a Prof.ª Dr.ª Luciana Teixeira Andrade, coordenadora regional do Núcleo Observatório das Metrópoles em Belo Horizonte. 5. Essa rede de pesquisa é coordenada nacionalmente pelo Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro, do Instituto de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR UFRJ). 6. Fundo Nacional de Incentivo à Pesquisa.

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realização da Copa do Mundo de 2014, atuando nas cidades-sede7 desse megaevento. Tal movimento opera, desde sua formação, em 2010, na concretização das principais obras realizadas na cidade de Belo Horizonte. Para a reflexão sobre movimentos sociais, optou-se por trabalhar com Gohn, que vem estudando os movimentos sociais, no caso brasileiro, desde a década de 1980.

7. Outros comitês populares foram organizados nas cidades-sede: Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

A escolha da análise envolvendo o estádio de Belo Horizonte, conhecido popularmente como “Mineirão”, deu-se por ter sido a primeira obra a ser concluída, por ser a exigência de número um da FIFA, ou seja, pré-requisito para realização da Copa no Brasil, juntamente com as demais obras envolvendo os outros estádios brasileiros, e por se tratar de um local de extrema consideração pelos belo-horizontinos, motivo de orgulho do futebol mineiro. A seguir, serão abordados o histórico da obra, as principais intervenções dos movimentos sociais no que tange aos impactos da reforma do estádio e analisados os resultados dessas ações; também haverá uma reflexão sobre os desafios da governança democrática e da participação popular no Brasil. Por fim, nas considerações finais, uma análise suscita dos primeiros, pode-se dizer, legados que esse megaevento, mesmo antes de se realizar, já tem suscitado.

Os impactos da reforma do estádio“Mineirão” para a cidade de Belo Horizonte O megaevento da Copa do Mundo de 2014 no Brasil vem sendo planejado, mais intensamente, desde 2009, quando se definiram as 12 cidades-sede que abrigarão os jogos da competição, entre elas Belo Horizonte-MG. A escolha desta como uma das cidades-sede evidenciou um gigantesco desafio para o Município, desencadeando um trabalho de planejamento e execução sem precedentes, com impactos que iriam muito além do acontecimento esportivo. Nesse sentido, vale recordar que Belo Horizonte tem atualmente 2.375.444 habitantes, de acordo com os dados do IBGE do Censo Demográfico de 2010, sendo a sexta cidade mais populosa do País. Hoje a cidade tem o quinto maior PIB entre os Municípios brasileiros, representando 1,37% do total das riquezas produzidas no País. Belo Horizonte tem, tradicionalmente, uma história abraçada por lutas urbanas, desde a instalação da cidade, em 1897. As manifestações por moradia digna, situação de despejo, questões envolvendo operários e em relação ao patrimônio da cidade já são lutas clássicas do cidadão belo-horizontino. No entanto, o cenário atual do País fez emergir, principalmente em grandes metrópoles, como é o caso de Belo Horizonte, um movimento reagente ao modelo de gestão empreendedorista urbano, que vem sendo adotado pelos governos na atualidade, que privilegia as parcerias público-privadas em detrimento à governança compartilhada de espaços de participação popular. Nesse sentido, os movimentos sociais da atualidade têm tido

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um papel fundamental na sociedade civil em geral em tentar alertar quanto aos processos que envolvem a realização da Copa do Mundo de 2014 na cidade. As principais obras previstas para esta cidade foram: reforma do Estádio do Mineirão, custo inicial 695 milhões de reais; reforma do Aeroporto de Confins, custo de 508,654 milhões de reais; e as obras de mobilidade urbana (BRT das avenidas Antônio Carlos, Pedro I e Pedro II), no valor de 588,2 milhões de reais. Cogita-se ainda a revitalização da Lagoa da Pampulha, porém não se trata de uma obra prevista na matriz das responsabilidades do Governo Federal, mas sim de uma obra do Governo do Município para a Copa de 2014. O maior desafio para a cidade, em termos de cumprimento da Matriz de Responsabilidade, documento no qual constam dos projetos e seus respectivos custos e trata das áreas prioritárias de infraestrutura das 12 cidades que receberão os jogos da Copa do Mundo de 2014, tem sido a rede hoteleira, pois há uma insuficiência de hotéis em Belo Horizonte para sediar um evento do porte da Copa do Mundo, e os projetos existentes preveem a construção de hotel na orla da Lagoa da Pampulha, alterando uma legislação urbana, a qual proíbe a construção vertical de prédios na faixa de 700 metros da lagoa. Criou-se, assim, um arranjo institucional, com novas secretarias e comitês organizacionais nas esferas estadual e municipal. O estudo realizado pela pesquisa “Megaeventos e Metropolização” nos mostra a presença de uma estrutura disposta em cada uma das três esferas de poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Observa-se que, embora a representação dos poderes esteja bem distribuída, ao que parece, o Executivo vem detendo o maior peso nas decisões, pois, ao acompanhar a atuação desses órgãos na mídia, nota-se que a Secretaria de Estado Extraordinária da Copa – Governo de Minas Gerais (Secopa), é o órgão que controla toda a parte executiva do processo e que tem atuado de forma mais visível na Cidade. O Ministério Público vem promovendo audiências públicas com o objetivo de debater e levantar os impactos negativos da realização da Copa no Município. A Controladoria-Geral do Estado vem trabalhando mais efetivamente com mecanismos de transparência do orçamento público e divulgação dos dados nos portais da Copa e do Governo do Estado e da Prefeitura de Belo Horizonte, também participa das reuniões do Comitê dos Jogos Limpos, uma iniciativa do Instituto Ethos.8 A Assembleia Legislativa de Minas Gerais também vem promovendo audiências públicas com representantes dos movimentos, assim como a Câmara Municipal, para discutir os impactos no Município, bem como para os atingidos diretamente pela organização da Copa, e os legados que esse megaevento deixará para a cidade. O Tribunal de Contas do Estado organizou uma estrutura para fiscalizar os gastos da Copa. O Tribunal da Justiça vai atender ao público em suas demandas envolvendo direitos do consumidor, direitos do torcedor, direitos da criança e do adolescente, etc., relacionadas à Copa, principalmente no período de realização dos jogos. Optou-se por trabalhar com os impactos ocasionados pela reforma do estádio Mineirão por se tratar de uma obra fun-

8 Empresa de responsabilidade social que consiste numa organização sem fins lucrativos, caracterizada como OSCIP. O projeto “Jogos Limpos Dentro e Fora dos Estádios” busca acordos com empresas, compromissos de transparência entre governantes e oferecerá ferramentas para ações coletivas de vigilância, monitoramento e controle social sobre os investimentos destinados para a Copa do Mundo de 2014, para as Olimpíadas e as Paraolimpíadas de 2016 (Disponível em: ).

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damental, sendo a exigência de número um da FIFA para realização dos jogos da Copa de 2014 e, portanto, a primeira a se iniciar e se consolidar. Porém vários são os motivos de protestos dos movimentos sociais na cidade de Belo Horizonte: remoções forçadas de famílias e sem oferecimento de soluções dignas; perseguição à população de rua e artesãos nômades; suspensão das feiras do entorno Mineirão e da Feira do Mineirinho9 durante dois anos, prejudicando 150 famílias que ficaram sem sustento; obras viárias sem planejamento, demoradas e que não resolvem os problemas da cidade; duplicação das avenidas Pedro I e Antônio Carlos e destruição do patrimônio histórico-ambiental; contrato com a Minas Arena,10 privatizando um espaço público; projetos de lei incentivando a especulação imobiliária e verticalização da cidade; licitações fraudulentas; ausência de participação popular na tomada de decisão; divulgação de informações incompletas e desatualizadas à população, entre outros. Mesmo com poucos resultados efetivos, uma vez que as obras da Copa do Mundo de 2014 seguiram à revelia dos preceitos democráticos, observa-se, contudo, que a participação popular, mediante atuações dos movimentos sociais, vem revelando uma estratégia da sociedade civil na exigibilidade dos seus direitos e na luta pela democracia no País. O que nos leva a acreditar nisso foi a onda de manifestação do País, em junho de 2013, mostrando uma insatisfação da sociedade civil em geral quanto à gestão pública do País.

9. Localizada na área externa do Ginásio Mineirinho, no coração da Pampulha, a Feira Mineira de Arte e Artesanato é um evento que divulga o artesanato, a arte e a cultura para a população, e proporciona visibilidade para artesãos e artistas da região. 10. A Minas Arena é a SPE (sociedade de propósito específico) responsável pela execução das obras de reforma e modernização do Mineirão, por meio de contrato de parceria público-privada (PPP) firmado com o Governo do Estado de Minas Gerais e gerenciado pela Secretaria Extraordinária da Copa do Mundo (Secopa).

Percorrendo um rápido histórico da obra que envolveu a reforma do chamado “Mineirão”, no dia 2 de fevereiro de 2009, o governo do Estado de Minas Gerais apresentou o projeto de modernização do estádio para atender às exigências da FIFA na realização do evento da Copa de 2014 em Belo Horizonte. Em 31 de maio de 2009, a FIFA anunciou as 12 cidades-sede da Copa do Mundo de 2014, confirmando a capital mineira como uma delas. Em 2010, o estádio foi fechado para as reformas. As empresas responsáveis pela reforma são Construcap, Egesa e Hap. O valor previsto na primeira matriz orçamentária é de 426,46 milhões de reais (somente área interna); valor total do contrato da PPP: R$ 677.353.021,85 (engloba os investimentos previstos para a área interna e 228,10 milhões de reais para a área externa). Porém se sabe que esse valor precisou ser revisto várias vezes. O QUADRO 1 mostra o escopo da obra. Já no início de sua execução, a obra trouxe conflitos em relação à expulsão de 65 famílias que ocupavam a Vila Recanto UFMG, em área de projeto para alça de acesso ao Mineirão, em lote privado e abandonado desde os anos 1990. Segundo o dossiê “Megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil” produzido pelo Copac (2011), tal vila foi alvo de várias tentativas de evicção frustradas ao longo dos anos. Porém, em virtude da realização da Copa de 2014, a maioria dessas famílias foi expulsa e recebeu uma indenização pelo valor construído do imóvel (muito abaixo do que esperavam) e mudou-se para áreas periféricas da Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde pôde arcar com os custos da nova moradia, mas não consegue inserir-se na rede de serviços urbanos, já superlotada (COPAC, 2011, p. 26).

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QUADRO 1 – Escopo das obras para reforma do “Mineirão” Belo Horizonte Obra

Custo previsto

Valor licitado e valor empréstimo

Contratado e tipo de contrato

Escopo da obra

Andamento

Estádio do Mineirão

R$ 695.000.000,00 sendo R$ 17.800.000,00 (projeto - Estado); R$ 11.800.000,00 (obras - Estado); R$ 260.600.000,00 (obras - BNDES); R$ 139.400.000,00 (entorno BNDES); R$ 254.50.000,00 (obras - outros); e R$ 10.900.000,00

Total contratado chega a mais de R$ 800 milhôes, sendo: R$ 17.800.000.00 (projeto básico); R$ 8.245.991,12 (reforço estrutural); R$ 2.957.900,81 (demolições e escavações) R$ 771.739.248,13 (Concessão administrativa)

Retech Serviços Especiais de Engenharia Ltda. (reforço estrutural); Detronic Demosntes e Terraplenagem S;A (demolição e escavação); Minas Arena - Gestão de Instalações Esportivas S.S - Egesa, HAp e Construcap (concessão - 27 anos)

Projeto e obras de modernização, incluindo reforço estrutural, construção de cobertura adicional na arquibancada, rebaixamento do gramado, vestiários, novas arquibancadas, lanchonete, lojas, obras de melhoria do entorno com estacionamentos e intervenções na esplanada. Pretende obter certificação Leed (sustentabilidade). O estádio terá 64,5 mil lugares.

Realizado: Projeto básico; reforço estrutural; rebaixamento do gramado

• 1a. etapa - reforço estrutural dos pilares • 2a. etapa - demolição da geral

Contratado: Cobertura adicional, obras no entorno Licitada a outorga de CONCESSÃO ADMINISTRATIVA para operação e manutenção do Complexo do Mineirão, precedidas de Obras de reforma, renovação e adequação.

• 3a. etapa Fonte: Dossiê “Megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil”, produzido pelo Comitê Nacional dos Atingidos pela Copa (2011, p. 118-119).

A greve dos operários se soma à insatisfação da população, evidenciando novamente que o Poder Público desconsiderou qualquer diálogo mais efetivo e democrático com a população. Registra-se que, durante a execução das obras, houve dois momentos de greve dos operários. A primeira paralisação ocorreu entre 15 e 20 de junho de 2011 (duração de cinco dias). No dia 15 de junho, os cerca de 500 operários das obras do Mineirão entraram em greve. Os trabalhadores reivindicaram aumento salarial para pedreiros e para serventes, além de aumento do pagamento de hora-extra e de concessão de cestas básicas de 35 kg. A paralisação foi organizada pelo Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção de BH e Região, e ainda serviu para denunciar as péssimas condições de trabalho e cobrar benefícios, como plano de saúde. A reação da Secopa foi, inicialmente, negar publicamente a greve, afirmando que a paralisação tinha tido a adesão de poucos trabalhadores, mas as empresas foram obrigadas a negociar com o sindicato, que afirmou que a adesão era praticamente total. As obras do Mineirão já estavam com o custo previsto de 743,4 milhões de reais. Isso já sinalizava para a insatisfação generalizada dos manifestantes, ao mesmo tempo em que mostrou o descaso por parte da Secretaria quanto à escuta das reivindicações e interesses dos atingidos diretamente com a realização da obra. A segunda paralisação ocorreu entre 14 e 19 de setembro de 2011, véspera da “Festa dos Mil Dias”, que comemoraria o prazo de mil dias para o início da Copa. O palco escolhido para a celebração foi Belo Horizonte, terra natal da presidenta Dilma Rousseff, que havia confirmado visita às obras do Mineirão e presença nas solenidades que seriam realizadas na Praça da Li-

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berdade, com a presença de autoridades e representantes da FIFA. Tal evento seguiu conforme planejamento, mesmo considerando que os operários do estádio não se intimidaram e voltaram a entrar em greve, alegando que o consórcio construtor havia descumprido o acordo feito cerca de um mês antes. Dessa vez, já eram 1.100 trabalhadores na obra. Durante a visita de Dilma, o canteiro de obras estava vazio. A Secopa, em nome do consórcio construtor, chegou a negar a greve em seguida, acusou alguns sindicalistas de truculência e de obrigarem colegas a aderirem à paralisação. Por fim, as empresas se viram obrigadas a negociar com os grevistas. Tal ocorrido deveria ocasionar em um diálogo com a população e, principalmente com os atingidos, mas os responsáveis pelas obras preferiram desconsiderar as manifestações populares e seguir com as obras. Outro ponto importante envolve restrições ao direito ao trabalho no entorno dos estádios. Em Belo Horizonte, desde o início da reforma, quando o estádio “Mineirão” foi fechado, os barraqueiros que trabalhavam em seu entorno em dias de jogos ficaram sem o que fazer. Em reuniões do Copac de Belo Horizonte e em audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal, representantes da Associação dos Barraqueiros do Entorno do Mineirão relataram que cerca de 150 famílias passavam dificuldades por terem ficado sem sustento. Na audiência, os barraqueiros fizeram várias exigências à Prefeitura, como o fornecimento de uma bolsa-auxílio enquanto o estádio estivesse fechado para reforma e, após sua reinauguração, a garantia de que eles poderiam continuar trabalhando ali, em especial durante a Copa do Mundo. Porém o estádio foi inaugurado, o comércio dentro do “Mineirão” foi privatizado, e os preços dos produtos estão mais caros. Em 24 de novembro de 2013, a Feira do Mineirinho foi reaberta, depois de muitas reuniões entre os movimentos sociais e o Governo de Minas, e audiências públicas. Porém, conforme o alvará de eventos, a feira poderá funcionar normalmente até o período em que deverá ser fechada por causa da realização da Copa do Mundo no Município. Segundo o primeiro secretário da Associação dos Expositores da Feira de Expositores (Aefem), a partir do dia 30 de março, a arena do Mineirinho passará a ser de uso exclusivo da FIFA, e os comerciantes ainda não têm um lugar definido para montagem da feira neste período. “Até hoje o governo não decidiu para onde vai a feira durante a Copa e isso representa um prejuízo muito grande para os feirantes.”11 Nota-se que as medidas tomadas pelo governo são de caráter temporário, ou seja, trazem soluções momentâneas, mas não resolvem de fato os problemas da população. Vale ressaltar um movimento em prol de um produto tradicional vendido no Mineirão, o “tropeirão”. Tal produto, pós-reforma, voltou a ser vendido de forma reduzida, descaracterizada da culinária mineira e bem mais caro. Com o movimento “Volta Tropeirão”, organizado pelo Copac-BH, juntamente com os ex-comerciantes locais, conseguiu-se reduzir os danos e, apesar da permanência do valor, o prato sofreu alterações quanto ao tamanho e a receita. Ou seja, nesse caso, as manifestações surtiram algum efeito, obviamente devido a uma relação comercial, e, portanto, de interesse de vendas.

11. Disponível em: .

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Nas figuras 1, 2 e 3, temos as fotografias tiradas antes, durante e depois da reforma do Mineirão. Observa-se o notório impacto físico-ambiental da obra.

Figuras 1, 2 e 3 • Mineirão antes, durante e depois da reforma de 2014. Fonte: SUPIM-MG - Superintendência de Imprensa do Governo de Minas Gerais

Percebe-se que todo o espaço do entorno, no qual havia uma grande concentração de árvores, foi substituído por uma estrutura de concreto. Considera-se o “Mineirão” um espaço públi-

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co da cidade, onde ocorrem múltiplas interações, um espaço heterogêneo que propicia o encontro de pessoas de diversas classes econômicas, enfim, um lugar investido de significado. Sabe-se que o espaço público é construído socialmente. Desse modo, as formas de reapropriação do “Mineirão”, levando em consideração as muito prováveis restrições de uso do espaço e os reflexos da nova arquitetura, podem modificar as relações sociais construídas e até promover novos tipos de conflitos, uma vez que a relação deste último com o poder é, segundo Andrade, Jayme e Almeida (2009), inerente às apropriações sociais em espaços públicos. A intervenção do Poder Público em espaços públicos, como é o caso do “Mineirão”, pode sugerir reflexões ou mudanças radicais nas formas de apropriação deste e nas formas de sociabilidade entre seus usuários. De acordo com Leite (2002), as políticas contemporâneas de “revitalização” do patrimônio retomam, em outro contexto e com outras perspectivas, o princípio social higienizador de Haussmann, para adequar as cidades às demandas e aos fluxos internacionais de turismo e consumo urbano. Sabe-se pouco sobre os projetos que buscam prever as consequências dessas intervenções. Em relação à apelação estética, a visibilidade é bem maior do que a político-social. Percebe-se que a lógica da revitalização baseada no consumo representa uma ameaça à sociabilidade construída historicamente nesse espaço público. Existem muitas preocupações em relação às consequências que essa reforma possa trazer. Por exemplo, pode-se citar o valor alto dos ingressos, que acaba por representar uma elitização do espaço; o comércio local, no caso, os preços altos da comida e bebida está se refletindo em uma insatisfação dos usuários; as permissões em relação ao uso da arquibancada, banheiros, acessos em geral, e do estacionamento entre outros. Além disso, a arquitetura do grande corredor de concreto poderá alterar a dinâmica de interação das pessoas. Até então, o entorno do “Mineirão” era bastante utilizado pelos usuários, e as pessoas combinavam de se encontrarem nos acesos, ao lado de barracas, ou próximos às árvores, etc. Como muitas árvores foram eliminadas (650 espécies) e não há ainda projeto que prevê comércio de vendedores ambulantes no local, não se sabe como se dará a nova dinâmica a partir de agora, ou seja, após a reforma.

As ações estratégicas dos movimentos sociais e, em especial, do Copac de Belo Horizonte, em relação à reforma do estágio “Mineirão” Observa-se que os movimentos sociais oriundos dos megaeventos constituem uma expressão da vitalidade da sociedade civil brasileira, a despeito da crença negativa de que somos apáticos e conformados com os sistemas fraudulentos que perpassam a história política do nosso País. Pode-se dizer que esses megaeventos são momentos complexos porque eles produzem

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muito impacto na vida das pessoas, normalmente são realizados sem que a sociedade civil tenha participação nas decisões, são estruturas que reafirmam a visão tecnocrática e centralizadora dos governantes em destaque no cenário brasileiro. A onda de manifestações no País, em junho de 2013, mostrou que os movimentos sociais na atualidade têm um papel determinante na garantia de uma dinâmica democrática de governo, contribuindo para os mecanismos de transparência e controle social dos gastos públicos. Nas palavras de Gohn (1997), os movimentos sociais do século XXI São ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo político de força social na sociedade civil (GOHN, 1997, p. 251). Para essa autora, os novos movimentos sociais do início deste milênio entraram na agenda dos acontecimentos mundiais. Eles apresentam fluxos e refluxos e constituem um dos principais campos de ação social coletiva. Essas formas de participação popular nas cidades vêm gerando ações coletivas importantes no processo de mobilização e mudança social do País. Os seguintes movimentos sociais destacaram-se nas recentes manifestações da cidade: Comitê dos Atingidos pela Copa de Belo Horizonte, Brigadas Populares, Movimento Fora Lacerda, Movimento Pró-Metrô, Associação Comunitária das Vilas Cafezal e Bandeirantes, Comunidade Dandara, Associação dos Barraqueiros do Entorno do Mineirão, Movimento dos Trabalhadores Desempregados, Levante Popular da Juventude, Associação Municipal dos Estudantes, Assembleia Popular de Belo Horizonte, Associação Nacional dos Torcedores, Comitê Mineiro de Educação em Direitos Humanos e o Fórum Mineiro de Direitos. Nota-se que a dinâmica dos movimentos sociais é significativa, mas as temáticas das lutas, no caso da cidade de Belo Horizonte, continuam permeando a dos Direitos Humanos e Sociais, mais especificamente as questões trabalhistas e de moradia popular. No caso brasileiro, a mobilização do Copac tem sido de fundamental importância na luta pela transparência e controle social dos gastos públicos, na luta contra a corrupção e na exigência de canais mais democráticos de governo. Tal movimento surgiu no final de 2010, quando Raquel Rounik12 publicou uma série de textos chamando a atenção para as violações de direitos humanos na realização de megaeventos Copa e Olimpíadas. Nesse mesmo ano, um grupo ligado a movimentos sociais, sindicatos e coletivos começou a se reunir para discutir o assunto e buscar mais informações. O movimento é formado por estudantes de diversas áreas, pessoas atingidas diretamente pelas obras, profissionais liberais de diversas áreas (Arquitetura e Urbanismo, Direito, Comunicação, Sociologia) e quem mais se interessar. O Copac procura fazer contato com os grupos atingidos, por exemplo, com os trabalhadores das obras, com as famílias atingidas pelas obras, com os barraqueiros do entorno do Mineirão, com os feirantes do “Mineirinho”, com a

12. Arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada.

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associação de moradores do entorno da Avenida Pedro I, com taxistas e profissionais do sexo, etc.13 14

O Copac atua pela causa nacional e está estruturado em três comissões que trabalham de forma articulada: Comissão de Mobilização e Articulação, Comissão de Elaboração e Mapeamento, e Comissão de Agitação e Propaganda (Agitprop). A seguir, as ações organizadas pelo Copac referentes ao período de 2010 e 2013, relacionadas à reforma do estágio Mineirão: Ato sobre a Elitização do Futebol no Contexto da Copa 2014; Ato: “Volta tropeirão”; Ato de Entrega do Dossiê de Violações dos Direitos Humanos – Copa 2014; 3 Copeladas (um campeonato de futebol com times amadores); I e II Seminário do Comitê Popular dos Atingidos pela Copa BH; Abaixo-assinado à PBH sobre a “Volta Tropeiro”; Reunião com a Abaem (Associação dos Barraqueiros do Estádio do Mineirão); assessoria jurídica aos cidadãos afetados pelas intervenções da Copa de 2014 em Belo Horizonte; criação de um grupo de estudos sobre as legislações específicas para os megaeventos, junto a integrantes da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); reunião com os feirantes do Mineirinho, no Ministério Público, Abaem e Economia Solidária da Feira Hippie; ato “Abraço ao Mineirão”; reunião com o Governo de Minas para negociação do retorno dos barraqueiros da feira do Mineirinho, etc.15 Com base nas informações coletadas em pesquisa realizada no site do Copac, pôde-se observar a atualização frequente de dados, avisos, textos, notícias, etc., por parte dos membros participantes, além da organização de eventos próprios e do grupo de discussão via e-mails. Isso demonstra uma alta capacidade de articulação que merece ser analisada. A forma de mobilização mais evidente são as redes sociais virtuais. Pode-se dizer que essas redes concentram a maior parte das divulgações das ações e consiste um local de organização entre os grupos. Os acessos via Facebook, blogues, e-mails são, numericamente, bastante expressivos, atingindo e envolvendo direta e indiretamente milhares de pessoas. Vale considerar que uma pesquisa realizada pelo Instituto Innovare16 sobre o perfil dos manifestantes da cidade de Belo Horizonte, na onda de protestos no País ocorrida em junho de 2013, revelou que o Facebook e outros contatos via internet tiveram um papel importante na mobilização dos participantes. O Facebook, com 69,9%, e a Internet, com 66,7%, são os meios de informação mais utilizados para as pessoas se informarem sobre os encontros e acontecimentos. A tevê fica com 37,4%. Por isso, acredita-se que as redes sociais virtuais constituem um espaço novo de atuação dos movimentos. Embora tenham ocorrido muitas atuações por parte do Copac BH, poucas foram, de fato, acolhidas pelo Poder Público, pelo menos no que tange às expectativas dos atingidos pela Copa em Belo Horizonte. Como exemplo de resultados positivos dessas atuações, pode-se citar, de acordo com informações postadas no site do Copac, a pressão popular das manifestações que fez com que o congresso decretasse a abertura das exigências e, com isso, conseguiu-se conscientizar melhor

13. Disponível em: . 14.Informações disponíveis em: .

15. Disponível em: ; grupo de e-mails (atingidosCopa2014) do Copac, acompanhado diariamente pela autora como fonte de pesquisa.

16. Disponível em: .

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as pessoas sobre os abusos. Outro fato interessante ocorreu às vésperas da Copa das Confederações, quando a Prefeitura de BH iniciou uma grande perseguição aos moradores de rua, conseguiu-se, junto ao Ministério Público, paralisar essas ações. E, ainda, outro resultado significativo de manifestação foi a volta da Feira do Mineirinho e a garantia de um espaço para os barraqueiros do Mineirão. Vale ressaltar que o Copac de BH conseguiu reunir, no dia 15 de junho de 2013, mais de 8 mil pessoas nas ruas de Belo Horizonte. No dia 18 de junho do mesmo ano, houve a primeira reunião da Assembleia Popular Horizontal, organização que surgiu da união dos movimentos que participavam das manifestações e grupos independentes diversos que procuravam formas de participar com mais força do cenário político do País.17 Contudo poucos foram os efeitos das manifestações realizadas pelos movimentos, pois o planejamento urbano das obras seguiu visivelmente e à revelia dos preceitos democráticos. O máximo de efeito que se podem observar são atrasos no andamento de algumas obras, como as que envolveram remoções das famílias. Mesmo assim, não se pode afirmar que foi devido apenas às manifestações. Por isso a pertinência de analisarmos a trajetória desse movimento diante dos processos decisórios instituídos pelo Poder Público assim como suas formas de atuações e as estratégias utilizadas para exigir mecanismos democráticos de participação popular nas arenas deliberativas.

17. Disponível em: .

Chama a atenção a diversidade das formas de atuações do Copac, conforme se pôde observar nas ações organizadas por esse movimento citadas anteriormente, ou seja, seminários, audiências públicas, greves, manifestações, grupo de estudo, assessoria jurídica às famílias que tiveram seus direitos violados, etc.; várias são as formas de se provocar atenção da sociedade e do Poder Público. As evidências permitem afirmar que as decisões que envolveram a organização da Copa no Município de Belo Horizonte foram tomadas sem a participação popular, pois, ao que parece, o Poder Público, apoiado numa noção de “interesse público”, tem tomado decisões, individualizando a questão com medidas provisórias e se esquivando, muitas vezes, de estabelecer processos de diálogo horizontal com movimentos sociais. Quando alguma forma de negociação foi proposta, dificilmente foi de forma coletiva, o que desarticula a organização popular. O que se observa são negociações e diálogos com empresas privadas e representantes de interesses da construção civil e do mercado imobiliário, como é o caso do contrato firmado com a empresa Minas Arena. Esta, conforme dito anteriormente, ficou responsável pelo investimento e realização da obra de reforma e modernização do “Mineirão” e tem o direito de explorar o comércio do complexo e estruturas coligadas por 25 anos, sendo obrigada a cumprir metas de qualidade operacional e de gestão. Muitos são os motivos que justificam a atuação dos movimentos sociais no processo de realização da Copa 2014, no Município de Belo Horizonte. Pode-se dizer que esse processo pode

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ser considerado mais uma luta pela dinâmica democrática no País. Sabe-se que a dinâmica democrática requer consciência política da sociedade, exercício da cidadania, participação popular, espaços públicos de debates e abertura política. Considera-se de suma importância o empenho da sociedade civil organizada no debate da agenda pública desses megaeventos, com intuito de discutir as intervenções urbanas na cidade.

Os desafios da governança democrática e da participação popular no Brasil Nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1990, o debate sobre a questão democrática no Brasil voltou-se, em grande parte, para a discussão sobre a aplicação dos instrumentos democráticos instituídos pela Constituição de 1988. Parte dessa discussão se estabeleceu acerca dos mecanismos institucionais de participação popular na definição e no controle de políticas públicas por meio de canais de participação do tipo conselhos municipais, orçamento participativo, elaboração do plano-diretor participativo, consórcios públicos. Contudo a cultura política brasileira e, talvez, uma falta de maturidade democrática do povo brasileiro têm representado obstáculos à efetividade de planejamento e gestão participativos por parte, principalmente, dos governos municipais, regulados pelo “Estatuto da Cidade”. Nesse sentido, muitos são os desafios decorrentes das práticas que envolvem a formulação e a execução de políticas públicas participativas. Talvez o maior deles seja justamente como garantir a apropriação legítima do poder político de participação tanto pela sociedade civil como pelo Poder Público. O enfrentamento dessa questão implica, por um lado, na autocrítica da forma como o Poder Público e sociedade civil concebem o interesse público e, por outro, no fortalecimento dos canais de participação por parte da sociedade. A experiência dos governos municipais brasileiros tem demonstrado que os canais de participação popular, que envolvem planejamento e gestão de políticas públicas, são, na prática, ainda pouco deliberativos no que se refere à participação da sociedade. Por outro lado, sabe-se que o processo de implantação da democracia participativa é lento e o exercício da democracia é um processo contínuo e dialógico. Se, por um lado, a democracia brasileira avançou quando produziu leis, como o Estatuto da Cidade, que reconhece o direito à participação e institucionaliza canais de interlocução entre sociedade civil e Poder Público, com o objetivo de viabilizar o exercício cooperado das funções do Estado, por outro, a legitimidade da atuação desses canais de participação, que é diretamente proporcional à sua apropriação pela sociedade civil, ainda representa um desafio. Uma prova disso são os processos decisórios que envolveram a realização dos megaeventos da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas Rio 2016, que ocorreram à revelia dos preceitos democráticos, evidenciando uma deslegitimação dos canais democráticos já existentes, e, portanto, de interesse público.

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Dahl (1997) nos traz ainda um conceito, o de poliarquia, que possibilita estabelecer “graus de democratização” e, desse modo, avaliar e comparar os regimes políticos. Por poliarquia entende-se os regimes relativamente democratizados, ou seja, dotados de caráter inclusivo e aberto à contestação pública (DAHL, 1997, p. 31). Para esse autor, poliarquia representa o tipo ideal de avaliação da democracia, pois designa a forma e o modo como funcionam os regimes democráticos dos países ocidentais desenvolvidos, por representar um conjunto de possibilidades. Desse modo, democracia representa o tipo ideal, e o termo poliarquia se refere aos regimes democráticos efetivamente existentes, com todos os seus problemas. Considera-se, no entanto, que o conceito de democracia está em desenvolvimento e não é um conceito pronto e acabado. De acordo com Santos Junior (2001), a participação popular pode ser vista como forma de ação política, podendo ajudar na descentralização do poder administrativo, já que aumenta o diálogo entre sociedade civil e Poder Público, porém consiste num desafio para os governos municipais. Esse mesmo autor define gestão pública como a flexibilidade, integração, descentralização de um governo organizado, voltado para todos os setores sociais, respeitando suas características e particularidades, permitindo intervenções de caráter consultivas e, dentro de limites previamente estabelecidos, deliberativas em espaços de participação democrática. Tais espaços objetivam captar demandas dos diversos segmentos da sociedade, as suas representações, as expressões, as argumentações, e ainda a passividade da participação de alguns membros. A competência desses espaços sugere deliberar sobre as diretrizes, as prioridades e o financiamento das ações administrativas e políticas do Estado, cuja participação da sociedade nos processos administrativos do governo confere maior legitimidade às suas ações. Em espaços de participação democrática, os atores sociais e políticos se articulam e se cooperam, construindo arranjos institucionais que coordenam e regulam as transações dentro e através das fronteiras dos sistemas político e econômico. Esses espaços se tornam canais abertos e institucionalizados de participação no Estado em interlocução com a sociedade. Eles são eficientes e legítimos no processo de mobilização e de envolvimento da comunidade na elaboração e realização das políticas (AZEVEDO; ANASTASIA, 2002). Num contexto conturbado politicamente como o atual, que apresenta uma ameaça ao desenvolvimento da democracia brasileira, uma vez que se percebe ausência de ação política, participação popular nos processos decisórios, gestão pública e, consequentemente, de democracia, é necessário investigar propostas de mecanismos de participação popular dos governos atuais. Nesse sentido, julga-se importante avaliar o modelo de gestão atual do Governo do Estado de Minas Gerais e de Belo Horizonte no que diz respeito à abertura dos espaços de participação popular nos processos decisórios que envolveram as intervenções da Copa do Mundo de 2014, no Município. Para tanto, as categorias de análise desenvolvidas por Dahl (1994) que fundamentam o conceito de poliarquia podem con-

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tribuir para essa reflexão, uma vez que se referem à “participação política” e à “competição política”. De acordo com esse autor, a participação política envolve a inclusão da maioria da população no processo de escolha dos líderes e governantes; enquanto que a dimensão da competição política envolve a disputa pelo poder político que pode levar ao governo. Em seu livro intitulado “Poliarquia: participação e oposição” (DAHL, 1994), a democratização é entendida em duas

dimensões: contestação pública e inclusividade. Ao processo de progressiva ampliação desses dois elementos o autor dá o nome de democratização. Dahl apresenta uma tipologia de sistemas e regimes democráticos que permite uma análise comparativa. As definições de Dahl são as seguintes: a) hegemonias fechadas: regimes em que a disputa pelo poder é baixa e a participação política é limitada; b) hegemonias inclusivas: regimes em que a disputa pelo poder é baixa, mas a participação política é mais extensa; c) oligarquias competitivas: regimes em que a disputa pelo poder é alta, mas a participação política é limitada; e d) poliarquias: regimes em que a disputa pelo poder é alta e a participação política é ampla. Dahl (1994) formula hipóteses acerca das condições mais favoráveis para que um sistema político não democrático, ou com baixo grau de democracia, caminhe em direção a um sistema poliárquico. Nesse sentido, o autor considera que há mais chances de a democracia se desenvolver quando a dimensão da competição política precede a dimensão da inclusão política. Esse autor acredita também que as liberdades liberais clássicas, como manifestação, voto secreto, organizações políticas, exercício de oposição ao governo, desenvolvimento de organizações partidárias oriundo da competição pelo poder, estimulam a participação dos cidadãos e favorece a poliarquia. Compreende-se, assim, que Dahl se posiciona favorável à transformação dos regimes nos modelos de poliarquia, embora o autor pareça não acreditar em qualquer espécie de lei histórica que impõe à sociedade uma transição inevitável à poliarquia. Para ele, a poliarquia deve sua existência a sete conjuntos de condições expressas nos seguintes termos: sequências históricas, grau de concentração na ordem socioeconômica, nível de desenvolvimento socioeconômico, desigualdade, clivagens subculturais, controle estrangeiro e crenças de ativistas políticos. Ressalta, contudo, que as poliarquias têm um elo com o nível socioeconômico, mas não significa que desenvolvimento gera obrigatoriamente regimes de poliarquia. Com base nessa teoria de Dahl (1994) e na teoria de David Harvey (2005) sobre empreendedorismo urbano, pode-se pensar que o modelo de gestão pública que vem sendo adotado pelo Governo de Minas e de Belo Horizonte para administrar a coalização de interesses do empreendedorismo empresarial, mais evidente agora com a realização dos megaeventos esportivos na cidade, que colocam diversas estratégias de desenvolvimento econômico, analisando os mecanismos de participação política dos cidadãos, o agenciamento dos interesses que interagem na sociedade, segue segundo a lógica do mercado capitalista e o nível baixo de democracia do governo atual.

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Acredita-se que os espaços de participação democrática conseguem captar as demandas dos diversos segmentos da sociedade, as suas representações, as expressões, as argumentações e ainda a passividade da participação de alguns membros. Ressalta-se aqui uma das potencialidades desses espaços, que é a sua capacidade de inclusão das vozes de todos aqueles que apresentam temas, vocalizam suas opiniões e reivindicações e, sobretudo, transformam-nas em deliberações e em atos administrativos do Estado. O retorno da “Feira de Artesanato do Mineirinho” é um exemplo interessante para ilustrar uma arena democrática de negociações entre representantes dos movimentos sociais e Poder Público. De acordo com Santos Junior (2001), a habilitação dos cidadãos à dinâmica democrática está relacionada à concepção de agente portador de direito, como condição fundamental para a efetividade da democracia, e associada não apenas à existência dos direitos formais, mas às possibilidades de inclusão social dos indivíduos no conjunto de laços, de valores e de normas que expressam a aposta da sociedade na vida democrática. Ou seja, “a habilitação ao exercício da democracia diz respeito às condições necessárias ao exercício da autonomia requerida pela condição de sujeito dotado de razão, investido de integridade física e capaz de tomar decisões segundo seus interesses” (SANTOS JUNIOR, 2001). Nesse sentido e considerando o contexto conturbado politicamente que se encontra nosso País na atualidade, pois apresenta uma ameaça ao desenvolvimento da democracia brasileira, uma vez que se percebe ausência de ação política, participação popular nos processos decisórios, gestão pública e, consequentemente, de democracia, consiste um desafio para os estudiosos da área, bem como para os movimentos sociais organizados, investigar propostas de mecanismos de participação popular e, ao mesmo tempo, analisar cautelosamente o modelo de gestão atual do Governo do Estado de Minas Gerais e de Belo Horizonte no que diz respeito à abertura dos espaços de participação popular nos processos decisórios que envolveram no Município as intervenções da Copa do Mundo de 2014.

Considerações finais Os governos de Minas e de Belo Horizonte, assim como em outros Estados brasileiros, assumiram um compromisso colossal diante das exigências da FIFA para a realização da Copa de 2014 no Brasil. Para enfrentar esse desafio, estabeleceram-se, fundamentalmente, muitas parcerias público-privada, objetivando a concretização das obras prometidas no tempo previsto. Porém nos chama a atenção o processo de transparência e o controle social das intervenções no âmbito desse grande evento esportivo, uma vez que o cenário aponta para a existência de uma forte institucionalização de instâncias de governança públicas e um baixo grau de participação efetiva dos representantes da sociedade civil nesses espaços institucionais. A diversidade de organismos instituídos em níveis federal, estadual e municipal, tais como grupos gestores, comitês, câmaras temáticas e secretarias especiais da Copa corroboram com

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um governo excepcional, um esvaziamento dos canais existentes de poder decisórios com a participação da população e, portanto, de interesse público. Os mecanismos de gestão que vêm sendo adotados seguem o modelo do empresariamento urbano (HARVEY, 2005), ou seja, um novo padrão de gestão pública das cidades, que passa por grandes transformações urbanas e, ao mesmo tempo, evidencia o capitalismo subsidiando grandes negócios e o desenvolvimento econômico, com ausência de participação social. Outro fator importante a ser considerado são as diretrizes gerais do “Estatuto da Cidade” (Lei Federal n. 10.257, de 2001), que reconhece a “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”. O que se observa, no entanto, no caso dos processos decisórios que envolvem a Copa do Mundo de 2014, são canais como os conselhos municipais sendo deslegitimados e esvaziados, ausência de audiências públicas e de mecanismos de participação popular. O “Estatuto da Cidade” consiste em uma tentativa de democratizar a gestão das cidades brasileiras pro meio de instrumentos de gestão, dentre os quais se pode destacar o “Plano Diretor”, obrigatório para toda a cidade com mais de 20 mil habitantes ou aglomerados urbanos. De acordo com Vieira (2013), a forma como certas alterações legislativas e medidas administrativas de caráter excepcional são associadas à promoção dos megaeventos podem violar ou intermitir salvaguardas fundamentais para a preservação de princípios constitucionais arduamente construídos em nosso País. Isso nos leva a refletir quanto a um possível retrocesso da democracia brasileira e a questionar o impacto social que essa nova prática de governo empreendedorista neoliberal pode representar para o futuro da política do nosso País. Segundo os estudos realizados por Vieira (2013), inúmeras são as medidas provisórias que vem sendo decretadas pelo governo brasileiro e usadas como instrumento de exceção, como ferramenta de ingerência imediata do Poder Executivo na função legislativa. Além disso, esse mesmo autor aponta para uma duvidosa constitucionalidade que atribui à Administração, para o caso de obras e serviços de engenharia, o dever de adoção preferencial do regime de contratação integrada. Segundo ele, vários especialistas mostram que os critérios previstos nesse modelo de contratação conjuram em desabono de princípios constitucionais, como os de isonomia, impessoalidade, competitividade e moralidade administrativa. Assim, observase que muitos são os problemas postos sob o futuro da democracia brasileira. Como observado, as ações já postas em prática sinalizam um legado bastante negativo, contudo a sociedade civil se insere nesse cenário, trazendo as mais variadas demandas e interesses dos diversos setores e segmentos. A participação social na gestão de políticas públicas é um tema instigante que remete a diversas experiências e proposições de mecanismos de democratização das esferas públicas decisórias sobre polí-

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ticas e recursos públicos, alternativas às práticas tradicionais do Estado na realização de megaeventos esportivos. O exemplo do estádio do Mineirão possibilitou a análise de um legado, mesmo antes da realização da Copa de 214, que merece ser estudado, considerando o processo de participação da sociedade civil e dos movimentos sociais, ao mesmo tempo, avaliando a gestão participativa do atual Governo do Estado diante da realização de megaeventos no Brasil. Acredita-se que o avanço da democracia deste País passa pela realização de políticas públicas que priorizem os interesses do povo brasileiro, mediante o exercício da governança participativa. Ao que parece, o modelo de democracia que vem sendo adotado no Brasil não permite esse exercício, pois as decisões são tomadas sem consulta ao povo e o desenvolvimento econômico é priorizado em relação ao social. Os movimentos sociais frente à realização da Copa de 2014 em Belo Horizonte demonstraram ter características originais, contudo trazem lutas populares antigas que vieram à tona com os impactos ocasionados pela organização desse megaevento no Município, pois as manifestações por moradia digna, situação de despejo, questões envolvendo operários e em relação ao patrimônio da cidade já são lutas urbanas tradicionais do cidadão belo-horizontino. Tanto as políticas públicas de governo para realização da Copa de 2014 em Belo Horizonte quanto os movimentos sociais oriundos dos impactos ocasionados por esse megaevento deixarão legados. Cabe aproveitarmos o momento para lançar ideias de possíveis fatos que podem ocorrer, no intuito de conseguirmos evitar impactos negativos e, no caso dos legados dos movimentos, buscar fortalecer a participação popular no Município e efetivar uma verdadeira cidadania. Referências ANDRADE, L. T.; JAYME, J. G.; ALMEIDA, R. C. Espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles. Cadernos Metrópoles, Rio de Janeiro, n. 21, p. 131-153, 2009. AVRITZER, Leonardo. Modelos de sociedade civil: uma análise da especificidade do caso brasileiro. In: AVRITZER, Leonardo (Coord.). Ensaios de teoria e filosofia política: em homenagem ao professor Carlos Eduardo Baesse de Souza. Belo Horizonte: DCP/Fafich/UFMG, 1994. AZEVEDO, Sérgio de; ANASTASIA, Fátima. Governança, accountability e responsividade. Revista de Economia e Política. São Paulo, v. 22, n. 1, p. 79-97, jan. 2002. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2013. DAHL, R. A. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp, 1997. Dossiê das violações da Copa 2014. COMITÊ POPULAR RIO COPA E OLIMPÍADAS. Rio de Janeiro: Comitê dos Atingidos pela Copa. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2012.

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1. Esse artigo faz parte da pequisa de mestrado intitulada as ações de mitigação do risco vistas de perto: transferência dos atingidos por enchentes no ribeirão piçarrão para conjuntos habitacionais em campinas-sp. 2013. Realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas em 2013 com apoio da FAPESP. 2. Mestre em urbanismo, arquiteta e urbanista pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 3. Arquiteta urbanista, professora do Programa de Pós Graduação em Urbanismo da PUC Campinas. DOI: 10.5752/P.2316-1752.2014v21n28p30

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A compreensão do processo das remoções em Campinas-SP: o olhar da população diretamente envolvida1 The understanding of the removal process in Campinas-SP: the affected population’s view La comprensión del proceso de traslado de residentes en zonas de riesgos en Campinas-SP: la visión de la población directamente involucrada

Gabrielle Astier de Villatte Wheatley Okretic2 Laura Machado de Mello Bueno3 Resumo Este artigo tem como objetivo mostrar o “olhar” da população para o processo de sua remoção de áreas de risco e transferência para empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida, na Região Sudoeste do Município de Campinas. O programa federal tem como objetivo diminuir, com a parceria público-privada, o déficit habitacional, e, como premissa, prover moradia segura e de qualidade. Porém os critérios de aprovação de projetos e seleção da população a ser atendida não são claros e apresentam deficiência, como pode ser constatado neste trabalho, por meio de entrevistas e questionários. Palavras-chaves: Habitações em áreas de risco. Programa Federal “Minha Casa Minha Vida”. Remoções. Abstract This article aim is to present the population’s view on the process of their removal and transfer from areas of risk to developments of the Program “Minha Casa Minha Vida” (My House My Life) in the southwest of Campinas-SP. The federal program main objective is to meet housing shortage with safe and qualified social housing by means of public/private partnership. However the criteria for project approval and selection of the population to be benefitted by the program are not clear and show deficiencies as evidenced by interviews and questionnaires in this study. Keywords: Houses in hazardous areas. Programa “Minha Casa Minha Vida”. Water in the urban environment.

Resumen Este artículo tiene como objetivo mostrar la “visión” de la población frente a su desplazamiento de las áreas de riesgo y a el proceso de translado para viviendas del Programa Federal Minha Casa Minha Vida (Mi vivienda mi vida) en la región suroeste de Campinas. El programa que tiene como fin disminuir la escasez de viviendas a través de la colaboración público-privada y tiene como premisa ofrecer vivienda segura y de calidad. Sin embargo los criterios para aprobación de los proyectos y la selección de la población a ser trasladada son frágiles, como se puede observar en este trabajo, desarollado por medio de entrevistas y cuestionarios, . Palabras clave: viviendas en zonas de riesgo. Programa Federal “Mi Casa Mi Vida”. Desplazamientos.

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Introdução A urbanização brasileira, caracterizada por um processo de exclusão social e econômica, têm imposto a grande parte da população habitar de modo precário em áreas de risco de desastres naturais. A desproporção entre a capacidade de bem viver e de estar sujeita a riscos na sociedade contemporânea agudiza esse quadro. Segundo Acselrad et al. (2009, p. 9), a injustiça ambiental é um termo que vem sendo consagrado para designar esse fenômeno de “imposição desproporcional dos riscos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos, informacionais”. Assim, considera-se que há, no meio urbano, uma ampliação da injustiça, pois é onde os assentamentos com moradias apresentam também inadequação da morfologia, funcionalidade e da infraestrutura dos espaços públicos e privados de uso coletivo. A falta de acesso à cidade legal faz com que famílias vivam em habitações precárias suscetíveis a problemas relacionados a variações do clima, como chuvas, enchentes e desabamento. Dado a um enorme déficit de moradias, o Governo Federal, por meio do Ministério das Cidades, instituiu uma política pública de provisão de habitação de interesse social baseado principalmente na construção de conjuntos habitacionais. Em 2007, foi criado o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), no qual, com financiamento federal, empresas privadas apresentam projetos ao Município para sua aprovação e definição da demanda quando esta vem de áreas de risco e com renda inferior a três salários mínimos (CARDOSO; ARAGÃO, 2012). As inserção e forma urbanas desses assentamentos planejados, porém, não respondem aos problemas e desafios das cidades diante da problemática ambiental, os riscos decorrentes e as respostas para mitigação e adaptação. Os projetos não contribuem para a redução dos impactos decorrentes da construção, manutenção e reformas adaptativas necessárias para o futuro mais adequado e confortável dessas moradias. No entanto o PMCMV, apesar de proporcionar condições mínimas de dignidade a essa população, está muito aquém de proporcionar qualidade de vida satisfatória. Segundo Beck (2010, p. 107), “Quanto mais marginais as opções econômicas e políticas, mais vulneráveis são os grupos particulares”. Assim, conhecer constituição da vulnerabilidade em um contexto particular e como ela aconteceu é importante questão para a investigação científica atual. As políticas públicas e as práticas sociais podem beneficiar-se da compreensão de como as populações percebem, interpretam e reagem a mudanças em suas vidas impostas pelas consequências do aumento de sua exposição aos riscos. Este artigo apresenta os resultados de um estudo (OKRETIC, 2013) sobre o olhar da população ao processo de remoção de famílias que vivem em áreas de risco, em uma ocupação no Jardim Florence II, próxima ao córrego Piçarrão, no Município de Campinas-SP. Essas famílias estão sendo atendidas pelo PMCMV e estão sendo reassentadas no conjunto habitacional localizado no residencial Sirius. A história da ocupação da

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Microbacia do Córrego Piçarrão tem completa relação com o processo de urbanização de Campinas e toda a sua modificação durante os anos que se sucederam ao início das ocupações na região. A pesquisa buscou expor a realidade de reassentamentos de populações ocorridos na Bacia Hidrográfica do Ribeirão Piçarrão, localizada na Região Sudoeste de Campinas-SP. A metodologia usada envolveu procedimentos para estudos espaciais, morfológicos e sociais no ambiente urbano, com visitas a campo e análise de mapas e de fotografias tiradas em sobrevoo. Foram também aplicados questionários à população diretamente envolvida no processo de reassentamento e feitas entrevistas com agentes públicos. A pesquisa de campo foi realizada de janeiro a setembro de 2013. Os questionários foram aplicados à população diretamente envolvida no processo de remoção. Dois foram os modelos de questionários: o primeiro, direcionado a famílias moradoras de áreas de risco e que aguardavam para serem realocadas; o segundo, para famílias que já haviam sido realocadas para os novos empreendimentos do PMCMV. A favela Jardim Florence II tem 9,3 hectares com 542 imóveis. Segundo os levantamentos da Sehab, foram identificados 260 imóveis em risco. Responderam aos questionários moradores de 16 unidades. O conjunto Sirius é composto de 118 prédios de quatro andares, organizados em 14 condomínios, com um total de 2.360 unidades. Responderam aos questionários moradores de 16 apartamentos do Condomínio Campo das Violetas, o qual tem sete torres, somando 140 unidades. No trabalho de campo, puderam-se perceber os diferentes pontos de vista em relação ao processo de remoção. Segundo uma das lideranças do local e o agente da Cohab, as remoções são realmente necessárias, primeiro por estarem em área pública e pela possibilidade de o local ser mais bem utilizado como praça de recreio para crianças e idosos, com vegetação, etc., e também pelo fato de as moradias estarem em local de riscos ambientais, como enchentes, deslizamentos, desabamentos de imóveis, etc. Um ponto a ser considerado dentro desse processo é como ele está ocorrendo, a maneira que a população é abordada e “retirada”. Segundo o próprio agente da Cohab, a população não recebe nenhuma indenização por sua antiga moradia. Pelas entrevistas e questionários, foi observado que as que moram ou foram transferidas das áreas consideradas de risco, em sua maioria, compraram a sua antiga moradia ou foram responsáveis pela construção, ou seja, construíram as suas próprias casas, sem auxílio algum do governo e com dinheiro próprio. Outro aspecto percebido na pesquisa de campo foi o apego emocional de alguns moradores com a sua moradia, criando, assim, uma resistência à mudança e atraso nas demolições, que já estão ocorrendo desde o começo do ano passado. A história das remoções, segundo uma liderança do bairro, é bastante antiga. Apenas agora se materializa algo que a Prefeitura, há tempos, promete à população: uma moradia digna e segura.

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A problemática: ocupação precária na constituição da região de Campinas A área de estudo está localizada próxima ao córrego do Piçarrão, que é parte integrante da Bacia Hidrográfica do Rio Capivari, a qual abrange, além do Município de Campinas, outros, como Louveira, Montemor, Elias Fausto, Capivari, Rafard e Mombuca. O ribeirão Piçarrão tem sua origem na região central do Município de Campinas e se desenvolve em direção à Região Sudoeste, onde está localizado o Jardim Florence. Como é possível observar na figura a seguir, na bacia, está localizado o entroncamento de três rodovias (Bandeirantes, Anhanguera e Francisco Aguirre Proença). A área de estudo também está conectada à Avenida John Boyd Dunlop, única via de grande porte que conecta a Região Sudoeste ao Centro.

A região é considerada com predominância de terrenos colinosos ondulados ou suavemente ondulados, com declividades variando entre 4% e 17%, que apresentam fácil erodibilidade, principalmente nas declividades superiores a 10% e nas cabeceiras de drenagem (nascentes ou talvegues) (CAMPINAS, 2006). O sítio apresenta restrições para a ocupação urbana que, quando associada a processos de ocupação irregular ou precária, pode resultar em assentamentos inadequados e inseguros quanto à integridade física das moradias e seus ocupantes, segundo o Plano Municipal de Habitação de Interesse Social (PMHIS) de Campinas, a partir da análise das características morfológicas e urbanísticas dos assentamentos precários, o qual serviu como referência para o cálculo de necessidades habitacionais (CAMPINAS, 2011). Um estudo foi realizado recentemente pela Defesa Civil (DC), resultando em uma ficha catalográfica e um mapeamento com as áreas consideradas de risco.

Figura 1 • Região Metropolitana de Campinas – Rede hídrica e localização da área de estudos. Fonte: CAMPINAS, 2006, modificado por Bárbara Ghirello.

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A FIG. 2 mostra as áreas consideradas de alto e muito alto movimento de massas e enchentes no Jardim Florence II. A descrição da Defesa Civil é

Figura 2 • Locais considerados de risco pela Defesa Civil no JF II. Fonte: SIDEC, 2013.

Ocupação irregular por moradias de alta a média vulnerabilidade em áreas de proteção ambiental permanente às margens do ribeirão Piçarrão. Em diversos locais as margens são elevadas e estão com evidências de processos erosivos muito próximos às moradias, colocando em risco de solapamento. [...] A situação é agravada pelo aterramento dos processos erosivos por resíduos e consequente assoreamento das drenagens: pela falta de infraestrutura urbanística com drenagens das águas pluviais, criando pontas de enxurradas e avanço do processo erosivo [...]. Em alguns locais a situação de risco foi eliminada pela remoção das pessoas e moradias (SIDEC, 2013). Segundo a Defesa Civil, a tipologia do processo é enchente e solapamento de margens, o grau de risco é alto, a quantidade de imóveis em risco é de 260 e 1.040 pessoas em risco. As sugestões de intervenções dadas pelos técnicos da Defesa Civil foram: • Remoção das moradias ainda em risco, remanescente de solapamento de margens; • Obras de engenharia de contenção de margens, para barrar os processos erosivos; • Obras de melhorias na infraestrutura urbanística, como pavimentação de ruas e implantação de sistema eficiente de drenagens de águas pluviais e correto destinamento até as drenagens naturais; • Implantação de políticas de controle urbano para evitar construções e intervenções inadequadas em áreas de proteção permanente;

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• Reflorestamento e reconstituição das áreas de proteção permanente, podendo-se criar um uso público, com a implantação de parques lineares às margens dos córregos e drenagens naturais; • Implantação do sistema de alerta para chuvas anômalas; • Implantação de pluviômetros em diversos pontos do Município. Dessas sugestões, apenas a primeira está sendo realizada pelo Poder Público. A favela no Jardim Florence II, localizada em terreno municipal, às margens do ribeirão Piçarrão, teve ocupação inicial na década de 1970 e tem uma área total de 93.123,44 m² e 542 domicílios. Muitas remoções estão sendo feitas no local desde o começo de 2012. No PMHIS, consta de que o assentamento é consolidável com a necessidade de uma urbanização complexa no local, ou seja, o terreno é adequado ou inadequado com alto índice de remoção e, ou, necessidade de realização de obras complexas. Consta também da necessidade de urbanização complexa de 271 domicílios e reassentamento de 271 domicílios. Como se pode ver no mapa (FIG. 3), há uma parte da favela que se encontra próxima à beira do rio, que é a área de várzea, e considerada como APP urbana, obedecendo aos 15 metros exigidos. Segundo o PMHIS, a Macrozona 54 ficou restrita para atendimento apenas do déficit oriundo de assentamentos precários, pois se entendeu que essa região já se encontrava saturada e sem condições de receber população. Devia, por outro lado, ser alvo de projetos que contemplassem equipamentos urbanos combinados com polos de geração de renda e serviços, que beneficiassem com postos de trabalho os moradores da região. Assim, o PLHIS recomendou que a região ficasse restrita apenas para acomodar moradores que já se encontravam instalados, em condições precárias, na região, de forma a não agravar os problemas já existentes a partir do aumento do contingente populacional local. Os projetos destinados às ZEIS dessa macrozona deveriam garantir áreas para implantação dos polos comerciais e de serviços e equipamentos comunitários (CAMPINAS, 2011).

4. Segundo o Plano Diretor, desde 1996, o município de Campinas apresenta divisão territorial em macrozonas, atualmente somando nove. (CAMPINAS, 2006).

Mesmo com essas recomendações do Plano Municipal de Habitação de Interesse Social, a Macrozona 5 é o alvo para contemplação de projetos sociais, como do PMCMV, promovida pelo Governo Federal. A área é considerada de interesse ambiental. A proximidade com o córrego faz com que, em época de chuvas intensas, a população possa ter sua moradia alagada ou mesmo derrubada, correndo risco de vida. As barreiras físicas que o córrego Piçarrão e a linha férrea constituem e os trechos situados entre eles formam um corredor que se encontra quase totalmente ocupado, enquanto que as áreas ao redor desses elementos têm grandes vazios urbanos e lotes ainda desocupados.

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Figura 3 • Mapeamento dos vazios urbanos no Jardim Florence II. Fonte: GHIRELLO; ASTIER; BUENO, 2013.

As faixas até 50 metros e de 50 a 100 metros do córrego, à margem leste, encontram-se quase que totalmente ocupadas e impermeabilizadas, enquanto que, a oeste do córrego, a extensão de terra ocupada é insignificante, como se pode observar na FIG. 3. A impermeabilização, observada a leste, resulta em problemas de erosão e drenagem na região. Uma vez que as águas pluviais não podem penetrar na terra, acabam por encontrar seu caminho até o córrego no nível do solo, com velocidade muito maior do que ocorreria no caso de uma drenagem natural, o que pode resultar em enxurradas e enchentes com alto potencial destrutivo. Ao estudar a região e seus conflitos, fica claro que questões regionais se sobrepõem a problemas intraurbanos, apesar de não considerada na área de influência direta da ampliação do Aeroporto de Viracopos, cujo projeto o insere na escala global como o maior aeroporto de carga da América Latina. Conforme Beck (2010): Nos anos recentes, entretanto, a vulnerabilidade social se tornou uma dimensão-chave na análise social estrutural da sociedade mundial do risco: as condições e os processos sociais produzem uma exposição desigual

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a riscos dificilmente definíveis, e as desigualdades resultantes devem ser amplamente interpretadas como uma expressão e um produto das relações de poder nos contextos nacional e global (BECK, 2010, p. 106). Um exemplo é o projeto de implantação do trem de alta velocidade (TAV) pelo Governo Federal, que prevê a ligação entre Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas5. Se construído, uma linha ligará o Aeroporto de Viracopos à região central de Campinas, e passará por onde hoje se encontra a atual linha férrea de carga (visível na FIG.3).

5. Contrato - Anexo 2 - Traçado Referencial Disponível em: http://www. antt.gov.br/index.php/content/view/5448. html. Acesso em: 15 fev. 2014.

A realização desse projeto implica em diversos problemas intraurbanos. Primeiramente, a constituição de uma barreira ainda mais forte do que o atual corredor ferroviário de exportação. E, ainda, algumas áreas deverão ser desapropriadas, uma vez que a zona de segurança para a implantação do trem deve ser maior do que a área livre atual. As barreiras físicas resultantes são ampliadas pela falta de projetos de transporte coletivo associados, reforçando a segregação socioespacial.

Outro aspecto a ser observado é a proporção de domicílios com apenas um banheiro. Essa informação, retirada do Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2013) por setores censitários, é interpretada como um indicador da simplicidade da moradia, relacionada ao padrão arquitetônico das residências, bem como ao perfil socioeconômico dos moradores. Não se trata de um indicador de precariedade. Entretanto, deve-se observar a importância na região dos setores censitários delimitados em vermelho, chamados setores subnormais pelo IBGE, ou seja, os que, pelo padrão arquitetônico, urbanístico e informações fundiárias, podem ser descritos como favelas ou assentamentos precários.

Figura 4 • Porcentagem de domicílios com um único banheiro (por setor censitário). Fonte: GHIRELLO; ASTIER; BUENO, 2013.

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O processo de remoção O processo de remoção, entretanto, é lento e burocrático, pois depende da aprovação de documentos e da construção e sorteio das moradias. As famílias retiradas de residências em áreas de risco devem se inscrever no PMCMV; neste caso, em um dos dois empreendimentos mais próximos, o residencial Sirius ou o Jardim Bassoli, e aguardar o sorteio das moradias (GHIRELLO; ASTIER; BUENO, 2013). Os moradores, por conta disso, são retirados aos poucos. As antigas casas são demolidas assim que a chave da nova residência é entregue, com a finalidade de evitar que voltem a ser ocupadas. Até março de 2013, a Cohab não realizava a limpeza dos escombros, também para evitar novas ocupações. Com isso, as famílias fora da área de risco, que não têm perfil para se inscrever no PMCMV, cujos processos de aquisição das novas moradias ocorreram mais lentamente, acabam morando em meio aos escombros das residências vizinhas e ficam sujeitas à presença de insetos e aracnídeos. Esses fatos tornam todo o processo contraditório em si, uma vez que o objetivo das remoções é retirar os moradores de áreas de risco, mas os submetendo a novos perigos (GHIRELLO; ASTIER; BUENO, 2013). A delonga no processo faz, ainda, com que as famílias fiquem muito tempo vivendo sem a certeza de que serão removidas e de que terão uma nova casa e, ao mesmo tempo, esperando que a casa seja entregue, o que as leva a não buscarem outras moradias e ficarem dependendo do auxílio do governo. O processo acaba tendo, portanto, um caráter paternalista por parte do Poder Público. Ademais, a demora desconsidera mudanças naturais ao espaço intraurbano, o mercado imobiliário continua funcionando, apesar de a área estar desvalorizada. Além disso, nesse momento, nem todas as moradias em pontos de ocupação irregular serão removidas, apenas aquelas em áreas consideradas de risco (faixa aproximada de 15 metros do rio). Segundo relato dos moradores, entretanto, a faixa de alagamento é maior (GHIRELLO; ASTIER; BUENO, 2013).

O processo de reassentamento Os empreendimentos do PMCMV destinados às famílias removidas de áreas de risco, com renda de zero a três salários mínimos, do Campo Grande e de outras regiões do Município de Campinas, são o residencial Sirius e o Jardim Bassoli. Como é possível observar na FIG. 5, o residencial Sirius está situado em uma área mais próxima do Jardim Florence, o que facilita o realojamento das famílias, uma vez que elas continuam relativamente próximas de seu antigo núcleo social e estão inseridas em um contexto que tem uma infraestrutura urbana razoavelmente boa. O Jardim Bassoli se encontra mais afastado do bairro, no limite do perímetro urbano. O empreendimento não tem, em seu entorno, serviços básicos, como comércio e serviços, escolas e postos de saúde. Os moradores ficam extremamente deslocados do meio urbano e não têm acesso fácil à cidade.

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Além dos problemas urbanos relacionados aos empreendimentos, os projetos arquitetônicos são muito pobres, com soluções espaciais e construtivas ineficientes do ponto de vista funcional e econômico, além de mal executados.

Figura 5 • Localização dos reassentamentos em relação à área desocupada no Jardim FlorenceFonte: GHIRELLO; ASTIER; BUENO, 2013.

Os imóveis são adquiridos pelas famílias com renda de até R$ 1.600,00, sendo subsidiado quase que integralmente pelo Governo. É cobrada uma prestação de 5% da renda familiar. Porém as antigas moradias devem ser abandonadas como se não tivessem o menor valor monetário. O Governo não concede qualquer indenização pela casa ou ajuda financeira para mudança da família. A maior parte das famílias removidas encontra-se, por falta de recursos, sem alternativa. A única saída é morar nos empreendimentos do PMCMV, apesar de todos os seus problemas sociais e construtivos. A busca por diferentes soluções se faz necessária, ainda mais quando tratamos de moradias, estamos lidando com pessoas, vidas humanas. Devem ser levadas em consideração várias questões, como, principalmente, o bem-estar psicológico dos envolvidos, de identidade, de relação, etc. Coisas básicas não são sequer levadas em consideração, muito menos discutidas quando são feitos esses empreendimentos. O que tem real relevância é o valor da terra, da construção e a minimização de custos. Enquanto a explosão imobiliária está a todo vapor, construindo empreendimentos para a população de baixa renda, esta sofre as consequências de todo um sistema inconsequente.

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Análise dos resultados Questionários aplicados a moradores de áreas de risco do Jardim Florence II Foram entrevistados oito homens e oito mulheres com a idade entre 18 e 74 anos, com renda de zero a R$ 2.200,00 e que ainda habitavam as áreas consideradas de risco, aguardando ser removidos em curto prazo. A quantidade de moradores por domicílio, entre os entrevistados, variava de um a sete, entre crianças, jovens e idosos. Em relação a desastres, 75% dos entrevistados afirmaram que nunca tiveram suas casas atingidas por chuvas, enchentes, deslizamento, e, ou, desabamento. Entre os que foram atingidos, metade teve a casa danificada uma vez, e os outros, entre duas e três vezes. Dos que foram atingidos, nem todos receberam aviso referente a reassentamento. Em relação ao total, 62,5% foram notificados para mudança de casa. Todos foram avisados por agentes da Cohab. Quanto à satisfação em relação à casa, pode-se dizer que 75% dos moradores entrevistados se sentem satisfeitos com a sua moradia. Os que responderam não mostraram insatisfação em relação a usuários de droga no local e à falta de policiamento. Apenas um morador se mostrou insatisfeito com a sua casa em relação à instalação, alegando ser velha e de “pingar” dentro da casa. Em relação ao conforto pessoal na moradia, apenas um morador mostrou desconforto, principalmente em relação à temperatura. Alegou ser muito quente no verão e muito fria no inverno. Sobre o conhecimento referente à necessidade de remoção da casa do entrevistado, as respostas coletadas permitem uma análise quanto ao processo de remoção e transferência dessa população. A grande maioria da população entrevistada não sabia ao certo por que estava sendo removida e o que seria feito no local após a sua saída. Perguntados sobre o que seria feito no local, apareceram como resposta diversas suposições, desde a utilização do espaço para lazer voltado para crianças e idosos a reflorestamento. Alguns dos moradores tinham a noção de que estão em área de risco, mas nem todos sabiam explicar o “porquê”, e alguns não acreditavam estar em área de risco, como pode ser visto na transcrição das falas. “Querem ela (a área). Desapropriando para plantar árvore. Porque aqui não é área de risco, mas eles querem desapropriar o pessoal”. Outro morador alega que são “dois (os) boatos (para retirarem as famílias): avenida e reflorestamento”. As respostas, algumas vezes, foram colocadas em terceira pessoa, como pode ser visto a seguir: “Diz que é área verde”; “Ouviu falar que aqui vai passar uma rodovia”; “Motivo de risco de desabar e de cair. Área de risco eles falaram”. Em um dos casos, a filha morava ao lado da mãe. A primeira fora transferida, e a segunda permanecia no local e não entendia o motivo de não “receber” o direito ao apartamento, e até questionava a veracidade de estar em área de risco, como se nota em uma de suas falas: “Diz que é área de risco. Duvido! Porque minha filha que tava no quintal saiu. Eu quero sair”.

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Outro morador também não acreditava e não queria sair de sua casa: “Umas casas tão em áreas de risco. Outras, não precisa demolir. A minha casa não tem necessidade nenhuma de ser demolida”. A Prefeitura e a Cohab apareceram em algumas falas como agentes atuantes no processo: “Informação da Cohab (é) para fazer área verde”; “Porque aqui é um espaço reservado pela Prefeitura, e ela vai querer esse espaço. Não sei muito bem”. Alguns entrevistados disseram que o risco aumentou com as demolições, como pode ser notado nesta fala: “Porque é área de risco. (E) agora é mesmo de risco, porque demoliram tudo aqui em volta”. Algumas das respostas se contradisseram, devido à falta de informação sobre o motivo da remoção e à falta de instrução sobre a nova condição de moradia que o processo de reassentamento não previa em seu programa.

Questionários aplicados a ex-moradores de áreas de risco do Jardim Florence II transferidos para o residencial Sirius Em uma segunda fase do trabalho de campo, foram aplicados 16 questionários a moradores que saíram do Jardim Florence II, entre fevereiro e março, e estão atualmente no residencial Sirius. A faixa etária dos entrevistados varia de 21 a 64 anos, com renda do último mês que antecedeu à entrevista de R$ 678,00 a R$ 3.000,00. Os questionários foram respondidos por oito mulheres e oito homens, de famílias com três a oito pessoas vivendo no mesmo domicílio. O conhecimento dessas pessoas em relação à necessidade de mudança de moradia é um pouco maior em relação à população que ainda está à beira do córrego Piçarrão. Mesmo que ainda todas as pessoas/famílias não tivessem a noção de que estavam em área de risco, 11 dos 16 entrevistados responderam ser esse o motivo de sua mudança. Duas pessoas responderam não saber, e outras 3 responderam motivos diversos, mas também assumiram o desconhecimento sobre o motivo. Tabela 1: Conhecimento do motivo da mudança Conhecimento sobre o motivo de sua mudança

Número

Área de risco

11

Não sabe

2

Outro

3

Fonte: elaborada com base nos questionários (OKRETIC, 2013).

Nem todas as famílias que foram transferidas haviam sofrido algum tipo de desastre relacionado a chuva, enchente, deslizamento e, ou, desabamento em sua antiga moradia. O questionário mostrou que 56% dos entrevistados afirmaram ter tido sua casa atingida, sendo que, destes, apenas um teve sua moradia atingida três vezes, enquanto um terço teve sua casa atingida duas vezes, e o restante, mais da metade, apenas uma vez. Essa informação não quer dizer que o risco não

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exista ou seja de baixa frequência, mas que é presente e, ao mesmo tempo, imprevisível. Tabela 2 - Porcentagem das famílias que tiveram a antiga casa atingida Ocorrência

Número

%

Sim

9

56

Não

4

37

Fonte: elaborada com base nos questionários. (OKRETIC, 2013)

Em relação à satisfação com a sua atual moradia, 87% dos moradores entrevistados responderam positivamente, 12% responderam de forma negativa. No aspecto segurança, 75% dos moradores que responderam aos questionários se sentiam seguros em sua atual moradia, 12% não se sentiam seguros e os outros 12% se sentiam mais ou menos seguros. Alguns destes disseram que, em relação à estrutura física da casa, sentiam-se seguros, mas apenas dentro de sua moradia, pois muitos não conheciam seus vizinhos e não sentiam segurança mesmo dentro do condomínio. Por esse motivo, muitos moradores mantinham fechadas as janelas de suas casas, como forma de proteger-se. Quanto ao conforto da casa, 81% disseram que se sentiam confortáveis, duas pessoas responderam que se sentiam mais ou menos confortáveis e apenas uma respondeu que não se sentia confortável. Tabela 3 - Sensação dos moradores no imóvel  

satisfação

segurança

conforto

Sim

14

12

13

Não

2

2

1

Mais ou menos

0

2

2

Fonte: elaborada com base nos questionários. (OKRETIC, 2013)

Em relação ao processo de adaptação dos entrevistados às novas moradias, 50% disseram que ainda estavam se adaptando, 44% responderam que foi fácil e apenas uma pessoa respondeu que foi médio o grau de adaptação, como mostra a tabela a seguir. Tabela 4 - Adaptação na nova moradia Adaptação

Número de entrevistados

Ainda está se adaptando

8

Fácil

7

Médio

1

Fonte: elaborada com base nos questionários. (OKRETIC, 2013)

Muitas das insatisfações constatadas estão relacionadas à ausência de equipamentos e serviços locais, como creche/ escola, postos de saúde e mercado, que, em sua maioria, estão localizados próximos às antigas moradias. Metade dos entrevistados disse utilizar os serviços e equipamentos locais,

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enquanto a outra metade disse que não. Dos que os utilizavam, 50% disseram ser de difícil acesso. Do total das pessoas entrevistadas, mais da metade achava difícil o acesso aos equipamentos e serviços locais. A última pergunta foi se o entrevistado poderia explicar por que as casas precisavam ser demolidas. Algumas responderam por estarem localizadas em áreas de risco, área verde, proximidade com o rio. As falas a seguir mostram a falta de clareza quanto ao conhecimento da necessidade das remoções por parte dos transferidos, e algumas contradições sobre o conhecimento do que seria feito no local. Alegaram que iam fazer uma avenida lá e porque é área verde. Não sei. Uns falam que é pra área de lazer, outros pra fazer pista pro aeroporto Cada um fala uma coisa. Pista pra aeroporto, parque, arborização. Porque só tiraram metade da rua. Tem casa lá que tem senhorinha morando mais perto do rio. Foi na Cohab e pediram pra esperar, e ela está lá há mais de 5 meses. Uma das falas de uma moradora deixa clara a insatisfação da mudança, mas há a consciência de que não poderia permanecer no local: “Porque o terreno não era nosso, só as parede. Se eu pudesse voltar, eu voltava agora. [...] Aí eles botaram o povo pra correr, e tivemo que nadar tudo junto”. Alguns moradores do conjunto foram críticos em relação à ausência de equipamentos de lazer para as crianças: “As crianças eram acostumadas com quintalzão, brincavam de bola”. Aponta um morador que sentia a falta desse espaço.

Considerações finais Independente da sensação de segurança, conforto e grau de adaptabilidade, essa população ainda vive numa incerteza imposta pela falta de escolhas em que estão colocadas. O processo de remoção e reassentamento não é esclarecido e pouco conhecido pela população local. Essa forma de reassentamento ajuda a reforçar o modelo paternalista e assistencialista do Estado provedor. Uma maior participação da população frente às decisões, deveria ser levada em consideração, inclusive na escolha de suas moradias, como a localização do imóvel e tipo de planta mais adequada à família. Reconhecer a população como ator do processo é fundamental para trazer a sensação de pertencimento do lugar. A falta de clareza sobre como são decididas e feitas as remoções, por parte da população diretamente envolvida reforça a lógica de exclusão. O futuro mais justo e mais sustentável de nossas cidades passa certamente pela erradicação das condições de risco físico das moradias e pessoas. Desta forma, o processo de remover e, sobretudo de reassentar, deve ser realizado levando em consideração a participação da população, reconhecendo as pessoas como atores sociais ativos no processo.

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A produção de cidades menos impactantes mais justas é questão de sustentabilidade ambiental: o que se faz de errado hoje, mesmo sendo soluções que na aparência de imediato sejam boas, irá impactar as gerações futuras bem como o futuro da cidade. (GHIRELLO; ASTIER; BUENO, 2013).

Referências ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília C. A.; BEZERRA, Gustavo N. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. BECK, Ultrich. Social inequality and climate change. In: MOSTAFAVI, Mohsen; DOHERTY, Gareth. Ecological urbanism. Cambridge: Harvard University-Graduate School of Design; Lars Muller Publishers, 2010, p. 106 - 109. CAMPINAS (Município). Plano diretor de Campinas. Campinas: Prefeitura Municipal, 2006. CAMPINAS (Município). Plano municipal de habitação de interesse social de Campinas. Campinas: Prefeitura Municipal, 2011. CARDOSO, Adauto. L.; ARAGÃO, T. Do fim do BNH ao Programa Minha Casa Minha Vida: 25 anos da política habitacional no Brasil. In: CARDOSO, A. L.. (Org.). O Programa Minha Casa Minha Vida e seus efeitos territoriais. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012, p. 8 – 17. GHIRELLO, Barbara; ASTIER, Gabrielle; BUENO, Laura M. M. Habitação em áreas de risco de Campinas/SP: avaliação e propostas de aprimoramento do processo de remoção e reassentamento. In: ENCONTRO LATINO AMERICANO DE EDIFICAÇÕES E COMUNIDADES SUSTENTÁVEIS, 5, 2013, Curitiba. Anais... Curitiba: Antac, 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2014. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico de 2010 disponível m em www.ibge.gov.br. Acesso em julho de 2013. OKRETIC, Gabrielle Astier de Villatte. As ações de mitigação do risco vistas de perto: transferência dos atingidos por enchentes no Ribeirão Piçarrão para conjuntos habitacionais em Campinas-SP. 2013. 188 f. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) – Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2013. SIDEC – Sistema Integrado de Defesa Civil – laudos. Disponível em http://www.sidec.sp.gov.br/producao/map_risco/pesqpdf3.php?pg=12&palavra+todos acesso em 20 outubro de 2013. Recebido em 07/01/2014 Aprovado em 02/05/2014 Contato dos autores Gabrielle Astier de Villatte Wheatley Okretic E-mail: [email protected] Laura de Mello Machado Bueno E-mail: [email protected]

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1. Artigo decorrente de dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Turismo e Meio Ambiente do Centro Universitário UNA, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Turismo e Meio Ambiente. Linha de pesquisa: Gestão Ambiental. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Trindade Bahia. 2. Arquiteta urbanista, mestre em Turismo e Meio Ambiente. Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUCMinas. DOI: 10.5752/P.2316-1752.2014v21n28p46

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Gerenciamento dos resíduos sólidos da construção civil1 Management of solid waste in the civil construction Gestión de residuos sólidos en la construcción civil

Lygia Prota2 Resumo O crescimento do setor da construção civil traz o aumento no volume dos resíduos sólidos, e o seu gerenciamento no Brasil se apresenta ainda como práticas incipientes. Os programas de coleta, transporte e reciclagem de entulho não são complementados e compartilhados de forma eficiente pelas empresas da construção civil ou de coleta de entulho. Não se pode pensar sobre o problema apenas criando áreas para a deposição desses resíduos sem que haja uma consciência maior sobre a sua origem. É preciso atuar desde a elaboração do projeto e, principalmente, dentro dos canteiros de obra. Palavras-chave: Política de resíduo sólido. Resíduo sólido da construção civil. Reciclagem de entulho.

Abstract The growth of the civil construction sector brings an increase in the volume of solid waste and its management in Brazil still presents as incipient practices. The programs of collection, transportation and recycling of trash are not supplemented and efficiently shared by the companies of construction or by companies which collect trash. It is impossible to think about the problem only creating areas for the disposal of such waste scattered, without a greater awareness about its origin. It is necessary to work since the beginning of the elaboration of the project and, especially, within the jobsites. Keywords: Policy on solid waste. Solid residue of civil construction. Recycling of trash.

Resumen El crecimiento del sector de la construcción, conlleva un aumento en el volumen de los residuos sólidos y su gestión en Brasil aún presenta como prácticas incipientes. Los programas de recolección, transporte y reciclaje de escombros no se complementan y comparten de manera eficiente por las compañías constructoras o de empresas de recogida de escombros. Es imposible pensar en el problema sólo la creación de áreas para la disposición de dichos residuos dispersos, sin la cual no es una mayor conciencia acerca de su origen. Es necesario trabajar desde la elaboración del proyecto y, sobre todo, dentro de los sitios de trabajo. Palabras clave: Política de residuos sólidos. Residuos sólidos de la construcción civil. Reciclaje de escombros.

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Introdução Ao longo da história da humanidade, a visão de progresso vem se confundindo com um crescente domínio e transformação da natureza. Nesse paradigma, os recursos naturais são vistos como ilimitados. Resíduos gerados durante a produção e ao final da vida útil dos produtos são depositados em aterros, caracterizando um modelo linear de produção (CASSA; CARNEIRO; BRUM, 2001). Esse modelo está ultrapassado, pois privilegia o desenvolvimento sem considerar a limitação dos recursos naturais. De acordo com Lordêlo, Evangelista e Ferraz (2007), na época da Rio-92, não se percebia uma preocupação por parte da indústria da construção civil com os impactos ambientais causados por sua cadeia produtiva, a exemplo do esgotamento dos recursos naturais não renováveis, que eram utilizados ao longo de todo o seu processo de produção, tampouco com o destino dado aos resíduos gerados. Construída a partir das diretrizes da Agenda 21 Global, a Agenda 21 Brasileira teve sua elaboração de 1997 a 2002, conduzida pela Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional (CPDS). O objetivo foi redefinir o modelo de desenvolvimento do país, introduzindo o conceito de sustentabilidade, qualificando-o com as potencialidades e as vulnerabilidades do Brasil, inclusive no quadro internacional, compatibilizando a conservação ambiental, a justiça social e o crescimento econômico (AMBIENTE BRASIL, [200-]). Na plataforma das 21 ações prioritárias da Agenda 21, entre as ações e recomendações do objetivo um, que trata da produção e consumo sustentáveis contra a cultura do desperdício, está a necessidade de se criar uma legislação de resíduos sólidos, com claras definições de obrigações e responsabilidades para os diferentes atores sociais, com base no reaproveitamento e na redução da geração de lixo (BRASIL, 2004). Segundo John (2000), o setor da construção civil apresentava-se como um dos mais críticos no que diz respeito aos impactos ambientais. Além de ser o principal consumidor de matérias-primas da economia, o setor também colabora significativamente na poluição ambiental, sendo responsável por cerca de 50% do gás carbônico (CO2) lançado na atmosfera e por quase metade da quantidade dos resíduos sólidos gerados no mundo. Ekanayake e Ofori (2000) afirmaram que o aumento da quantidade de resíduos de construção e demolição produzidos é considerável e tem causado sérios problemas tanto em nível local quanto global. Também disseram que estudos mostravam que a taxa de resíduos na indústria da construção brasileira é de 20% a 30% do peso do total de materiais no local. Como comparação, na Holanda, por exemplo, uma média de 9% do peso de materiais de construção comprados acaba como resíduos. O crescimento do volume de resíduos da construção civil, incluindo as demolições, produzidos nas cidades brasileiras e suas incipientes práticas de gerenciamento levaram a este estudo, que trata das questões dos resíduos da construção civil (RCC) em Belo Horizonte.

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Resíduos sólidos da construção civil (RCC) Para Miller Junior (2007, p. 446), “resíduo sólido é qualquer material indesejável ou descartado que não seja gasoso ou líquido”. Ele ainda afirma que, na natureza, não existe resíduo sólido, pois resíduos de um organismo transformam-se em nutrientes para outros seres. Relacionando ao Direito Ambiental, Milaré (2009) apresenta a seguinte definição para resíduos: Etimologicamente, resíduos referem-se a tudo aquilo que resta, que remanesce. Numa abordagem ambiental, os resíduos constituem o remanescente das atividades humanas – domésticas, industriais, agrícolas etc. – e que de uma maneira ou de outra, são lançados no solo, nos rios ou na atmosfera. Entre eles encontram-se os efluentes (líquidos), as emissões (gases e material particulado) e os resíduos sólidos (entre os quais o lixo domiciliar) (MILARÉ, 2009, p. 1334). A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), na Norma Brasileira (NBR) 10004:2004, define resíduo sólido como: Resíduos nos estados sólido e semissólido, que resultam de atividades de origem industrial, doméstica, hospitalar, comercial, agrícola, de serviços e de varrição. Ficam incluídos nesta definição os lodos provenientes de sistemas de tratamento de água, aqueles gerados em equipamentos e instalações de controle de poluição, bem como determinados líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou corpos de água, ou exijam para isso soluções técnica e economicamente inviáveis em face à melhor tecnologia disponível (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2004). E, de acordo com a Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, denominada Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), resíduo sólido é: Art. 3º [...] XVI - material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível (BRASIL, 2010). Verifica-se, com essas definições, que o termo resíduo sólido é usado genericamente como sinônimo de lixo, normalmente em referência àquilo que sobra do processo de produção ou de consumo, mas entendido como inútil. No entanto, de acordo com a mesma norma ABNT NBR 10004:2004, a classificação de resíduos envolve a identificação do processo ou atividade que lhes deu origem e de seus constituintes e características e a comparação desses consti-

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tuintes com listagens de resíduos e substâncias cujo impacto à saúde e ao meio ambiente é conhecido. Para os efeitos dessa norma, os resíduos são classificados em (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2004): • resíduos classe I – perigosos; • resíduos classe II – não perigosos; • resíduos classe II A – não inertes; • resíduos classe II B – inertes. Nessa classificação, os resíduos sólidos da construção civil se enquadram como “resíduos classe II B - não perigosos e inertes”, ou seja, Quaisquer resíduos que, quando amostrados de uma forma representativa, segundo a ABNT NBR 10007, e submetidos a um contato dinâmico e estático com água destilada ou desionizada, à temperatura ambiente, conforme ABNT NBR 10006, não tiverem nenhum de seus constituintes solubilizados a concentrações superiores aos padrões de potabilidade de água, excetuando-se aspecto, cor, turbidez, dureza e sabor, conforme anexo G (Padrões para o ensaio de solubilização) (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2004). Já a Resolução Conama nº 307/2002, em seu artigo 2º, inciso I, apresenta uma definição mais completa e adequada aos resíduos sólidos da construção civil, qual seja: Os resíduos provenientes de construções, reformas, reparos e demolições de obras de construção civil, e os resultantes da preparação e da escavação de terrenos, tais como: tijolos, blocos cerâmicos, concreto em geral, solos, rochas, metais, resinas, colas, tintas, madeiras e compensados, forros, argamassa, gesso, telhas, pavimento asfáltico, vidros, plásticos, tubulações, fiação elétrica etc., comumente chamados de entulhos de obras, caliça ou metralha (BRASIL, 2002). Na PNRS, no art. 13, alínea h, a definição de resíduos sólidos da construção civil abrange os resíduos gerados nas construções, reformas, reparos e demolições de obras de construção civil, incluídos os resultantes da preparação e escavação de terrenos para obras civis (BRASIL, 2010). Em alguns trabalhos sobre o assunto, os resíduos sólidos, tal como definidos acima, são denominados de Resíduos da Construção e Demolição (RCD). No entanto se considerou mais adequado para esta pesquisa o uso da sigla RCC, envolvendo os resíduos produzidos ao construir e, ou, ao demolir. Quanto à classificação dos RCC, a Resolução Conama nº 307/2002 (BRASIL, 2002), no art. 3º, considera a sua possibilidade de reutilização ou reciclagem (QUADRO 1). A Resolução Conama nº 431/2011 altera o art. 3º da Resolução nº 307/2002, estabelecendo nova classificação para o gesso, saindo da especificação de “resíduo classe C” para a especificação “resíduo classe B”, passando a vigorar a seguinte redação: “Resíduo Classe B - são os resíduos recicláveis para outras destinações, tais como: plásticos, papel, papelão, metais, vidros, madeiras e gesso” (BRASIL, 2011).

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QUADRO 1 - Classificação dos resíduos sólidos da construção civil, segundo a Resolução Conama nº 307/2002 Classe

Tipo de resíduo

Exemplo a) de construção, demolição, reformas e reparos de pavimentação e de outras obras de infraestrutura, inclusive solos provenientes de terraplanagem;

A

Resíduos reutilizáveis ou recicláveis como agregados

b) de construção, demolição, reformas e reparos de edificações: componentes cerâmicos (tijolos, blocos, telhas, placas de revestimento etc.), argamassa e concreto; c) de processo de fabricação e/ou demolição de peças pré-moldadas em concreto (blocos, tubos, meios-fios etc.) produzidas nos canteiros de obras.

B

Resíduos recicláveis para outras destinações

Plásticos, papel/papelão, metais, vidros, madeiras e outros.

C

Resíduos para os quais não foram desenvolvidas tecnologias ou aplicações economicamente viáveis que permitam a sua reciclagem/ recuperação

Produtos oriundos do gesso.

D

Resíduos perigosos oriundos do processo de construção ou resíduos contaminados oriundos de demolições, reformas e reparos de clínicas radiológicas, instalações industriais e outros

Tintas, solventes, óleos e outros; bem como telhas e demais objetos e materiais que contenham amianto ou outros produtos nocivos à saúde (nova redação dada pela Resolução n° 348/2004).

Fonte: adaptado de BRASIL, 2002.

Origem dos RCC Nos municípios brasileiros, como origem dos RCC, destacam-se as reformas, ampliações e demolições, em conformidade com Pinto e Gonzales (2005 apud MIRANDA; ÂNGULO; CARELI, 2009) (GRÁF. 1). Essa origem está ligada diretamente à quantidade de material desperdiçado durante o processo construtivo. Essas perdas, em níveis consideráveis, representam um consumo desnecessário de material para a produção ou manutenção do produto final (MÁLIA, 2010). Apesar de só na etapa construtiva as perdas se tornarem visíveis, estas começam a ocorrer com as decisões tomadas desde a fase de projeto. Segundo estudo realizado por Ekanayake e Ofori (2000), uma quantidade substancial dos desperdícios no local de construção está diretamente relacionada com erros de projeto, com alterações no projeto durante a fase de execução, com a inexperiência do projetista ou a falta de dados para avaliar os métodos e a sequência de construção em fase de concepção. Danos na obra devido a trabalhos posteriores e mão de obra não qualificada foram também apontados como fatores determinantes para a produção de resíduos na construção. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.21, n.28, 1º sem. 2014

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Gráfico 1 - Origem dos RCC em alguns municípios brasileiros, em 2005 80%

59%

60% 40% 20% 0%

21%

20%

Residências novas

Edificações novas (acima de 300m2)

Reformas, ampliações e demolições

Fonte: adaptado de PINTO; GONZALES, 2005 apud MIRANDA; ÂNGULO; CARELI, 2009, p. 58.

O QUADRO 2 mostra mais algumas fontes e causas de resíduos na construção, segundo diferentes fases da obra. QUADRO 2 – Fontes e causas de resíduos na construção Fases

Descrição

Projeto

•Falta de atenção na dimensão dos produtos. •Alterações realizadas no projeto durante o decorrer dos trabalhos. •Inexperiência do arquiteto na sequência e método da construção. •Falta de atenção aos tamanhos padrões existentes no mercado. •Falta de conhecimento do arquiteto quanto a produtos alternativos. •Falta de informação nos desenhos. •Erros no contrato. •Contrato incompleto no início do projeto. •Seleção de produtos de pouca qualidade.

Execução

•Erros cometidos durante o transporte ou pelos trabalhadores. •Acidentes devido à negligência. •Danos no trabalho concluído causados por operações posteriores. •Uso incorreto do material que, por sua vez, exige substituição. •Aquisição de quantidades inexatas devido à falta de planejamento. •Atrasos na entrega de informação ao construtor relacionada com o tamanho e tipo dos produtos a serem utilizados. •Mau funcionamento dos equipamentos. •Condições climáticas adversas.

Manuseio de materiais

•Danos durante o transporte. •Armazenamento inapropriado que leva à deterioração ou dano dos materiais. •Materiais fornecidos em embalagens separadas (por exemplo, sacos de cimento). •Utilização do material existente nas proximidades do local de trabalho, mesmo que não seja o mais indicado. •Conflitos entre a equipe de projeto e os trabalhadores.

Aspectos contratuais

•Erros de encomenda (por exemplo, encomendar materiais a mais ou a menos). •Falta de possibilidade de encomendar menores quantidades. •Adquirir produtos que não cumprem as especificações.

Manutenção

•Correção de manifestações patológicas, de reformas ou da modernização total ou parcial do edifício. •Descarte de componentes que tenham degradado e atingido o final da vida útil.

Fonte: adaptado de EKANAYAKE; OFORI, 2000, p. 3; JOHN; AGOPYAN, 2000, p. 6-7.

De acordo com Miller Junior (2007), os resíduos sólidos produzidos podem ser trabalhados de duas maneiras: por meio do gerenciamento ou da redução. O gerenciamento de resídu52

os é uma abordagem ligada à alta produção de resíduos, que considera a produção de dejetos inevitável para o crescimento econômico. A redução de resíduos, por sua vez, é uma abordagem ligada à baixa produção de resíduos, que reconhece não haver uma forma de descartá-los. Assim, reduzir a produção de resíduos é a solução preferencial porque enfrenta o problema da produção de resíduos antes que estes sejam produzidos, economizando matéria e recursos energéticos, reduzindo a poluição, ajudando a preservar a biodiversidade e economizando recursos financeiros. Embora alguns resíduos não possam ser evitados, o potencial de redução dos custos, por meio da prevenção de geração de desperdícios na obra, é substancial e deve servir de incentivo a todos os intervenientes nas várias fases do ciclo de vida de uma obra, de modo a juntarem esforços para minimizarem a produção de resíduos na construção (MÁLIA, 2010). Jadovski (2005), analisando dados sobre perdas na construção civil, concluiu que existe uma elevada variação nos índices de perdas de materiais. Em média, o concreto usinado representa uma perda de 9%, o aço de 11%, blocos e tijolos de 13%, revestimento interno de argamassa de 102% e revestimento externo de argamassa de 53%. Essas perdas refletem nos custos, contribuindo para um aumento de 5% a 11% dos custos orçados para as obras. Segundo Miller Junior (2007), alguns cientistas e economistas estimam que de 60% a 80% dos resíduos sólidos produzidos podem ser eliminados, reduzindo-se a sua produção, reaproveitando e reciclando os materiais, e reprojetando as instalações e os processos de fabricação.

Destinação dos RCC A disposição inadequada dos RCC, tanto por parte da população quanto dos coletores de RCC, traz vários problemas ambientais urbanos, tais como: contaminação dos solos (provocada por resíduos como o gesso); prejuízo à paisagem (poluição visual); obstrução de vias de tráfego; atração de resíduos não inertes (causando a proliferação de insetos, roedores, bactérias, vermes e fungos responsáveis pela transmissão de doenças); enchentes e assoreamento dos córregos (causadas por lançamento em terras baixas e junto a drenagens e por deslizamentos de encostas com depósitos instáveis); altos gastos de verbas públicas para sua coleta, limpeza e recuperação dessas áreas, entre outros (JADOVSKI, 2005; STEVANATO, 2005). Segundo a Resolução Conama nº 307/2002, os RCC não podem ser dispostos em aterros de resíduos domiciliares, em áreas de “bota-fora”, em encostas, corpos d’água, lotes vagos e em áreas protegidas (BRASIL, 2002). Conforme disposto no artigo 10 dessa Resolução, a destinação dos RCC deve ocorrer de acordo com a sua classificação e conforme apresentado no QUADRO 3.

Potencial para reciclagem dos RCC Segundo Miller Junior (2007), reciclar envolve transformar materiais sólidos descartados em produtos novos e úteis. Os ma-

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teriais coletados para a reciclagem podem ser reprocessados de duas formas: a reciclagem primária ou em circuito fechado, que ocorre quando o resíduo é transformado em novos produtos do mesmo tipo; e a reciclagem secundária, também chamada de downcycling, como é o caso dos resíduos das classes A e B (QUADRO 2), cujos materiais residuais são convertidos em produtos diferentes. QUADRO 3 - Destinação dada os RCC conforme sua classificação, segundo a Resolução Conama nº 307/2002. Classe

Destinação

A

Deverão ser reutilizados ou reciclados na forma de agregados, ou encaminhados a áreas de aterro de resíduos da construção civil, sendo dispostos de modo a permitir a sua utilização ou reciclagem futura.

B

Deverão ser reutilizados, reciclados ou encaminhados a áreas de armazenamento temporário, sendo dispostos de modo a permitir a sua utilização ou reciclagem futura.

C

Deverão ser armazenados, transportados e destinados em conformidade com as normas técnicas específicas.

D

Deverão ser armazenados, transportados, reutilizados e destinados em conformidade com as normas técnicas específicas.

Fonte: BRASIL, 2002.

De acordo com a Resolução Conama nº 307/2002, reciclagem é o processo de reaproveitamento de um resíduo, após ter sido submetido à transformação (BRASIL, 2002). A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) completa essa definição, afirmando que reciclagem é o processo de transformação dos resíduos sólidos, envolvendo a alteração de suas propriedades físicas, físico-químicas ou biológicas, com vistas à transformação em insumos ou novos produtos, observadas as condições e os padrões estabelecidos pelos órgãos competentes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e, se couber, do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) e do Sistema Nacional de Agropecuária (SUASA) (BRASIL, 2010). Miller Junior (2007) afirma que há dois tipos de resíduos que podem ser reciclados: o resíduo pré-consumo ou interno, que é gerado em processo de fabricação e reciclado em vez de ser descartado, e o resíduo pós-consumo ou externo, que é gerado pelo consumo do produto. Há cerca de 25 vezes mais resíduos pré-consumo do que pós-consumo, sendo importante reciclar os dois. Jadovski (2005) define agregado reciclado como um material granular, resultante de um processo industrial, envolvendo o processamento de materiais inorgânicos, prévia e exclusivamente utilizados na construção, ou seja, os RCC, e aplicados novamente na construção. Também afirma que a composição dos RCC afeta a qualidade dos agregados reciclados produzidos, variando de acordo com a fase da obra, com o seu tipo, além de parâmetros temporais e da região geradora do resíduo. De acordo com John e Agopyan (2000), do ponto de vista técnico, as possibilidades de reciclagem dos RCC variam de acordo com a sua composição: quase a totalidade da fração cerâmica pode ser beneficiada como agregado com diferentes aplicações, conforme sua composição específica. As frações compostas predominantemente de concretos estruturais e de

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rochas naturais podem ser recicladas como agregados para a produção de concretos estruturais. Várias pesquisas vêm sendo desenvolvidas sobre a utilização desses produtos reciclados na indústria da construção civil. Jadovski (2005), Stevanato (2005) e Lapa (2011) apresentam algumas dessas aplicações: elementos de alvenaria como blocos de concreto, tijolos de solo-cimento e painéis pré-moldados, reforço de subleito, sub-base, base e blocos para pavimentação de ruas, além da substituição total ou parcial do agregado natural na confecção de concretos e da areia na confecção de argamassa. As pesquisas revelam os estudos sobre as propriedades dos materiais reciclados como resistência à compressão e à tração, aderência, módulo de elasticidade e dureza superficial e, ainda, sobre a viabilidade econômica desses produtos (JADOVSKI, 2005; STEVANATO, 2005). A redução de até 40,5% no preço dos produtos moídos sobre os naturais torna bastante viáveis os materiais de origem reciclada. Além disso, a tendência aponta para uma diferença de preço cada vez maior em virtude da crescente dificuldade da extração de areias e pedras britadas (agregados miúdos e graúdos). Essas dificuldades envolvem desde o licenciamento para a atividade, os locais de extração, até o alto custo do transporte (STEVANATO, 2005). Pelos resultados obtidos na pesquisa de Lapa (2011), pode-se verificar que os RCC atenderam às exigências estabelecidas nas normas da ABNT, possibilitando a utilização desse material na produção de argamassas de revestimento. Segundo o mesmo autor, o uso de RCC na argamassa pode gerar economia, pela substituição da areia convencional, eliminação do custo do resíduo e diminuição do consumo de agregados, apresentando um alto potencial de utilização. No entanto, algumas pesquisas mostram que problemas como a falta de pré-seleção dos RCC na origem, a ausência de cultura para o despejo em lugares adequados, por parte da população, e o desconhecimento das possibilidades de reaproveitamento, contribuem para um baixo rendimento na sua moagem e reciclagem (STEVANATO, 2005). Para o melhor aproveitamento dos RCC, devem ser equacionados os aspectos relacionados à disposição dos resíduos no canteiro de obra, assegurando a qualidade do resíduo sem contaminações, potencializando sua reutilização ou reciclagem. É importante que os funcionários sejam treinados e se tornem conhecedores da classificação dos resíduos para executarem satisfatoriamente a sua triagem (LAPA, 2011). Existem várias barreiras a serem vencidas para a introdução de novos produtos elaborados dos RCC, destacando-se, entre outras: os clientes são reduzidos quase que exclusivamente à municipalidade, não havendo um mercado alternativo; a necessidade de desenvolvimento de aplicações em que os produtos, contendo agregado reciclado, apresentem vantagens competitivas sobre os produtos tradicionais, além de preço compatível; o desenvolvimento de marcas de qualidade ambiental de produto (certificação); o aperfeiçoamento tecnológico com os resultados das pesquisas amplamente divulgados; o desenvolvimento de

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um sistema de controle de qualidade do produto; os estudos de localização de centrais de entrega de resíduos em pontos que encurtem as distâncias de transporte sem gerar problemas ambientais, entre outros (JOHN; AGOPYAN, 2000). Também são necessários investimentos privados. Uma vez que se prove à iniciativa privada que a moagem e reaproveitamento de entulho são viáveis economicamente, ou ainda, que proporcionam lucro, haverá maior incentivo aos investimentos para exploração desses recursos (STEVANATO, 2005).

Regulamentações e iniciativas para o gerenciamento dos resíduos sólidos da construção civil no Brasil No Brasil, a partir de 2000, começaram a ser desenvolvidas pesquisas sistemáticas relacionadas ao uso dos RCC e algumas usinas de reciclagem privadas de pequeno porte foram instaladas, somando-se às poucas já existentes e em operação. Foi formada a Câmara Ambiental da Construção, com a participação formal do Sindicato da Indústria da Construção de São Paulo (Sinduscon-SP), Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), Universidade de São Paulo (USP) e outros, para discutir, em âmbito nacional, normas técnicas para as atividades de triagem e reciclagem (MIRANDA; ÂNGULO; CARELI, 2009). Com a necessidade de implantação de diretrizes para a efetiva redução dos impactos ambientais gerados pelos RCC, pois estes representam um significativo percentual dos resíduos sólidos produzidos nas áreas urbanas e seus geradores devem ser responsabilizados, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) aprovou, em 5 de julho de 2002, a Resolução Conama nº 307. Nesse documento, foram estabelecidos diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão dos resíduos sólidos da construção civil, além de apresentar definições e classificações de tais resíduos (BRASIL, 2002). Essa Resolução definiu, portanto, responsabilidades e deveres, inclusive a necessidade de cada município licenciar as áreas para disposição final, fiscalizar o setor em todo o processo e implantar o Plano Integrado de Gerenciamento de Resíduos da Construção Civil. Também estabeleceu que os grandes geradores incluíssem os Projetos de Gerenciamento de Resíduos da Construção Civil nos projetos de obras a serem submetidos à aprovação ou ao licenciamento dos órgãos competentes, além de estabelecer que cesse a disposição de resíduos de construção civil em aterros de resíduos domiciliares e em áreas de “bota-fora” (BRASIL, 2002). Com isso, foi aberto o caminho para que os setores público e privado pudessem, juntos, prover os meios adequados para o manejo e a disposição desses resíduos. Os prazos estabelecidos pela Resolução nº 307/2002 foram os seguintes: a partir de 2 de julho de 2004, os municípios e o Distrito Federal deveriam implantar o Programa Municipal de Gerenciamento de Resíduos da Construção Civil oriundos de geradores de pequenos volumes e cessar a disposição dos resíduos de construção civil em aterros de resíduos domiciliares e em áreas

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de “bota-fora”; a partir de 2 de janeiro de 2005, os grandes geradores, excluídos os municípios e o Distrito Federal, ou seja, as construtoras, deveriam incluir os projetos de gerenciamento dos RCC nos projetos de obras a serem submetidos à aprovação ou ao licenciamento dos órgãos competentes (BRASIL, 2002). Assim, ao entrar em vigor a Resolução nº 307/2002, em 2 de janeiro de 2003, o setor da construção civil começou a participar das discussões a respeito do controle e da responsabilidade pela destinação de seus resíduos sólidos (Sindicato da Indústria da Construção Civil de Minas Gerais, 2008). Em 2004, com a crescente preocupação da sociedade quanto às questões ambientais e ao desenvolvimento sustentável, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) criou a Comissão de Estudo Especial Temporária de Resíduos Sólidos (CEET - 00.01.34), para revisar a ABNT NBR 10004:1987 - Resíduos sólidos - Classificação, visando a seu aperfeiçoamento e, dessa forma, fornecer subsídios para o gerenciamento desses resíduos. As premissas estabelecidas para a revisão foram a correção, complementação e atualização da norma em vigor e a desvinculação do processo de classificação em relação apenas à disposição final de resíduos sólidos (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2004). Outras normas técnicas relativas à reciclagem dos RCC são apresentadas no QUADRO 4. QUADRO 4 – Especificidades das normas técnicas acerca dos RCC Normas

Ação: manejo de resíduos

O que definem

NBR 15112

Resíduos da construção civil e resíduos volumosos. Áreas de transbordo e triagem. Diretrizes para projeto, implantação e operação.

Procedimentos para o manejo na triagem dos resíduos das diversas classes, inclusive quanto a proteção ambiental e controles diversos.

NBR 15113

Resíduos sólidos da construção civil e resíduos inertes. Aterros. Diretrizes para projeto, implantação e operação.

Procedimentos para o preparo da área e disposição dos resíduos de classe A, proteção das águas e proteção ambiental, planos de controle e monitoramento.

NBR 15114

Resíduos sólidos da construção civil. Áreas de reciclagem. Diretrizes para projeto, implantação e operação.

Procedimentos para o isolamento da área e para o recebimento, triagem e processamento dos resíduos classe A.

Agregados reciclados de resíduos sólidos da construção civil. Execução de camadas de pavimentação. Procedimentos.

Características dos agregados e as condições para uso e controle na execução de reforço de subleito, sub-base, base e revestimento primário (cascalhamento).

Agregados reciclados de resíduos sólidos da construção civil. Utilização em pavimentação e preparo de concreto sem função estrutural. Requisitos.

Condições de produção, requisitos para agregados para uso em pavimentação e em concreto, e o controle da qualidade do agregado reciclado.

NBR 15115

NBR 15116

Fonte: adaptado de ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2004b, 2004c, 2004d, 2004e, 2004f.

Apesar da Resolução Conama nº 307 ter sido aprovada em 2002, apenas em 2 de agosto de 2010 ocorreu a aprovação da Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), por meio da Lei nº 12.305 (BRASIL, 2010). De acordo com o artigo 1º, a PNRS dispõe sobre princípios, objetivos e instrumentos, bem como sobre as diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos, 57

incluídos os perigosos, as responsabilidades dos geradores e do Poder Público e os instrumentos econômicos aplicáveis. Quanto aos instrumentos, a PNRS define os planos de resíduos sólidos, tanto o nacional como os estaduais e municipais, como aqueles que definirão as metas de redução, reutilização, reciclagem, entre outras, com vistas a reduzir a quantidade de resíduos e rejeitos encaminhados para disposição final ambientalmente adequada e as normas, condicionantes, diretrizes, controle e fiscalização (BRASIL, 2010). Muitas dificuldades para manutenção em funcionamento das usinas de reciclagem são apresentadas nas pesquisas sobre o assunto. Entre elas está a dificuldade na triagem do material que chega às usinas, na maioria das vezes, sem a devida separação, levando ao descarte de grande parcela desse resíduo, ocasionando baixa produtividade de agregados e elevação de seu custo. De outro lado, está a baixa demanda do material produzido pelas usinas, pois são poucas as opções para sua utilização, refletindo uma elevação dos custos de operação e acúmulo de material reciclado ou não nos pátios, além da existência de barreira cultural para a utilização desses agregados. Além disso, existem conflitos de interesses entre o operador da usina e os caçambeiros, falta de recursos da administração para manutenção das usinas e falta de programas de orientação à população (JADOVSKI, 2005; STEVANATO, 2005). As deficiências das políticas de reciclagem dos RCC, baseadas no modelo de centrais de reciclagem operadas pelas prefeituras, além do risco de interrupção do funcionamento, tornando a produção intermitente devido às dificuldades administrativas, às mudanças de cenário político e ao pouco conhecimento técnico, não garantem a homogeneidade dos agregados reciclados nem sua aceitação no mercado. O controle de qualidade é baixo e precisa ser implantado com o intuito de reduzir a variabilidade e de melhorar a qualidade e a confiabilidade do produto (JOHN; AGOPYAN, 2000; MIRANDA; ÂNGULO; CARELI, 2009). Novas metodologias e pesquisas de reaproveitamento em desenvolvimento convidam as empresas ao investimento na área, sendo que a reciclagem tem ocupado lugar de destaque nas pesquisas das grandes universidades. A abertura de mercado para produtos reciclados de qualquer natureza é uma tendência crescente. Jadovski (2005) afirmou que, para implantação, operação e manutenção de uma usina de reciclagem de RCC, exige-se um custo de capital bastante elevado. O autor também observa que as capacidades de produção mínimas para se obter viabilidade econômica são de 30 t/h para empresa pública e de 40 t/h para empresa privada, não sendo possível a implantação de pequenas usinas, com capacidades de 15 t/h a 20 t/h, que favoreceriam a implantação de áreas de reciclagem descentralizadas. Assim, faz-se necessária a implantação de políticas públicas de incentivo, como implementação e fiscalização de políticas integradas dos RCC atendendo à Resolução nº 307/2002, incentivos fiscais com redução ou isenção de impostos, incentivos políticos como o aumento de taxas de disposição de RCC em aterros de forma a priorizar a reciclagem, responsabilização do gerador e o aumento de taxas de

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extração de recursos naturais, ação indutora do setor público para utilização de materiais reciclados, além de campanhas de esclarecimento para o público leigo e profissionais da área sobre a utilização de agregados reciclados e treinamento de mão de obra da construção civil, entre outras. O aumento significativo no número de construtoras que implantam a gestão de RCC em canteiro dependerá da implantação dos planos integrados de gerenciamento municipais, pois estes devem cobrar dos grandes geradores a elaboração dos projetos de gerenciamento de resíduos, como condição para licenciamento das obras e dos comprovantes de destinação para a concessão do habite-se (CARELI, 2008). Em grande parte dos casos, os planos de gestão integrada não obrigavam à apresentação dos projetos de gerenciamento de resíduos pelas construtoras como condição à liberação dos alvarás de construção. Tais empresas assumiam voluntariamente a iniciativa de adotar práticas diferenciadas de manejo e destinação dos resíduos, buscando compatibilidade com os critérios estabelecidos pela Resolução Conama nº 307/2002 (MIRANDA; ÂNGULO; CARELI, 2009).

Certificações Paralelamente às regulamentações dos governos federal, estaduais e municipais existem outros instrumentos que incentivam as boas práticas públicas e privadas no gerenciamento dos RCC. As certificações e, ou, selos são, para a construção civil, importantes instrumentos para estabelecer um processo de gerenciamento do impacto das edificações sobre o meio ambiente. O objetivo das certificações é promover a conscientização de todos os envolvidos no processo, desde a fase de projeto, passando pela construção, até o usuário final, incorporando soluções que permitirão uma redução no uso de recursos naturais, além de promover conforto e qualidade para seus usuários (CONSELHO BRASILEIRO DE CONSTRUÇÃO SUSTENTÁVEL, 2011). Ligada diretamente aos processos dessas certificações está a gestão dos resíduos da construção civil.

Certificações da International Organization for Standartization (ISO) Entre as certificações existentes, deve ser mencionada a normalização internacional elaborada e proposta pela International Organization for Standardization (ISO), compreendidas na série ISO 14.000. Essa organização internacional, sediada em Genebra, vem atuando dentro dos seus fins societários específicos desde 1947. As normas da série ISO 14.000 visam a resguardar, sob o aspecto da qualidade ambiental, não apenas os produtos como também os processos produtivos. Dessa série, a principal norma é a ISO 14001 (MILARÉ, 2009). A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) representa o Brasil na ISO, oficializando, para uso corrente no país, as normas ISO, que passam a se chamar NBR ISO (MILARÉ, 2009). A NBR ISO 14001 é uma norma internacionalmente reconhecida, que define o que deve ser feito para estabelecer um

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Sistema de Gestão Ambiental (SGA) efetivo. Foi desenvolvida com o objetivo de criar o equilíbrio entre a manutenção da rentabilidade e a redução do impacto ambiental, com o comprometimento de toda a organização. Ela especifica os requisitos relativos a um sistema de gestão ambiental, que podem ser objetivamente auditados para fins de certificação/registro e, ou, autodeclaração, permitindo a uma organização formular uma política e objetivos que levem em conta os requisitos legais e as informações referentes aos impactos ambientais significativos. Ela se aplica aos aspectos ambientais que possam ser controlados pela organização e sobre os quais se presume que ela tenha influência (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2004). Aliadas à NBR ISO 14001, ainda existem as NBR ISO 14004:1996 (Sistemas de gestão ambiental - Diretrizes gerais sobre princípios, sistemas e técnicas de apoio) e a NBR ISO 14006:2011 (Sistemas de gestão ambiental - Diretrizes para a incorporação de concepção ecológica), que são recomendadas como apoio às organizações que necessitam de orientação adicional sobre outras questões relacionadas a sistemas de gestão ambiental (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 1996, 2011).

Certificação Leadership in Energy & Environmental Design (LEED) Outro instrumento para avaliação das edificações na questão ambiental é a certificação Leadership in Energy & Environmental Design (LEED). Em março de 2007, foi criado o Green Building Council Brasil (GBC), uma organização não governamental que surgiu para auxiliar o desenvolvimento da indústria da construção sustentável no País, utilizando as forças de mercado para conduzir à adoção de práticas de green building em um processo integrado de concepção, construção e operação de edificações e espaços construídos. O GBC trabalha na divulgação das melhores práticas adotadas, incluindo tecnologias, materiais, processos e procedimentos operacionais, bem como promove o sistema de certificação e orientação ambiental de edificações, o LEED, sendo o selo de maior reconhecimento internacional e o mais utilizado em todo o mundo, inclusive no Brasil (Green Building Council Brasil, 200-). Para se obter uma certificação LEED, em primeiro lugar, o projeto da edificação deve ser registrado junto ao certificador para informar se atenderá aos requisitos preestabelecidos e exigidos para atingir a uma determinada pontuação. A certificação só será efetivada após a construção do prédio e a confirmação de que os pré-requisitos tenham sido atendidos. A pontuação é dada segundo os seguintes grupos: sustentabilidade da localização, eficiência no uso da água, eficiência energética e redução das emissões para a atmosfera, otimização dos materiais e dos recursos naturais a serem utilizados na construção e ao longo da vida útil dessas edificações, qualidade dos ambientes internos e inovações empregadas no projeto das edificações. No que diz respeito aos materiais e recursos naturais, são avaliados, entre outros itens, a existência de depósito e coleta de materiais recicláveis, o reuso de edificação ou de parte exis-

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tente, tanto externa quanto interna, a gestão de resíduos da construção e o reuso de materiais (Green Building Council Brasil, 200-).

Certificação Alta Qualidade Ambiental (AQUA) O Processo Alta Qualidade Ambiental (AQUA) é uma certificação que foi adaptada ao Brasil, em 2007, baseada no sistema da Haute Qualité Environmentale (HQE), de origem francesa. É um Processo de Gestão do Projeto, que visa a obter a qualidade ambiental de um empreendimento de construção ou de reabilitação. O certificado, de reconhecimento internacional, é emitido pela entidade nas três fases do empreendimento: o programa, a concepção e a realização. Trata-se de uma certificação baseada na verificação de referencial técnico, definido por padrões de Sistema de Gestão do Empreendimento e Qualidade Ambiental do Edifício e capaz de atender a um conjunto de requisitos específicos e abrangentes de meio ambiente, conforto e saúde. Para obtenção da certificação AQUA, o empreendimento deve atender a 14 categorias da Qualidade Ambiental do Edifício, como a relação do edifício com o entorno, a escolha integrada de produtos, sistemas e processos construtivos, canteiro de obras com baixo impacto ambiental, gestão dos resíduos de uso e operação do edifício, entre outros (FUNDAÇÃO VANZOLINI, 200-). A diferença entre a certificação AQUA e as outras é que ela prioriza a concepção do empreendimento. Seu processo é flexível, pois permite ao empreendedor traçar o perfil ambiental pretendido e definir as soluções do projeto para atingir aos objetivos traçados, estabelecendo a organização e os métodos, os meios e a documentação necessária para obtê-la (FUNDAÇÃO VANZOLINI, 200-).

Selo Casa Azul Ao lançar, no dia 7 de junho de 2010, o Guia de Sustentabilidade Ambiental do Selo Casa Azul, a Caixa Econômica Federal (CEF) colocou, em termos práticos, para a sociedade brasileira o primeiro sistema de certificação habitacional, visando à sustentabilidade dessas edificações. O Selo Casa Azul incentiva o uso racional dos recursos naturais na construção de empreendimentos habitacionais e a redução do custo de manutenção dos edifícios, bem como a promoção da conscientização de empreendedores e moradores sobre as vantagens das construções sustentáveis. Essa certificação se aplica a todos os tipos de projetos de empreendimentos habitacionais propostos à CEF para financiamento ou nos programas de repasse. Para obtê-lo, o proponente (público ou privado) deve solicitar a inclusão de seu empreendimento nesse sistema, para que este venha ser analisado segundo os parâmetros da certificação. São 53 critérios de avaliação, distribuídos em seis categorias que orientam a classificação do projeto: qualidade urbana, projeto e conforto, eficiência energética, conservação de recursos, gestão de água e práticas sociais (JOHN; PRADO, 2010). Entre os critérios ou categorias de avaliação, a preocupação com os RCC está presente no item conservação de recursos

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materiais, em que, dos dez critérios listados, três são obrigatórios: qualidade de materiais e componentes; formas e escoras reutilizáveis; gestão de resíduos de construção e demolição. Os demais itens em que essa preocupação se apresenta são: coordenação modular; componentes industrializados ou pré-fabricados; concreto com dosagem otimizada; cimento de alto forno ou pozolânico; pavimentação com resíduos de construção e demolição; facilidade de manutenção da fachada; e madeira plantada ou certificada. E nas práticas sociais, em que, entre onze listados, são obrigatórios dois critérios: educação para a gestão de resíduos de construção e demolição, e educação ambiental dos empregados (JOHN; PRADO, 2010).

Conclusões Com o crescimento acelerado da construção civil e, consequentemente, com o aumento dos resíduos produzidos, não será possível um desenvolvimento sustentável sem que toda a cadeia produtiva da construção civil sofra transformações significativas. O problema dos resíduos é bem conhecido, mas parece não receber a atenção que merece. As razões podem ser a tendência em subestimar os níveis de resíduos, o custo do seu gerenciamento sobre o valor das obras, a falta de conhecimento sobre o seu reaproveitamento, entre outros. No entanto muitos trabalhos estão sendo desenvolvidos nessa área em todo o mundo. Aqui, pode-se observar que as políticas públicas de resíduos da construção civil não se preocupam com a questão enquanto esta se encontra interna aos canteiros de obra, mas apenas a partir da retirada dos RCC da obra até a disposição final. Tomando-se como exemplo as estratégias adotadas por alguns países, não se pode pensar em agir sobre o problema criando áreas para deposição de resíduos espalhados pela cidade sem que haja uma consciência maior sobre a origem desses resíduos. É preciso atuar na “raiz do problema”, ou seja, desde a elaboração do projeto executivo e, principalmente, dentro dos canteiros de obras. A conscientização dos trabalhadores, a qualificação da mão de obra para manuseio do material, a caracterização e, principalmente, a segregação e o armazenamento adequado dos resíduos quanto às suas características e formas de reciclagem, e a política de reaproveitamento dos materiais dentro da própria obra são fundamentais contribuições para essa questão. As legislações também precisam ser revisadas. Preocupar com os empreendimentos tidos como de impacto, classificando-os quanto à área construída ou número de unidades habitacionais não significa que estão sendo analisados quanto aos impactos gerados pelos resíduos produzidos durante as obras. Obras de reformas internas e, ou, externas, muitas vezes, têm demolições com altos volumes de RCC e nem sempre são caracterizadas como empreendimentos de impacto e, muito menos, têm exigência do Plano de Gerenciamento de Resíduo Sólido. Os resíduos sólidos são tema de pesquisa de muitos trabalhos científicos, cada um observando o assunto sob um ponto de vista diferenciado. Na pesquisa desenvolvida, ainda por desconhe-

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cimento das empresas, tanto das construtoras como das coletoras e, ou, transportadoras dos RCC, houve alguma dificuldade para obtenção de dados. Muitas empresas contatadas não se dispuseram a contribuir, talvez por receio quanto ao que ela pudesse levar. É importante que se dê continuidade às pesquisas, contribuindo como importante e constante fonte de informação e atualização de dados, despertando novas possibilidades.

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Recebido em 29/05/2014 Aprovado em 25/08/2014 Contato do autor: Lygia Prota e-mail [email protected]

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1. Doutora em Geografia Urbana (UFMG) e professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ); arquiteta e urbanista pela UFMG. 2. Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela UFSJ e aluna do Programa Institucional de Iniciação Científica da UFSJ (PIIC/UFSJ – 2013-2014). DOI: 10.5752/P.2316-1752.2014v21n28p66

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Cidade intermediária e rede urbana: o caso de São João del-Rei (MG) Intermediate city and urban network: the case of São João del-Rei, Minas Gerais State Ciudad intermedia y red urbana: el caso de São João del-Rei (MG)

Daniela Abritta Cota1 Ana Carolina Dias Diório2 Resumo Este trabalho objetiva contribuir para a produção científica sobre a temática das cidades intermediárias, com base no estudo de São João del-Rei (MG) e de seu papel na rede urbana brasileira. Baseando-se na análise de dados da Regic (Regiões de Influência de Cidades) 2007, do IBGE, investigamos as relações que o Município em questão estabelece com outras cidades de seu entorno e da região, e sua capacidade de articular os diferentes fluxos, verificando, ao final, o conceito que melhor o classifica em função dessas relações. Palavras-chave: Cidade intermediária. Rede urbana. Regic. São João del-Rei.

Abstract The goal of this study was to investigate intermediate cities based on the case study of São João del-Rei, Minas Gerais State, and its role in the Brazilian urban network. Analyzing the Regic (Regions of Influencies of Cities) 2007 of IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - Brazilian Institute of Geography and Statistics), we looked into how São João del-Rei establishes relationships with surrounding cities and towns and its region and its capacity to articulate different flows to finally determine the concept that best classifies it. Keywords: Intermediate city. Urban network. Regic. São João del-Rei.

Resumen Este trabajo pretende contribuir a la literatura científica sobre el tema de las ciudades intermedias con el estudio de São João del-Rei (MG) y su papel en la red urbana brasileña. Con base en el análisis de datos de la Regic (Regiões de Influência de Cidades) – 2007 (IBGE), buscamos investigar las relaciones que el municipio establece con otras ciudades de la región y sus alrededores, y su capacidad de articular los diferentes flujos, comprobando al final, el concepto que mejor lo clasifica de acuerdo con este tipo de relaciones. Palabras clave: Ciudad intermedia. Red urbana. Regic. São João del-Rei.

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Introdução: cidades médias ou intermediárias/intermédias? Em busca de um aprofundamento teórico-conceitual Muitas pequenas cidades têm reduzido seus papéis e centralidades, tornando-se, muitas vezes, espaços de moradia para as reservas de trabalho; já em outros casos, com menor incidência, vemos que algumas dessas pequenas cidades conseguem incorporar papéis e certo dinamismo, e polarizam cidades menores do seu entorno. De fato, as cidades intermediárias ou intermédias refletem situações locais ou regionais muito diferentes, dependendo de sua localização, integração espacial, de suas estruturas sociais e econômicas e relações com outras cidades, e também das características específicas de seu processo de urbanização. São João del-Rei se enquadra, quantitativamente, na categoria de Município de pequeno porte; qualitativamente, vem apresentado características de cidades de médio porte: 1) crescimento demográfico significativo nos últimos anos, atraindo pessoas em busca de emprego e renda; 2) função de centro polarizador de atividades e articulador de território, tornando-se polo das cidades de seu entorno; e 3) relevância crescente na rede urbana brasileira, sendo considerado um centro sub-regional pela pesquisa Regiões de Influência de Cidades (Regic) 2007, do IBGE. Atualmente, o Município, localizado na porção central de Minas Gerais, tem cerca de 85 mil habitantes, apresentando um crescimento demográfico de cerca de 7% na última década (conforme dados dos Censos de 2000 e 2010). Sua economia é alimentada pelo setor de serviços, tendo a indústria uma participação secundária e menos expressiva, seguidos da agropecuária.3 Pode-se dizer que o serviço de educação contribui significativamente para a atração de pessoas e fluxos para a cidade, especialmente a partir da instituição da Universidade Federal de São João del-Rei, em 2002, e da criação de novos cursos pelo Programa Reuni,4 a partir de 2007. Além da imprecisão conceitual que envolve os termos cidades pequenas e cidades médias, observamos teoricamente outra mudança conceitual (que nos apresenta uma evolução a partir da noção de cidade média ou mediana, ligada ao tamanho da população e extensão física): a de cidade intermediária ou intermédia com base em dimensões qualitativas. Neste item, buscamos revisar a literatura de modo a elaborar um aprofundamento teórico-conceitual sobre cidades médias e intermediárias no sentido de superar a fragilidade acerca dessa temática.

3. Segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2011), o PIB do setor de serviços em São João del-Rei é de 508.832 (valor adicionado), seguido pelo PIB da indústria (193.593) e da agropecuária (43.887), comprovando a significativa contribuição do setor de serviços na economia local. 4. O Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) tem como principal objetivo ampliar o acesso e a permanência na educação superior.

*** As cidades médias vêm sendo tema de interesse político e acadêmico desde as décadas de 1960-1970, quando políticas de ordenamento territorial e de desconcentração populacional e econômica (principalmente na Europa, a exemplo do aménagement du territoire na França) popularizavam-se. Segundo Ferrão, Henriques e Neves (1994), tal situação representava o surgimento de uma nova cultura técnica, sensível à problemá-

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tica regional. Nesse período, a carência de pesquisas, dados e informações sobre essa tipologia de cidade se fez sentir: “quais são estas cidades e o que, de fato, as caracterizam” foi a indagação de muitos pesquisadores da época; fato que, em certa medida, persiste até os dias de hoje. O interesse por essa tipologia de cidade deriva das características que a distinguem das cidades pequenas e das grandes, as quais podemos citar: [...] capacidade de promoção social e econômica conjugada a um inferior índice ou expressão de conflitos e problemas diversos decorrentes do processo de urbanização. Em outros termos, um determinado equilíbrio entre o quantitativo de habitantes e o suprimento das necessidades destes, implicando num certo padrão de funcionalidades, infraestruturas (sic) e equipamentos que as distinguiriam das cidades pequenas e das grandes, porém agregando aspectos qualitativos de ambas que resultariam numa maior qualidade de vida (OLIVEIRA JUNIOR, 2012, p. 1). De imediato, considera-se cidade média como aquela que abriga entre 100 e 500 mil habitantes (ANDRADE; SERRA, 2001). Porém essa vertente que leva em conta apenas a dimensão quantitativa (demográfica) para a classificação e a caracterização de uma cidade como “média” é ultrapassada e atualmente rebatida por diversos autores, a exemplo de Amorim Filho (2007), Soares (2007) e Sposito (2007). Em um momento de profundas transformações sociais e econômicas orientadas pela globalização (em que o território e a sociedade se reconfiguram constantemente), torna-se obrigatória, e necessária, uma redefinição de conceitos. Amorim Filho, em seus estudos realizados em 1973, na Universidade de Bordeaux, demonstra que a posição geográfica da aglomeração e aspectos ligados a suas funções de intermediação dentro das redes urbanas são tão ou mais importantes que o tamanho demográfico na caracterização dessas cidades (AMORIM FILHO, 2007, p. 73). Soares (2007) contribui com a ideia de que a categorização de tamanho demográfico de cidade média varia segundo a região, o país e o período histórico considerado. Sposito (2007, p. 233) acrescenta que a compreensão das cidades médias requer a reflexão sobre as dinâmicas e os processos nos quais se encontram envolvidas, devendo-se observar suas dimensões espaciais e a posição “sempre relativa e transitória dessas cidades” e de seus papéis nas relações entre o espaço intraurbano e o espaço interurbano (rede urbana). Segundo essa autora, as diferentes escalas de análise podem contribuir para o estudo teórico-conceitual das tipologias de cidades e para a avaliação “das formas como a urbanização difusa expressam e dão suporte à ampliação das relações em múltiplas escalas” (SPOSITO, 2007, p. 249). Observa-se, assim, que o termo cidade média, apesar de muito utilizado, não tem definição precisa, levando Corrêa (2007) a considerá-la como um estado transitório. Já para Sposito (2007), a expressão tem sido usada mais como “noção” do que como “conceito”.

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Além da expressão cidade média, outras, como cidade intermediária ou intermédia, cidade de porte médio5 e centro regional ou sub-regional,6 aparecem em diversos estudos. Esse processo de construção e definição do conceito levanta um grande número de dúvidas, sobre as quais refletiremos adiante, buscando o aprofundamento teórico-conceitual ao qual nos propusemos. Soares (2007, p. 465) destaca a importância de se deixar clara a diferença entre uma cidade de porte médio, que considera somente o quantitativo demográfico, e cidades médias, intermediárias ou regionais, que priorizam relações mais complexas, uma vez que “nem toda cidade de porte médio possui as qualidades que podem fazer dela uma cidade funcionalmente média” (AMORIM FILHO; RIGOTTI, 2002, p. 5 apud DIAS; VIDAL, 2012, p. 3). A hierarquia se tornou, então, flexível, uma vez que as interações espaciais se fizeram intensas, complexas, multidirecionais e marcadas pela multiescalaridade (CORRÊA, 2007, p. 30).

5. Terminologia usada em estudos que caracterizam uma cidade de acordo como seu tamanho demográfico (critério quantitativo) e territorial. 6. Terminologia utilizada nos estudos Regic do IBGE 2007 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008).

Para a compreensão do contexto, Oliveira Junior (2012) nos situa no final da década de 1970, quando a reestruturação do processo produtivo sob a crise de acumulação do capital se reflete no espaço urbano, revestindo as cidades médias de novos papéis. Na década de 1980, sob esse novo contexto econômico e de reconfigurações territoriais, o francês Gault introduz uma “nova concepção, mais rica e alargada, que emerge da velha perspectiva e vai tomando o seu lugar” (FERRÃO; HENRIQUES; NEVES, 1994, p. 1128) de cidade média: surge o termo cidade intermédia/intermediária. Na verdade, se a ideia de “cidade média” nos remetia directamente para os números e para os aspectos quantitativos (dimensão em função do número de habitantes e posição no ranking urbano), a noção de “cidade intermédia/intermediária”, pelo contrário, tem implícitos valores de natureza qualitativa; por outras palavras, não é já a dimensão média que caracteriza exclusivamente, ou até de forma fundamental, uma “cidade intermédia/intermediária” (FERRÃO; HENRIQUES; NEVES, p. 1128). Os mesmos autores resumem em três pontos o que o conceito de cidade intermédia/ intermediária tem de realmente novo: • A ideia de que a importância (efectiva e potencial) da cidade releva menos da sua dimensão do que do modo como se articula com as restantes componentes do sistema urbano; • A valorização dos aspectos qualitativos, estratégicos e relacionados com a capacidade de afirmação da cidade ao nível nacional e internacional; • A substituição do sentido estático e rigidamente hierarquizado de sistema urbano por um conceito mais dinâmico e interactivo (FERRÃO; HENRIQUES; NEVES, 1994, p. 7 ou 1129). Oliveira Junior, seguindo análises de Bellet Sanféliu e Llop Torné (2004, 1999 apud OLIVEIRA JUNIOR, 2012, p. 3), acredita que:

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O adjetivo “intermédia” demonstra-se mais “adequado” à utilização para o debate acerca desta categoria de cidades, na medida em que expressa mais apropriadamente o caráter de transição e mediação do que é intermédio ou intermediário, situado e mediando entre os extremos (próximo e distante, pequeno e grande) através do desenvolvimento de funções que mediam escalas complexas e diversas (OLIVEIRA JÚNIOR, 2012, p. 3). Complementando a definição, caracterizam-nas como centros de serviços, desenvolvendo importantes funções de distribuição e intermediação, e dotados de uma série de infraestruturas coletivas, com destaque para a comunicação e o transporte (OLIVEIRA JÚNIOR, 2012, p. 3). O adjetivo intermédia/intermediária, então, não se ampara somente em classificações rígidas e estáticas como a quantitativa. Ao contrário, expande a caracterização dessas cidades, valorizando seus aspectos qualitativos, expressando seu caráter constante de transição e suas importantes funções de intermediação dentro das redes urbanas nas quais estão inseridas, estabelecendo relações entre o local, o regional, o nacional e até o global. Dessa maneira, e seguindo as leituras, interpretações e comparações das diferentes classificações e conceitos existentes, entendemos que a denominação cidade intermédia/intermediária se apresenta como a mais apropriada e consolidada para fazer referência ao grupo de cidades que vêm desenvolvendo importantes papéis dentro das redes nas quais estão inseridas, sendo valorizadas como fator de equilíbrio (para as redes e para as hierarquias urbanas), e também como locais de forte relação e intermediação com as grandes cidades, com as pequenas e com o meio rural (AMORIM FILHO; SERRA, 2001 apud DANTAS; CLEMENTINO, 2012, p. 1) – relações que parecem ocorrer também no caso de São João del-Rei. Essa reflexão não objetiva, de modo algum, demonstrar ou considerar que o porte demográfico de uma cidade é dado desprezível, o que de fato não o é. A chave da questão é, então, compreender uma cidade dentro de um determinado contexto (espacial e temporal) e analisá-la na rede urbana na qual está inserida e com a qual mantém suas relações. É o que buscamos desenvolver adiante neste trabalho para o caso de São João del-Rei. Vale ressaltar, entretanto, que não compõe os desideratos deste artigo discorrer sobre os impactos sofridos pela cidade em relação às demandas impostas pelos municípios de sua rede de influências (análise que merece tempo e espaço oportunos em futuros empreendimentos científicos).

São João del-Rei na rede urbana das Minas coloniais e sua evolução urbana Durante o Período Colonial, o processo de povoamento e de urbanização da Capitania de Minas Gerais apresentou características específicas, um tanto distintas das observadas em outras localidades da colônia. O resultado desse processo foi a conformação de uma rede urbana peculiar “tanto no que

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respeita à sua hierarquia quanto às suas polarizações – naturalmente, mas não exclusivamente, exercidas pelas cidades e vilas – e às articulações existentes em âmbito macro e microrregional” (MORAES, 2007a, p. 62). O rápido povoamento e desenvolvimento da região foi estimulado, em grande parte (mas não exclusivamente), pela descoberta do ouro e das pedras preciosas, atividades que consequentemente incitaram o surgimento de atividades agropecuárias e mercantis. O território foi, pouco a pouco, sendo ocupado de maneiras diversas, gerando aglomerações “articuladas segundo uma estrutura hierárquica dinâmica e complexa” (MORAES, 2007a, p. 65). A mesma autora também destaca: O que também distinguiu e conferiu caráter especial a esse processo de urbanização foi, entre outros aspectos, o seu impacto na estrutura econômica e territorial da Colônia, com o deslocamento do eixo econômico-administrativo para o Centro-Sul e o desenvolvimento de articulações com regiões distantes, integrando mercados, ampliando fronteiras e fortalecendo a unidade territorial interna (MORAES, 2007a, p. 65). Ainda segundo Moraes (2007a), grande parte dos estudos historiográficos mais tradicionais sobre essa Capitania privilegiam e destacam apenas as regiões onde se concentraram as atividades de mineração, ou seja, o centro-sul da Capitania. Entretanto é relevante citar que outros núcleos não envolvidos diretamente nessa economia também foram fundamentais para garantir estabilidade e dinâmica ao mercado interno mineiro a partir do desenvolvimento de atividades diversificadas (MORAES, 2007a). São João del-Rei, objeto deste estudo, é exemplo de Município cuja ocupação foi iniciada a partir da busca pelo ouro nas Minas Gerais, a partir do final do século XVII. Erigida no começo do século XVIII, em 1713, a vila figurou como sede da Comarca de Rio das Mortes, uma das três primeiras em Minas Gerais, e destacou-se pela grande quantidade de ouro explorado através de betas,7 até meados do século XVIII.

7. Minas de ouro escavadas no solo.

Na segunda metade do mesmo século, quando da crise da mineração em todas as regiões da Capitania, o eixo econômico se deslocou para a Comarca de Rio das Mortes “em razão da fertilidade de suas terras e figurando como centro de comércio em expansão” (MORAES, 2007a, p. 80). Em 1838, São João del-Rei foi elevada à categoria de cidade. A partir do século XIX, a cidade se consolidou como importante entreposto comercial, condição que perduraria até meados do século XX. O desenvolvimento expressivo das atividades agropecuárias nessa comarca contribuiu notavelmente na redefinição de algumas linhas da política administrativa e econômica da Capitania, bem como na reestruturação de rotas e hierarquias de sua rede urbana (MORAES, 2007a, p. 80). Na segunda metade do século XVIII, tal crise não chegou a representar o declínio das atividades econômicas da Capitania de Minas Gerais, mas estimulou

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transformações nessas atividades, que se voltaram para o desenvolvimento da produção interna. A cartografia produzida sobre a capitania, sobretudo a partir do último quartel do século XVIII, corrobora tal afirmação e revela a complexidade de uma rede urbana em expansão, que articulava não só as aglomerações mineiras, mas essas com as capitanias adjacentes (MORAES, 2004, p. 3). Diferente de outras cidades mineiras que entraram em decadência econômica nesse período, São João del-Rei desenvolveu-se e diversificou suas atividades econômicas, tornando-se a cidade mineira mais rica na primeira metade do século XIX (PEREIRA, 2009, p. 30), momento marcado também pela expansão e descentralização da rede urbana mineira (MORAES, 2004), com a redivisão das comarcas e a criação de novas vilas (a partir de 1822). Desse processo inicial em que o tempo perigoso das primeiras expedições, o tempo lento dos trajetos abertos pelas boiadas e o tempo alucinante da corrida ouro, caminhos foram abertos, pequenos povoados plantados, forjando uma rede urbana que marcaria indelevelmente os tempos atuais, não só em seus vestígios, mas pelas possibilidades que abriu nos tempos imperiais que se seguiriam. [...] A multiplicação dos arraiais, o fortalecimento de polos regionais, ainda que não reconhecido pela oficialidade de um título de vila ou cidade, o ir e vir cada vez mais intenso fizeram das Minas a urdidura da rede urbana da América Portuguesa, onde o ouro e os diamantes foram motores poderosos porque, antes, deles, a localização central das Minas já insinuava os futuros alinhaves (MORAES, 2007b, p. 18). Tal reflexão demonstra a função histórica de intermediação e distribuição da cidade de São João del-Rei, localizada no seio da atividade mineradora, e suas diferentes articulações estabelecidas em nível local, regional e também nacional. As diferentes vilas, freguesias e arraiais criados nas Minas coloniais se tornaram, então, importantes centros de articulação do território em nível macro e microrregional, tramando a rede urbana base para a rede estabelecida atualmente. Destaca-se o fato de que, posteriormente à época de exploração aurífera, São João del-Rei manteve seu papel como articulador funcional e espacial do território, seja pela função exercida como importante entreposto comercial do Estado, especialmente por manter forte ligação com a então capital brasileira, Rio de Janeiro, seja pela industrialização que alimentou a economia da cidade no final do XIX e na primeira metade do século XX. No ano de 1940, São João del-Rei já contava com uma população urbana quantitativamente igual à rural, diferentemente de muitos centros urbanos nos quais a população rural ainda era predominante (PEREIRA, 2009). A partir da segunda metade do século XX, São João del-Rei reduziu seu raio de influência econômica, sobretudo com a ascensão de outros centros mineiros, como Belo Horizonte e Juiz de Fora (GAIO SOBRINHO, 1997 apud CARNEIRO; SILVA, 2006,

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p. 6). Também a substituição da matriz de transporte ferroviário para o rodoviário, a partir do Governo Kubitschek (1956-1961), começou a ameaçar a posição hegemônica de São João del-Rei como centro regional. A diversificação das atividades, especialmente com a valorização dos serviços de educação e saúde, surgiu como opção para a cidade manter certa influência política e econômica regional (PEREIRA, 2009, p. 38). Assim, segundo o autor, a partir da década de 1940, muitos estabelecimentos de ensino – Instituto Padre Machado (1940), Colégio São João (1940), Grupo Escolar Maria Teresa (ampliado em 1946), Instituto de Filosofia e Pedagogia da Faculdade Dom Bosco (1948), um dos núcleos que viriam a constituir a UFSJ – e de saúde – Santa Casa de Misericórdia (ampliada em 1943), Asilo São Francisco, do Hospital das Mercês (1943) e Centro Regional de Saúde (1952) – se instalaram na cidade. Segundo Cota e Diório (2013), foi também a partir da segunda metade do século XX que a cidade reforçaria seu crescimento urbano disperso e fragmentado, sendo ampliada a ocupação para as extremidades da cidade, tanto a leste (em direção à Colônia do Marçal) quanto a oeste (em direção ao bairro Tijuco), além de apresentar certo adensamento de bairros situados nas encostas próximas da área central, a exemplo do Bonfim, Guarda-Mor, Senhor dos Montes e também do bairro Fábricas. Segundo as autoras, a partir da década de 1960, observa-se também o processo de expansão e consolidação das periferias irregulares ocupadas pela população de baixa renda. Atualmente, São João del-Rei tem a função de um centro urbano-regional e articulador do território, e vem apresentando, desde 2002, um crescimento acelerado e com forte especulação imobiliária, incentivado, em grande parte (mas não exclusivamente), pela ampliação da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), com a criação de novos cursos pelo Programa Reuni, a partir de 2007. Dessa forma, acreditamos que, na atualidade, o serviço de educação contribui significativamente para a atração de pessoas e fluxos para a cidade, reforçando a importância do Município na rede urbana na qual se insere, algo que buscaremos investigar por meio da análise dos dados da Regic 2007 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008).

São João del-Rei na atual rede urbana: análise de dados da Regic A base de dados do IBGE (2008) sobre cidades, intitulada “Região de Influência das Cidades” (Regic), estabelece uma classificação hierárquica dos centros urbanos brasileiros8 e uma delimitação de suas áreas de atuação ou influência. Tal hierarquia identificada considerou para critério classificatório dos centros: 1) em primeiro lugar, a função de gestão do território, avaliando níveis de centralidade do Poder Executivo e do Judiciário no nível federal, e de centralidade empresarial, bem como a presença de diferentes equipamentos e serviços; 2) em segundo lugar, a intensidade de relacionamentos9 entre os centros; e, 3) completando a sequência, a dimensão da região

8. No topo da hierarquia, estão as metrópoles que formam os 12 principais centros urbanos do País; em seguida, aparecem as capitais regionais, 70 centros que se relacionam com o extrato superior da rede urbana; em terceiro lugar na hierarquia, estão os centros sub-regionais, com atividades de gestão menos complexas; em quarto lugar, estão os centros de zona, nível formado por 556 cidades de menor porte e com atuação restrita a sua área imediata; em quinto e último, os centros locais, as demais 4 473 cidades cuja centralidade e atuação não extrapolam os limites do seu Município. 9. A intensidade de relacionamentos é calculada a partir do número de vezes em que, no questionário da pesquisa, o centro foi mencionado como destino.

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de influência de cada centro e também suas diferenças regionais (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008, p. 11). A oferta de serviços e equipamentos, a exemplo de informações de ligações aéreas, de deslocamentos para internações hospitalares, das áreas de cobertura das emissoras de televisão, da oferta de ensino superior, da diversidade de atividades comerciais e de serviços, da oferta de serviços bancários e da presença de domínios de internet, complementa a identificação dos centros de gestão (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008, p. 9). Considerando o critério 1, acima, são considerados centros de gestão do território “aquelas cidades onde se localiza uma grande diversidade de órgãos do Estado e sedes de empresas, a partir das quais são tomadas decisões que afetam direta ou indiretamente um dado espaço” (CORRÊA, 1995 apud INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008, p. 9). Após a identificação dos principais centros da rede, suas regiões de influência são traçadas com base nas interações e intensidade de relacionamentos10 estabelecidos entre as cidades, como já dito anteriormente. O estudo identificou, em todo o território nacional, 12 redes urbanas de primeiro nível11 comandadas pelas metrópoles, sendo uma delas a rede de Belo Horizonte,12 da qual o Estado de Minas Gerais corresponde à sua área de influência, “exceto pela área no sul do Estado, ligada a São Paulo, e as áreas de influência compartilhada – a Zona da Mata com o Rio de Janeiro e parte do Triângulo, com São Paulo” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008, p. 14). Os centros que comandam as 12 redes urbanas identificadas neste trabalho se destacam pelas relações de controle e comando sobre centros de nível inferior, ao propagar decisões, determinar relações e destinar investimentos, especialmente pelas ligações da gestão federal e empresarial (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008, p. 13) Belo Horizonte e sua rede urbana respondem por 9,1% da população e 7,5% do PIB do País. A metrópole concentra 30,5% da população e 40,4% do PIB da rede (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008, p. 14). São João del-Rei, objeto de nosso estudo particular, está sob área de influência dessa metrópole. Ao mesmo tempo, o Município também polariza municípios de menor porte, a maioria situada em suas proximidades, conformando, também, sua área de influência: é realmente uma rede que se tece. Dessa maneira, utilizando-se dos dados do Regic 2007 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008), buscamos compreender como o Município de São João del-Rei se relaciona com sua região de influência e qual função ele desempenha em sua rede urbana. O objetivo principal desta análise é constatar seu papel como cidade intermediária (conforme discutimos no início deste trabalho), verificando informações referentes à economia, à gestão do território e aos relacionamentos existentes.

10. As áreas de influência dos centros foram delineadas com base na intensidade das ligações entre as cidades, em dados secundários e dados obtidos por questionário específico da pesquisa. O questionário preenchido pela Rede de Agências do IBGE, em fins de 2007, investigou: 1) as principais ligações de transportes regulares, em particular as que se dirigem aos centros de gestão; e 2) os principais destinos dos moradores dos municípios pesquisados para obter produtos e serviços (tais como compras em geral, educação superior, aeroportos, serviços de saúde, bem como os fluxos para aquisição de insumos e o destino dos produtos agropecuários) (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008, p. 9). 11. As quais São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia. 12. Para hierarquização dos centros urbanos, as cidades foram classificadas em cinco grandes níveis, por sua vez, subdivididos em dois ou três subníveis. No primeiro nível, as metrópoles se caracterizam por seu grande porte e por fortes relacionamentos entre si, além de terem extensa área de influência direta. Já as capitais regionais têm área de influência de âmbito regional, com capacidade de gestão no nível imediatamente inferior ao das metrópoles. Apresentam três subdivisões: capital regional A, grupo que inclui as capitais estaduais não classificadas no nível metropolitano e Campinas; capitais regionais B e C, que, além da diferenciação de porte, têm padrão de localização regionalizado, a primeira mais presente no Centro-Sul, e a segunda nas demais regiões do País. No terceiro nível da hierarquia, os centros sub-regionais, que têm área de atuação mais reduzida e atividades de gestão menos complexas (entre os níveis 4 e 5 de gestão territorial). Apresentam duas subdivisões, A e B, que se diferenciam pela média de habitantes e intensidade de relacionamentos. A rede urbana de Belo Horizonte é formada pelas capitais regionais B de Juiz de Fora (também ligada ao Rio de Janeiro) e Montes Claros; as capitais regionais C de Divinópolis, Governador Valadares, Ipatinga-Coronel Fabriciano-Timóteo, Teófilo Otoni, Varginha e Uberaba (também ligada a São Paulo); os centros sub-regionais A de Barbacena, Muriaé, Ubá, Patos de Minas, Lavras, Manhuaçu, Passos e Ponte Nova; e os Centros sub-regionais B Cataguases, Janaúba, Caratinga, São Lourenço, Viçosa, Conselheiro Lafaiete e São João del-Rei.

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*** Estrategicamente localizado a aproximadamente 180 km da capital mineira, Belo Horizonte, e praticamente equidistante de duas principais rodovias brasileiras (a BR 040 – MG-RJ; e a BR 381 – MG-SP), São João del-Rei acaba polarizando municípios de seu entorno imediato, atraindo para si populações vizinhas em busca de serviços e produtos.13 Pela base de dados do Regic, o Município em questão é considerado um centro sub-regional B.14 Em termos econômicos, o setor terciário se destaca com mais de 60% de participação no PIB do Município, seguido pela indústria (24%). A participação do setor público no Município – com destaque para a presença da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e, mais recente, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais (IFET) –, também é significativa. Entretanto os dados registram apenas a contribuição desse setor até 2007, algo que cresceu nos últimos anos e que não aparece na base analisada. Os números levantados em 2007 podem ser observados no QUADRO 1, a seguir.

13. Veremos adiante que os municípios que estabelecem relações com São João del-Rei são Andrelândia, Barroso, Bom Sucesso, Carrancas, Conceição da Barra de Minas, Coronel Xavier Chaves, Desterro de Entre Rios, Dores de Campos, Entre Rios de Minas, Ibituruna, Itumirim, Itutinga, Jeceaba, Lagoa Dourada, Madre de Deus de Minas, Nazareno, Piedade do Rio Grande, Prados, Resende Costa, Ritápolis, Santa Cruz de Minas, Santos Dumont, São Brás do Suaçuí, São Tiago, São Vicente de Minas, Tiradentes, Tocantins, Visconde do Rio Branco. Entretanto nem todos fazem parte de sua área de influência imediata, conforme dados da Regic 2007 (cf. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008).

Quadro 1 - PIB de São João del-Rei MUNICÍPIO

PIB TOTAL

AGROPECUÁRIO

INDUSTRIAL

SERVIÇOS

IMPOSTOS

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

São João del-Rei

600.106,145

28.597,827

145.191,756

369.454,428

56.862,134

86.049,068

Fonte: Banco de dados Regic 2007 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008).

Como vimos, a primeira variável considerada pelo IBGE para a identificação e hierarquização dos centros urbanos é a função de gestão do território, característica que depende, de um lado, da localização de diversos órgãos do Estado (Poder Executivo e Poder Judiciário)15 e, de outro, da localização de sedes de empresas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008, p. 131). Os níveis de gestão quantificados pelo IBGE (quanto mais próximo de 1, mais forte) para São João del-Rei são típicos de um centro sub-regional, os quais exercem atividades de gestão menos complexas. Quadro 2 - Nível de Centralidade. MUNICÍPIO

GESTÃO TERRITORIAL1

GESTÃO FEDERAL2

GESTÃO EMPRESARIAL3

São João del-Rei

5

6

7

(1) Intervalo de 1 a 6; (2) intervalo de 1 a 8; (3) intervalo de 1 a 8. Fonte: Banco de dados Regic 2007 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008).

Outra variável considerada na classificação dos centros é a intensidade de relacionamentos estabelecidos com demais municípios da região, calculada com base no número de vezes em que o centro em estudo foi mencionado no questionário da pesquisa como “destino” para diversas atividades (saúde, lazer, cursos, compras, aeroporto, transporte, insumos e ou-

14. Algumas variações de classificação ocorreram entre diferentes estudos, nas diferentes épocas: no primeiro estudo realizado pelo IBGE, em 1966, sobre a rede urbana, São João del-Rei foi considerado como centro sub-regional A; no estudo de 1978, o Município apareceu como centro sub-regional e, em 1993, foi classificado com nível de centralidade 5 (forte para médio). Já em 2007, ele aparece como centro subregional B (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008). 15. Para exemplificar, destacamos que São João del-Rei tem escritórios regionais de órgãos estaduais (como da Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais) e federais (como o Escritório do IPHAN e do Ministério Público Federal - MPF/Procuradoria da República). Destaca-se, entretanto, que a sede da Procuradoria da República no Município entrou em funcionamento somente em fevereiro de 2010, fato que nos leva a concluir que tal função de gestão tem se consolidado e ampliado a partir deste registro da Regic.

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tras). Essa variável mostra a importância do centro como prestador de serviços para os municípios vizinhos, principalmente de educação, saúde e transporte, seguidos por compras e lazer. A intensidade de relacionamentos estabelecidos entre São João del-Rei e os municípios de seu entorno podem ser observados no GRÁF. 1. Gráfico 1 - Intensidade de Relacionamentos.

24

20

20

19

19

15

14

12

9

Cursos

Saúde

Transporte

Compras

Lazer

Aeroportos

Insumos

Jornal

Produtos

Relacionamentos

129

Fonte: Banco de dados Regic 2007 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008). Elaboração: Ana Carolina Dias Diório, 2013.

Os municípios que citaram São João del-Rei como “destino” para a realização das atividades relatadas no gráfico acima conformam uma rede16 que abrange, no total, 28 municípios listados no QUADRO 3. Quadro 3 - Municípios que mantêm relações com São João del-Rei

16. Consideramos todos os Municípios que citaram São João del-Rei como destino para pelo menos 01 (uma) das atividades listadas no gráfico 1 de relacionamentos.

SÃO JOÃO DEL-REI Andrelândia

Madre de Deus de Minas*

Barroso

Nazareno*

Bom Sucesso

Piedade do Rio Grande*

Carrancas

Prados*

Conceição da Barra de Minas*

Resende Costa*

Coronel Xavier Chaves*

Ritápolis*

Desterro de Entre Rios

Santa Cruz de Minas*

Dores de Campos

Santos Dumont

Entre Rios de Minas

São Brás do Suaçuí

Ibituruna

São Tiago*

Itumirim

São Vicente de Minas*

Itutinga

Tiradentes*

Jeceaba

Tocantins

Lagoa Dourada*

Visconde do Rio Branco

*Municípios que estão na área de influência da rede urbana de São João del-Rei, cf. Regic 2007 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008). Fonte: Banco de dados Regic 2007 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008). Elaboração: Ana Carolina Dias Diório, 2013.

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O estudo da Regic considera 13 desses municípios sob a área de influência do Centro Sub-Regional B São João del-Rei. O critério empregado para delinear as áreas de influência dos centros é a intensidade das ligações (medida em ordens de 1 – mais forte – a 4 – mais fraca) entre as cidades, ou seja, a vinculação de um Município a um centro é definida considerando-se o maior número de ligações de primeira e segunda ordem (somadas), o maior número de ligações de primeira ordem e o maior número de ligações de qualquer ordem (IBGE, 2008, p. 140). Para tanto, trata-se da combinação entre duas redes de ligações diferentes: a dos centros de gestão e a das informações do questionário (as últimas para os municípios que não foram classificados como centro de gestão). Para investigar a articulação entre os centros de gestão foram considerados os seguintes eixos: gestão pública/federal, gestão empresarial e serviços de saúde. Observamos, no QUADRO 4, as intensidades das relações estabelecidas pelo Município de São João del-Rei com centros de maior hierarquia. Quadro 4 - Ligação entre centros de gestão do território MUNICÍPIO

MUNICÍPIO DESTINO

GESTÃO FEDERAL*

GESTÃO EMPRESARIAL*

SAÚDE*

SÃO JOÃO DEL-REI

BELO HORIZONTE

1

2

2

SÃO JOÃO DEL-REI

BARBACENA

2

1

3

SÃO JOÃO DEL-REI

JUIZ DE FORA

3

4

1

SÃO JOÃO DEL-REI

SÃO PAULO

-

3

4

* Intervalos de ligação da ordem de 1 a 4. Fonte: Banco de dados (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008).

Sobre as relações de São João del-Rei com centros de mais alto nível, observamos que o Município está sob a área de influência da metrópole Belo Horizonte, uma vez que com ela estabelece o maior número de ligações de primeira e segunda ordem, as mais fortes. Ressalta-se que o estudo da Regic não aborda a relação de São João del-Rei com a metrópole Rio de Janeiro, localizada em outro Estado, mas com a qual o Município estudado estabelece um relacionamento histórico. Importantes relações são igualmente observadas com o centro sub-regional vizinho, Barbacena, principalmente em nível de gestão empresarial, e com a capital regional B, Juiz de Fora, para serviços de saúde. Ligações mais fracas são estabelecidas com outros centros da hierarquia urbana, como observadas no QUADRO 4. Podemos observar, pelos dados dos municípios que citaram São João del-Rei como destino para obtenção de produtos e serviços específicos (QUADRO 3), que as relações estabelecidas com os 13 municípios que estão sob sua área de influência são sempre fortes, de ordem 1 ou 2.17 Já as cidades que estabelecem relação com São João del-Rei e que estão fora de sua área de influência, uma vez que vinculadas a centros com quais estabelecem relações mais intensas (15 municípios, cf. QUADRO 3), procuram-na principalmente para as atividades de educação/cursos, mencionada por 12 dentre os 15 municí-

17. Lembrando que a intensidade das relações entre os municípios são medidas em ordens de 1 – mais forte – a 4 – mais fraca.

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pios.18 Lazer e saúde aparecem em segundo lugar, mencionados 7 vezes cada.19 A atividade de compras é citada por seis dos municípios (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008), tendo em vista seu comércio bem desenvolvido, função urbana inclusive histórica, conforme vimos anteriormente. O fato de São João del-Rei possuir rodoviária com saídas de ônibus para as capitais mais próximas (Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo) e um aeroporto inaugurado em 2007 (ambos representando o serviço de transporte) também justifica, mesmo que de forma menos expressiva, a sua relação com municípios integrantes de áreas de influência de outros centros sub-regionais, tendo sido mencionado por 5 dentre os 15 municípios. Uma rede urbana estruturada e bem hierarquizada, contando com um significativo número de metrópoles, capitais regionais e centros sub-regionais, com grande articulação entre si, é característica da região centro-sul do País (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008, p. 13), onde se situa nosso objeto de pesquisa. Tal diversidade de níveis hierárquicos resulta em uma maior dispersão da oferta de equipamentos e serviços pelo território e, consequentemente, em diferentes focos de polarização. Em nosso caso específico, o papel de São João del-Rei é ainda mais notável quando destacamos que a menos de 100 km de distância, em diferentes direções, localizam-se dois centros sub-regionais A: Lavras e Barbacena, polos atrativos que “concorrem” com o Município em questão na polarização de municípios de menor porte.20 As análises ora esboçadas nos permitem verificar que o Município de São João del-Rei, sob as relações de distribuição, atração, promoção de serviços e fluxos de pessoas que estabelece com seus municípios vizinhos e com outros centros de mais alto nível da hierarquia, vem desempenhando, de fato, um papel de cidade intermediária na rede urbana na qual está inserido.

18. Como citado no item anterior, tanto a ampliação da oferta de cursos da UFSJ quanto a abertura de novos estabelecimentos de ensino – IFET, faculdade particular, como o IPTAN, e outros – têm contribuído para atrair pessoas dos municípios próximos que se deslocam para usufruir o serviço de educação disponibilizado na cidade. Além disso, muitos professores optam por residir na cidade, fato que tem contribuído para a expansão da produção imobiliária na cidade, com destaque para os lucrativos produtos imobiliários direcionados especialmente aos segmentos de média renda da população. Sobre este assunto, consultar Cota e Diório (2013). 19. A instalação da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) na cidade assim como a existência de dois grandes hospitais (Santa Casa e Hospital das Mercês) tornam São João del-Rei um polo para o atendimento pelo serviço de saúde. Da mesma forma, a oferta de opções de lazer – shows, estabelecimentos culturais, festas religiosas, etc. – reforçam a posição do Município estudado como centro polarizador para o exercício dessa função urbana. 20. Para fins de conhecimento, Lavras estabelece, no total, 104 relacionamentos e Barbacena, 146 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008).

São João del-Rei sob as análises de outros estudos Com base nas ideias de diferentes autores que apresentamos anteriormente, observa-se que a cidade de São João del-Rei vem, qualitativamente, apresentando características funcionais diferenciadas e desempenhando importantes funções dentro da rede urbana da qual faz parte. Tais características, combinadas e analisadas sob a realidade regional na qual a cidade de São João del-Rei se encontra, são fundamentais para o entendimento de sua dinâmica como cidade intermediária e permitirá atribuí-la essa classificação. Oliveira Júnior (2012) coloca que: As cidades intermédias possuem, contudo não como regra, um vínculo ou uma relação mais estreita e intensa com a sua hinterlândia no que tange a fluxos de pessoas, mercadorias, lazer, empregos, dentre outros, bem como a respeito de questões sociais e culturais, o que assegura a estas cidades uma articulação privilegiada com as escalas local e regional (OLIVEIRA JUNIOR, 2012, p. 4).

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E ressalta: Cidades intermédias desempenham funções de distribuição e intermediação, constituindo-se em centros de determinados serviços (saúde, lazer, comércio, empregos, etc.) e equipamentos que estas cidades provêm não apenas para os habitantes que nela residem, mas também para os núcleos urbanos e rurais que são por ela polarizados e consolidam sua área de influência. Além dessas questões, merecem destaque as infraestruturas de transportes e comunicações (OLIVEIRA JUNIOR, 2012, p. 4). Tais informações foram observadas e esmiuçadas anteriormente a partir do estudo do IBGE sobre cidades, o Regic 2007. Já no estudo “Tipologia das cidades” (BITOUN; MIRANDA, 2009), São João del-Rei, entre os conjuntos de microrregiões identificados pela Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) de 2003 (cf. (BITOUN; MIRANDA, 2009), aparece no tipo microrregional 3,21 definida como de “média densidade econômica”. O estudo mostra, também, que diversos municípios22 fazem parte de sua microrregião, o que reforça seu papel de centro polarizador dentro de sua área de influência. Dentro de seu tipo microrregional, é classificado como de classe A, que se refere a “centros urbanos em espaços rurais onde houve no passado alguma acumulação de riqueza, mas que pode estar em situação de decadência” (situação observada em São João del-Rei); e que apresenta “uma vida urbana consolidada gerando diferenciação social interna” (BITOUN; MIRANDA, 2009, p. 129). Características interessantes, que, se analisadas em conjunto com a evolução da rede urbana nas minas coloniais, podem nos dizer um pouco mais sobre seu papel (histórico) de intermediação em sua rede urbana. Desde o final da década de 1970, Amorim Filho e associados realizaram três classificações (1982, 1999 e 2006) das cidades médias de Minas Gerais, identificando quatro níveis hierárquicos: grandes centros regionais, cidades médias de nível superior, cidades médias propriamente ditas e centros urbanos emergentes (AMORIM FILHO; RIGOTTI; CAMPOS, 2007). Esse trabalho incluiu no universo de análise todas as cidades do Estado que tivessem 10 mil habitantes ou mais na sede municipal, com exclusão daquelas que fizessem parte da Região Metropolitana de Belo Horizonte. A escolha do limiar demográfico inferior para classificações das cidades médias deu-se com o intuito de trabalhar com a menor margem de erro possível, uma vez que, conforme já defendido anteriormente por outros autores como Soares (2007), considerando-se a situação geográfica e as condições socioeconômicas da região onde se situa a cidade, funções características das cidades médias podem ser exercidas por cidades com número inferior de habitantes (AMORIM FILHO; BUENO; ABREU, 1982 apud AMORIM FILHO; RIGOTTI; CAMPOS, 2007). Com isso, em um total de 722 cidades em todo o Estado, foram selecionadas 102 cidades para classificação (AMORIM FILHO; RIGOTTI; CAMPOS, 2007, p. 8), sendo São João del-Rei, objeto de nosso estudo particular, uma dessas cidades. São

21. A PNDR (2003) identificou, no território nacional, para fins de definição de políticas de desenvolvimento regional, quatro conjuntos de microrregiões, correspondendo a quatro situações econômicas. Nosso objeto de estudo para este trabalho aparece na microrregião de tipo 3, “caracterizado por um médio estoque de riqueza acumulada e por uma variação positiva de intensidade média ou baixa do PIB. Essas microrregiões situam-se em todas as Grandes Regiões do país. Ambos esses conjuntos de microrregiões apresentam, portanto, uma densidade econômica expressa pelo estoque de riqueza que lá se acumulou durante o processo de desenvolvimento do país, independentemente do padrão social de distribuição dessa riqueza” (BITOUN; MIRANDA, 2009, p. 21). 22. Tiradentes, Madre de Deus de Minas, Lagoa Dourada, Santa Cruz de Minas, Dores de Campos, Prados, Coronel Xavier Chaves, Resende Costa, Ritápolis, Santana do Garambeu e Nazareno.

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João del-Rei encontra-se, nas três diferentes classificações (1982, 1999 e 2006), no grupo “cidades médias propriamente ditas”, definido pelos autores como: Aquelas com características mais intermediárias, quando se trata do tamanho demográfico, da hierarquia e das funções econômicas. Em termos demográficos, há heterogeneidade neste nível hierárquico, mas as cidades aqui incluídas se encontram em sua quase totalidade com população entre 20.000 e 100.000 habitantes (AMORIM FILHO; RIGOTTI; CAMPOS, 2007, p. 9, grifo nosso) E completam: Em suas relações externas, as cidades incluídas no grupo das médias (propriamente ditas) são caracterizadas por certos aspectos bem peculiares. De um lado, tendo em vista seu nível atual de desenvolvimento econômico, sua posição geográfica sempre nos eixos ou entroncamentos principais das vias de comunicação, essas cidades mantêm relações importantes com centros maiores [...]. De outro lado, essas cidades médias continuam a manter relações intensas, constantes e diretas com as cidades menores e com o espaço microrregional a elas ligado. É essa função de ligação entre o espaço rural e as pequenas cidades microrregionais, de uma parte, e os centros urbanos mais importantes, de outra, que constitui a própria essência dessa noção de cidade média, tão bem identificada nesse grupo de cidades (AMORIM FILHO; BUENO; ABREU, 1982, p. 43 apud AMORIM FILHO; RIGOTTI; CAMPOS, 2007, p. 9). Coincidentemente (ou não), o adjetivo intermediárias também aparece na definição das características de cidades médias propriamente ditas, apresentada anteriormente. Ferrão, Henriques e Neves (1994, p. 1128) definem, em seu trabalho, que “Uma situação ‘intermédia’ é um momento numa trajectória, uma posição que precede uma outra, a construir ou a conquistar” e destacam o sentido de movimento e dinamismo que a expressão sugere. Bellet Sanféliu e Llop Torné (2004 apud OLIVEIRA JUNIOR, 2012, p. 3), refletindo sobre a mesma expressão, “consideram que esse adjetivo dilata o significado da denominação que ele substitui”, no caso, o adjetivo média. Percebe-se que as características de cidade intermédia/intermediária, destacadas por autores como Oliveira Júnior (2012) e Ferrão, Henriques e Neves (1994) e outros, coincidem com as características da cidade média propriamente dita apresentada por Amorim Filho, Rigotti e Campos (2007), principalmente no que toca em sua função de “intermediação entre os espaços locais e os espaços regionais, nacionais e, em alguns casos, inclusive globais” (SANFÉLIU; TORNÉ, 2004 apud OLIVEIRA JUNIOR, 2012, p. 3), seus aspectos qualitativos e sua posição geográfica privilegiada de articulação e intermediação. Dessa maneira, acreditamos que a denominação cidade intermédia/ intermediária seja a mais adequada para o caso de São João Del Rei, já que este município estabelece forte relação e intermediação com as grandes cidades, com as médias e com

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as pequenas situadas em seu entorno, conforme identificamos, nesta pesquisa.

Considerações finais Retomando o debate téorico-conceitual desenvolvido na primeira parte deste trabalho e analisando as funções do Município de São João del-Rei em sua rede urbana com base nas análises do estudo da Regic 2007 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2008), observamos atributos típicos a uma cidade intermediária: características qualitativas peculiares, apresentando-se como importante centro de serviços e equipamentos para os municípios vizinhos de menor porte; articulador de outros componentes da rede urbana ao desenvolver a função de polarização e intermediação entre diferentes núcleos urbanos e níveis hierárquicos. Sua área de influência direta (13 municípios), embora não tão expressiva numericamente, amplia-se consideravelmente se considerarmos, de fato, todos os municípios que com ele mantêm relações, confirmando sua importância como centro prestador de serviços, atividades e equipamentos para a região, com destaque àqueles relacionados à educação/cursos. Ou seja, a consolidação da UFSJ parece, de fato, contribuir para reforçar as relações de São João del-Rei com municípios de seu entorno. Ressaltamos que a ampliação dessa universidade, com a abertura de novos cursos a partir de 2007, tende a ampliar a quantidade de relacionamentos com os municípios com os quais São João del-Rei mantém relações; algo que careceria de investigação com a atualização da Regic. Sua posição geográfica, a menos de 200 km da capital do Estado e com fácil acesso às rodovias que dão acesso a São Paulo e ao Rio de Janeiro, justifica, além disso, as relações estabelecidas com os centros de mais alto nível da hierarquia, com destaque àquelas com a metrópole Belo Horizonte, de cuja rede urbana é integrante. Uma vez que a dimensão (quantitativa ou demográfica) da cidade não é mais a informação-chave para a caracterização ou classificação das cidades, já que o modo pelo qual ela se articula dentro de seu sistema urbano, suas características peculiares, funções e relações desenvolvidas aparecem como quesitos mais importantes e dinâmicos a serem analisados, julgamos pertinente classificar São João del-Rei como uma cidade intermédia/intermediária, adjetivo que valoriza suas características e reafirma sua função dentro de sua rede urbana. Além disso, acreditamos que as conclusões dos estudos ora realizados são fundamentais para se pensar em formas de gestão compartilhada entre os municípios e subsidiar futuras ações de planejamento urbano-regional. Por último, ressalta-se que, apesar de não ser objetivo deste trabalho, acreditamos que este estudo possa ser complementado com novos investimentos científicos que se disponham a avaliar os impactos intraurbanos resultantes dessa polarização exercida por São João del-Rei diante das demandas incorporadas pelo seu papel na rede urbana na qual se insere.

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Recebido em 08/04/2014 Aprovado em 04/08/2014 Contato dos autores: Daniela Abrita Cota e-mail: [email protected] Ana Carolina Dias Diório e-mail: [email protected]

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1. Arquiteta urbanista e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco. DOI: 10.5752/P.2316-1752.2014v21n28p86

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Robert Smith, diálogos e pesquisas no Brasil Robert Smith, dialogues and research in Brazil Robert Smith, diálogos y investigaciones en Brasil

Cecilia Ribeiro1 Resumo Este artigo aborda a interlocução do americano Robert Smith com representantes do Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN), principalmente Rodrigo Melo Franco de Andrade, destacando o apoio dado por essa instituição brasileira para os levantamentos, estudos, conhecimento e divulgação da arte brasileira no Brasil e no exterior. Essa interlocução foi iniciada logo em 1937, ano da criação da instituição, o que marcou um ciclo em que historiadores da arte estrangeiros vinham ao Brasil, interessados em conhecer, estudar e difundir a arte brasileira. Palavras-chave: Robert Smith. IPHAN. Rodrigo Melo Franco de Andrade. Arte brasileira.

Abstract This article covers the dialogue of American Robert Smith with representatives of the Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN), especially Rodrigo Melo Franco de Andrade, highlighting the support given by this Brazilian institution for surveys, studies, and dissemination of knowledge in Brazilian art Brazil and abroad. This dialogue was initiated early in 1937, the year of establishment of the institution, which scored a cycle in which art historians of foreigners coming to Brazil interested in knowing, studying and disseminating Brazilian art. Keywords: Robert Smith. IPHAN. Rodrigo Melo Franco de Andrade. Brazilian Art.

Resumen Este artículo aborda el diálogo del estadounidense Robert Smith con representantes del Instituto de Patrimonio Artístico Nacional (IPHAN), especialmente Rodrigo Melo Franco de Andrade, destacando el apoyo de esta institución brasileña en los estudios, conocimientos, encuestas y difusión del arte brasileño en Brasil y en el extranjero. Este diálogo empezó a principios de 1937, año en el que se creó la institución, y que marcó un ciclo en el que historiadores del arte extranjeros venían a Brasil interesados en conocer, estudiar y difundir el arte brasileño. Palabras-claves: Robert Smith. IPHAN. Rodrigo Melo Franco de Andrade. Arte brasileño.

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Introdução No Brasil, a cooperação técnica internacional se difundiu bastante no século XX, quando ocorreram, por exemplo, as missões de professores franceses na Universidade de São Paulo, na década de 1930, de modo a integrar um corpo docente em formação para atuar e multiplicar essa atuação, e a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico, criada em 1951 e encerrada em 1953, durante o segundo Governo de Vargas, que pretendia, por meio da cooperação bilateral, formar quadros, além de elaborar estudos e planos. A interlocução do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)2 com técnicos estrangeiros foi iniciada logo em 1937, ano da criação da instituição, com a vinda do americano Robert Smith, o que marcou um ciclo em que historiadores da arte estrangeiros vinham ao Brasil, interessados em conhecer, estudar e difundir a arte brasileira. Vale destacar que, antes mesmo da institucionalização das práticas protecionistas, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars circulou entre os modernistas paulistas, como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, e, após viagem com o grupo às cidades históricas de Minas Gerais, redigiu o estatuto da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil, que não chegou a ser criado (NOGUEIRA, 2005). Vieram ao Brasil, entre as décadas de 1930 e 1960, por exemplo, além de Smith, o francês Germain Bazin,3 os portugueses Mário Chicó4 e João Miguel dos Santos Simões,5 o inglês John Bernard Bury6 e a alemã Hanna Levy.7 Desses, destaca-se aqui Robert Smith, que manteve uma interlocução com o IPHAN por três décadas (de 1937 a 1970), para promover estudos, pesquisas, trabalhos, exposições, cursos e palestras não só aqui como no exterior, em que abordava a arte brasileira e suas fontes de pesquisa. Assim, neste artigo, essa interlocução é relacionada com a de Germain Bazin, e, desse modo, a discussão entre eles é evidenciada pelo modo como ocorreu e pela busca de apoio para pesquisas e estudos e a divulgação da arte brasileira, que ocorria mais por vínculos pessoais do que entre instituições. As principais fontes da pesquisa estão no Arquivo Central do IPHAN, Seção Rio de Janeiro. A pasta referente a Robert Smith, na série “Assuntos internacionais”, revelou uma correspondência bastante rica em discussões sobre arquivos, fontes e métodos de pesquisa, informações sobre a arte brasileira, trocas de favores, além de uma amizade com Rodrigo Melo Franco de Andrade. Não se pretende aqui destacar as contribuições para a História da Arte, mas sim identificar os caminhos percorridos, as negociações, trocas que possibilitaram as suas pesquisas no País, de modo a contribuir para uma compreensão sobre o papel dos colaboradores estrangeiros no IPHAN.

2. Em 1937, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) que, em 1946, teve a sua denominação modificada para Diretoria (DPHAN). Em 1970, houve outra mudança, e a então diretoria passou a ser considerada instituto, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Essa denominação ainda mudou mais três vezes e, desde 1994, a instituição voltou a ser chamada IPHAN. Tendo em vista essas mudanças, adotou-se o critério de, neste artigo, chamar a instituição por IPHAN. 3. Germain Bazin (1901-1990) tinha como formação História da Arte e Museologia, tendo sido conservador e chefe do serviço de restauração de pinturas do Museu do Louvre e diretor da revista francesa L’amour de l’art. Até a sua primeira vinda ao Brasil, os seus estudos, pesquisas e publicações se centravam na História da Arte do Período Medieval e da época Contemporânea (séculos XIX e XX). Bazin colaborou com a identificação da arte brasileira, especificamente nos estudos sobre o barroco, por meio de palestras, conferências e da publicação de livros no Brasil e no exterior. 4. Mário Chicó (1905-1966) era historiador da arte e museólogo e ocupou o cargo de diretor do Museu Regional de Évora, em Portugal. Teve uma experiência vasta na organização de exposições sobre a arte portuguesa no mundo, e o Brasil foi um campo privilegiado para suas atuações. Aqui, organizou exposições sobre a arte portuguesa e, em Portugal, sobre a arte brasileira. Em algumas delas, inclusive, comparou situações e representações, nas quais destacava a similaridade entre a arte dos dois países. A primeira vinda de Chicó, em 1954, ocorreu por conta de sua participação no II Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, em São Paulo, onde apresentou a exposição “Monumentos do Sul de Portugal (séc.XVI, XVII e XVIII)”. Nessa ocasião, entrou em contato com Rodrigo e o IPHAN, e, a partir de então, manteve uma estreita interação até 1965.

Viagens, pesquisas e trocas Para Augusto Silva Telles, arquiteto que trabalhou no IPHAN entre as décadas de 1950 e 1980, “Seriam [os] historiadores estrangeiros os primeiros a realizar sínteses gerais da arquite-

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tura barroca brasileira, como, por exemplo, o americano Robert Smith” (apud CHUVA, 2009, p. 259). Isso se explica pelo fato de que, nos primeiros anos da citada instituição, havia a necessidade de identificar e entender o que era a arte brasileira e como esta poderia estar situada em relação à História da Arte. Segundo Maria Lucia Pinheiro, o contexto era o do desconhecimento “dos bens que constituíam tal patrimônio”, no qual se destacavam os estudos promovidos pelos neocolonialistas, do qual Lucio Costa fez parte, já que “o estudo da arquitetura brasileira sequer fazia parte do currículo dos cursos de arquitetura existentes então; e só veio a ser incluído neles muito mais tarde” (PINHEIRO, 2006, p. 10). Já Nestor Goulart Reis Filho afirmou que “as únicas evidências disponíveis da importância artística do Período Colonial e dos primeiros anos do século XIX eram as próprias obras, cujo valor apenas começava a ser reconhecido” (REIS FILHO, 2012, p. 14). Assim, no primeiro número da “Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional” (“Revista do Patrimônio”), de 1937, Rodrigo Melo Franco de Andrade considerou que havia a “necessidade de uma ação sistemática e continuada com o objetivo de dilatar e tornar mais seguro e apurado o conhecimento dos valores de arte e de história de nosso país”, e que os estudos que existiam até então eram considerados “quase primários” (ANDRADE, 1937, p. 2-3). Robert Smith (1912-1975) era historiador, tendo se formado e doutorado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Em 1933, concluiu o seu mestrado e, em 1936, defendeu a sua tese de doutorado, “The architecture of João Frederico Ludovice and some his contemporaries at Lisbon, 1700-1750”, abordando um tema inédito, já que a “História da Arte do mundo luso” era ainda um “território inexplorado nos Estados Unidos” (BUENO, 2012, p. 25). Trabalhou como keeper archive of hispanic culture da Biblioteca do Congresso em Washington, antes de começar a lecionar, em 1947, na School of Fine Arts da Universidade da Pensilvânia, onde foi promovido a professor catedrático em 1956. Era especialista e pesquisador da arte e da Arquitetura luso-brasileira. Realizou conferências e cursos, e publicou artigos e livros em Portugal e no Brasil, bem como publicou artigos diversos nos Estados Unidos, na Argentina e na Inglaterra. Em 1955, recebeu do Governo brasileiro a Ordem do Cruzeiro do Sul. Smith veio ao Brasil pela primeira vez em 1937, aos 25 anos, sob os auspícios do American Council of Learned Societies. Passou quatro meses (entre abril e julho) estudando, pesquisando e registrando a arte do Período Colonial, entre as cidades do Rio de Janeiro, Ouro Preto, Mariana, São Paulo, Santos, Salvador, Recife, João Pessoa, São Luís e Belém. Aqui conheceu Rodrigo Melo Franco de Andrade, que iniciava os trabalhos no IPHAN, instituição recém-criada como SPHAN. Sobre esse momento, Smith afirmou: “Conheci-o, primeiro em 1937, quando visitava os velhos sítios do Brasil colonial e lá descobria a maravilha da transplantação do barroco português”. Sobre o encontro, Rodrigo teria dito a Smith: “O Senhor, que conhece a arte portuguesa, pode ser-nos útil aqui no Brasil” (SMITH, 1969b, p. 133).

5. João Miguel dos Santos Simões (1907-1972) era especialista no estudo de azulejos em Portugal. Veio ao Brasil em 1959, 1962, 1964 e 1968, onde ministrou cursos e conferências, fez pesquisas e levantamentos. No Brasil, publicou os seguintes textos: “Azulejaria no Brasil”, na Revista do Patrimônio (n. 14, 1959); “Azulejos holandeses no convento de Santo António do Recife”, nos Cadernos de Arte do Nordeste (n. 3, 1959); e “A propósito dos azulejos do Paço do Saldanha”, no jornal “A Tarde”, de Salvador-BA, em 8 de julho de 1967 (João Miguel dos Santos Simões. Disponível em: . Acesso: 17 abr. 2013). 6. John Bury esteve no Brasil por 14 meses, entre 1947 e 1948, a serviço de uma companhia internacional de petróleo. Após voltar para a Inglaterra, proferiu palestras em museus e universidades, e publicou alguns artigos, como “The Aleijadinho” (1949), na revista “The Cornhill”; e “The twelve profetes at Congonhas do Campo” (1949), na revista “The Month”. No entanto teve pouca interlocução com o IPHAN, embora tenha tido um reconhecimento tardio desta instituição, com a publicação de uma coletânea de seus textos em 1991, atualizada e revista em 2006, “Arquitetura e arte no Brasil colonial”. 7. Hanna Levy (1912-1984) estudou História da Arte na Sorbonne, em Paris, e, em 1937, veio morar no Brasil, onde ficou até 1947, quando migrou para os Estados Unidos. No período de 1937 a 1940, ministrou um curso de História da Arte para os funcionários do IPHAN e, entre 1940 e 1947, como contratada da instituição, foi responsável por pesquisas e estudos que resultaram na publicação de cinco artigos na “Revista do Patrimônio”: “Valor histórico e artístico: importante problema da História da Arte” (n. 4, 1940); “A propósito de três teorias sobre o Barroco” (n. 5, 1941); “A pintura colonial no Rio de Janeiro: notas sobre suas fontes e alguns de seus aspectos” (n. 6, 1942); “Modelos europeus na Pintura colonial” (n. 8, 1944); e “Retratos coloniais” (n. 9, 1945) (NAKAMUTA, 2009).

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Sua vinda estava inserida num contexto de interesse, investimento e apoio do Governo norte-americano e que fazia parte da Política da Boa Vizinhança, implementada durante o governo de Franklin Roosevelt (1933-1945), que visava à cooperação econômica, técnica e cultural com a América Latina, de modo a firmar sua a liderança e formar um mercado externo para seus produtos. Lewis Hanke (1947) refere-se ao período como sem precedentes quanto ao estímulo à realização de pesquisas acadêmicas sobre a América Latina, tendo, assim, proporcionado um substancial número de publicações (entre periódicos e traduções de textos clássicos), o surgimento de centros de pesquisa em universidades (como em Michigan, 1939; Texas, 1940; Wyoming, 1940) e a criação de bibliotecas, arquivos e fundações que contemplavam, em suas ações, a região, em diversos campos do conhecimento. Nesse contexto, foi organizada, nos Estados Unidos, a exposição e publicação “Brazil builds” (1943), de Philip Goodwin. Destaca-se também que outros colegas de Smith vieram ao Brasil e foram recomendados por ele a Rodrigo, como Alexander Marchant, que veio ao Brasil para adquirir imagens para o “Archive of Hispanic Culture”, e Florence Arquin, fotógrafa e pintora, que visitou o País sob os auspícios do Departamento de Estado americano, para fotografar alguns interiores de igrejas e sacristias. Assim, Robert Smith não apenas estava iniciando sua linha de pesquisa como também integrando um movimento que dava os primeiros passos em universidades norte-americanas, estudando os países da América Latina, focalizando, sobretudo, sua produção artística (REIS FILHO, 2012, p. 12). Vale destacar que, além do Brasil e dos Estados Unidos, as pesquisas e publicações sobre arte brasileira e portuguesa também eram, nos anos de 1930 e 1940, escassas em Portugal. Smith voltou ao Brasil em 1946, onde circulou por nove meses pelos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco, Paraíba e Pará. No Rio de Janeiro, fez pesquisas em arquivos de irmandades, “na Biblioteca Nacional, na Biblioteca do Itamaraty, no Arquivo Militar do Rio de Janeiro e nos Institutos Históricos e Geográficos regionais” (BUENO, 2012, p. 32). Em São Paulo (visitando São Paulo, Embu, São Miguel, Santos, Itanhaém, o sítio de Santo Antônio e casas seiscentistas próximas da capital), fez pesquisas no Museu da Cúria e no Museu Paulista, que estava à época sob a direção de Sérgio Buarque de Holanda, importante referência em seus trabalhos. A terceira vinda de Smith ocorreu em 1953, quando viajou por quase três meses, passando pelos estados do Pará, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Veio pela última vez ao Brasil em 1969, quando permaneceu aproximadamente um mês, entre julho e agosto, passando pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Pernambuco. Ele considerou vir ao Brasil em outras situações, que não aconteceram, como em 1950, 1962 (a convite da Universidade da Bahia), 1963 (para assistir ao congresso da comemoração da

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passagem do governo colonial da Bahia para o Rio de Janeiro) e 1965 (para participar da comemoração do quarto centenário da fundação do Rio de Janeiro). Em 1954, Rodrigo o encontrou nos Estados Unidos por ocasião do Congresso Internacional de História da Arte e Museologia, realizado em Nova Iorque. A colaboração entre Smith e Rodrigo era mútua, e já estava demonstrada desde o primeiro registro de comunicação entre eles, a carta de Rodrigo, de 14 de fevereiro de 1945.8 Nela estava evidenciada que a comunicação e a troca de informações entre eles já ocorria, até mesmo porque Smith já havia publicado dois artigos na “Revista do Patrimônio”. No entanto a abertura de espaço para o levantamento e pesquisa de documentos no Brasil foi firmada na segunda viagem de Smith, no ano seguinte.

8. Carta (ct. 96) de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Robert Smith, em 14/2/1945 (Arquivo Central do IPHAN/ Seção Rio de Janeiro/ Assuntos Internacionais - AA01/M065/P06/ Cx.0013/P.0060).

Antes de chegar ao Brasil, Smith avisava e enviava a Rodrigo um roteiro de viagem. A sua passagem e recepção era preparada por ele, que solicitava aos colaboradores da instituição, em diversas cidades brasileiras, que recebessem e atendessem bem Smith. Como exemplo, tem-se a passagem da carta transcrita a seguir, na qual Smith anunciava a sua terceira vinda ao País e as cidades em que ele estaria: Pretendo passar dois ou três meses no Brasil com o intuito de completar a documentação do manuscrito do livro sobre a arquitetura e talha coloniais brasileiras que estou terminando sua fase preliminar. Vou chegar a Belém mais ou menos entre os dias 20 e 24 de setembro para ver de novo as igrejas desta cidade e, se é possível, o palácio dos governadores coloniais, que tratei no meu artigo publicado em Buenos Aires. Depois quero ir a São Luís no Maranhão, cidade que não visitei quando da minha última viagem ao Brasil. Quem posso encontrar lá para me ajudar em ver o sítio misterioso de Alcântara? No Recife e em Salvador quero ver as fichas mais recentes do DPHAN. Devo chegar ao Rio no meio de outubro, e durante os poucos dias que lhe posso dedicar, preciso de visitar, com o apoio do meu amigo, o lugar de S. Fidelis e a igreja de S. Francisco Xavier de Niterói. Quero comprar também as fotografias que figuram na lista anexa [...]. Do Rio visitarei Minas, e especialmente as vilas de São João del-Rei e Tiradentes, antes de terminar esta rápida viagem de reinspeção. É escusado dizer que, para aproveitar das muitas coisas que me faltam, precisarei muito de seus conselhos e dos incomparáveis recursos do DPHAN. Desejo especialmente conhecer a sua opinião autoritária a respeito do que tenho escrito. Em consideração da nossa velha amizade e das tantas ocasiões em que me tem prestado serviços inesquecíveis, ouso crer que não lhe peço demais. 9 Assim, Rodrigo enviava cartas aos representantes da instituição nas cidades onde Smith passaria, ou, quando não havia representante, enviava a algum possível interlocutor que porventura conhecesse. Como exemplo, em carta a Pedro Guimarães Pinto, de São Luís, solicitava que se prestasse assistência a Smith, acompanhando-o e que “qualquer despesa feita com a finalidade de atender à minha presente solicitação, providen-

9. Carta de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 23 de julho de 1953 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/ P06/Cx.0013/P.0060).

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ciarei para indenizá-la”. Ele apresentou Smith como “um dos mais doutos estudiosos da História de nossas artes plásticas, além do propagandista mais caloroso que esta repartição tem tido no estrangeiro de suas atividades”.10 Aqui, Smith teve as portas abertas para as suas pesquisas, por exemplo, no Museu da Cúria, onde foi por sugestão de Rodrigo, e lá encontrou “uma mina de riquezas”, e que, segundo ele, “nenhuma das pessoas que conheci aqui, fora Saia, jamais o tinha visto”.11 Rodrigo também solicitou que a irmandade de Santa Cruz dos Militares “concedesse facilidades” a Smith “a fim de habilitá-lo a fotografar o interior da respectiva igreja e estudar os livros antigos da mesma Irmandade”, por ter ele “prestado ao nosso país no estrangeiro, com a divulgação e o encarecimento do acervo artístico e histórico do Brasil”, chegando até a “esclarecer que o ilustre Professor norte-americano é católico praticante”.12 Até mesmo a liberação do seu material de trabalho pela alfândega teve a intermediação de Rodrigo: “uma máquina fotográfica Brand com o respectivo tripé e, bem assim, 60 filmes fotográficos”.13 A abertura de um espaço de pesquisa para Smith foi importante, dada a dificuldade de acesso aos arquivos e a falta de entendimento da importância das pesquisas nos lugares onde as fontes deveriam ser consultadas. Ele chegou a relatar que “em Tiradentes, infelizmente tive o desgosto de ter as minhas fotografias embargadas pelo sacristão, cumprindo ordens do senhor vigário”.14 No interior da Bahia, Smith chegou a ser detido, fato que explicou de forma elegante a Rodrigo em carta: Desejo dizer-lhe também que, se por acaso lesse um telegrama da Bahia publicado no Rio, dizendo que eu tinha estado preso em Maragogipe, quando copiava velhas inscrições na matriz, não o deveria levar a sério. Foi um exagero absurdo. Tratava-se meramente duma interrogaçãozinha feita por um subdelegado de polícia superzeloso, que evidentemente tem pouco contato com estrangeiros e muita curiosidade.15 Após suas viagens, Smith pediu, em diversas situações, a intermediação para a resposta de dúvidas. Por exemplo, quando solicitou “informações acerca dos missionários capuchinhos italianos em Pernambuco. Quem seria a pessoa no Brasil capaz de me ajudar? Seria o brilhante autor do livro No tempo dos Flamengos [José Antonio Gonsalves de Mello] e onde deveria escrever?”; ou quando indagou a data da morte de José de Oliveira Barbosa, a qual foi levantada por Noronha Santos, colaborador da instituição.16 Esses pedidos diziam respeito ao momento após o levantamento e a pesquisa no Brasil, no qual Smith destacava a falta ou inconsistência de informações, que não poderia ser solucionada por ele, dada a distância, mas que, para isso, contava com o total apoio e prestatividade do IPHAN. E esses pedidos se referiam principalmente às fotografias. Rodrigo enviava as que havia no arquivo, mas, quando estas não existiam ou não eram consideradas boas, solicitava a um fotógrafo as produzisse, com o cuidado para que fossem feitas “por profissional idôneo, uma vez que o próprio Smith é foto-

10. Carta (Cta. 426) de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Pedro Guimarães Pinto, em 2 de setembro de 1953 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais AA01/M065/P06/Cx.0013/P.0060). 11. Carta manuscrita de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 23 de setembro de 1946 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais AA01/M065/P06/Cx.0013/P.0060).

12. Carta (cta. n. 407) de Rodrigo Melo Franco de Andrade ao Reverendíssimo Monsenhor Caruso, em 2 de setembro de 1954 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/P06/ Cx.0013/P.0060). 13. Ofício (Of. 1.120) de Rodrigo Melo Franco de Andrade ao Senhor Inspetor da Alfândega do Rio de Janeiro, em 30 de julho de 1946 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/ P06/Cx.0013/P.0060). 14. Carta manuscrita de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 15 de novembro de 1953 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais AA01/M065/P06/Cx.0013/P.0060).

15. Carta de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 8 de fevereiro de 1947 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/ P06/Cx.0013/P.0060).

16. Carta de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 23 de janeiro de 1966; e Carta cta. n. 130 de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Robert Smith, em 8 de abril de 1952 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais AA01/M065/P06/Cx.0013/P.0060).

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grafo exímio”.17 Assim, o fotógrafo francês, que morava no Brasil, Marcel Gautherot foi contratado para fazer trabalhos para o IPHAN, de modo a atender às demandas de Smith,18 o que também aconteceu para atender a Germain Bazin.19 Assim, segundo José Pessôa e Renata Araújo (2012), que estudaram o legado de Smith doado à Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, “a base de trabalho dos inventários de imagens [do IPHAN, fez do], acervo de Smith um paralelo ao acervo do Arquivo Central do atual IPHAN e vice-versa”, com similaridades inclusive de enquadramentos, o que, para o IPHAN, era padronizado e seguia instruções de uma portaria de 1948 (PESSOA; ARAÚJO, 2012, p. 44-47). Rodrigo chegou a revisar, em diversas situações, os textos de Smith, como artigos sobre Arquitetura e arte brasileiras que seriam publicados no “Handbook of Brazilian Studies” e na Enciclopédia Britânica, nos verbetes “Arquitetura no Brasil” e “Arte brasileira”.20 Na revisão dos verbetes, Rodrigo sugeriu correções, como esta: “Relativamente às construções civis seiscentistas das proximidades de São Paulo, pondero-lhe que não são feitas de adobe e sim de taipa e pilão”; e esta, a respeito do verbete pintura e escultura: “Recordo-lhe que a ‘pintura de perspectiva’ feita pelo mestre Caetano da Costa Coelho no forro de tabuado corrido da Igreja da Penitência do Rio de Janeiro foi ajustada em 1737 e concluída antes de 1740”.21 Na troca de favores, Smith, certa feita, analisou e concluiu pela “impraticabilidade” do planejamento feito por Rodrigo para o estudo sobre conservação e restauração de pinturas antigas por dois brasileiros nos Estados Unidos, na qual sugeria que seria melhor levar ao Brasil um especialista para orientar e ensinar técnicas aos especialistas brasileiros. Smith também se colocou à disposição de Rodrigo para lhe prestar serviços em viagem à Europa (Irlanda, Inglaterra, Holanda e Itália), em 1952, e assim afirmou: “Ordene-me que faça coisas para si na Europa, pois me dará tanto prazer procurar ajudar tão dedicada pessoa”.22 Ele enviou documentos como os que diziam respeito à “sacristia da igreja de São Bento de Olinda, extraídos em Portugal dos manuscritos procedentes do Mosteiro dos Tibães”23 e livros sobre História da Arte. Também doou fotografias suas feitas no Brasil, como as que foram enviadas, por meio da Gift and Exchange Division da Biblioteca do Congresso americano,24 e as fotografias da exposição de Arquitetura luso-brasileira que aconteceu entre junho e julho de 1951, no Museu de Arte Moderna, que, na época, era dirigido por Lourival Gomes Machado. A retribuição do suporte tido no Brasil vinha também da divulgação da arte brasileira e dos trabalhos do IPHAN, por meio de publicações, conferências no exterior e no Brasil. Smith proferiu palestras e cursos em suas passagens pelas cidades brasileiras na segunda, terceira e quarta viagens ao Brasil. Na segunda, por exemplo, realizou conferências em Salvador, na Faculdade de Filosofia, e em São Paulo sobre a Arquitetura americana no período de Thomaz Jefferson, sendo recebido por Lasar Segall e membros da Escola de Sociologia. Ele se sentia na obrigação de retribuir o apoio recebido, tal como comentou em carta manuscrita na qual se refere a conferências

17. Carta (cta. n. 38) de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Ayrton Carvalho, em 6 de outubro de 1966 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/ P06/Cx.0013/P.0060). 18. O comentário de Rodrigo acerca das fotografias para o livro sobre Arquitetura colonial brasileira de Smith é exemplar: “Quanto às fotografias da fazenda do Colubandê, só possuímos no arquivo desta repartição as do Eric Hess e outras poucas, feitas por amadores. Uma vez que as de Hess não lhe parecem boas (e são de fato medíocres), o único meio de corresponder a seu desejo será providenciar nova documentação fotográfica. Diligenciarei, portanto, para que seja feita, incumbindo do trabalho o Marcel Gautherot. Mas receio que não lhe possa remeter as fotografias pretendidas com muita brevidade, porque o proprietário da fazenda morreu e haverá certa dificuldade de acesso ao interior da casa. Além disso, o Gautherot é muito impontual” (Carta cn. 94 de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Robert Smith, em 5 de março de 1956 Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/ M065/P06/Cx.0013/P.0060). 19. Em carta de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Germain Bazin, em 20 de julho de 1949, foi referida a passagem do fotógrafo francês Marcel Gautherot em Minas Gerais (em Belo Horizonte, Sabará, Nova Lima, Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e São João del-Rei) para executar o trabalho que seria entregue a Bazin em Paris (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Arquivo Técnico Administrativo - AA01/ M037/P05/Cx.0008/328/P.34). 20. Carta (ct. 96) de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Robert Smith, em 14 de fevereiro de 1945, e carta de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 6 de julho de 1947 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/ P06/Cx.0013/P.0060). 21. Carta (c. 9) de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Robert Smith, em 6 de janeiro de 1948 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/P06/ Cx.0013/P.0060). 22. Carta (ct. 96) de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Robert Smith, em 14 de fevereiro de 1945, e carta de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 7 de maio de 1952 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/ P06/Cx.0013/P.0060).

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proferidas, durante a sua terceira viagem ao Brasil, no Rio de Janeiro e no Recife, “Retábulos Coloniais do Brasil”: “Não sou muito amigo de conferências, mas, ao mesmo tempo, sinto certa responsabilidade, especialmente para com o Itamaraty, que vai custear a minha viagem...”.25

23. Carta (cta. n. 38) de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Ayrton Carvalho, em 6 de outubro de 1966 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/ P06/Cx.0013/P.0060).

A quarta e última viagem de Smith ao Brasil foi resultado de um acordo de parceria entre o Ministério das Relações Exteriores (departamento cultural), o Ministério da Educação e Cultura (IPHAN e Conselho Federal de Cultura) e as universidades federais que porventura acordassem em promover o curso. Ele teria por missão “pronunciar conferências”, “relacionadas com o bicentenário, a transcorrer este ano, do grande artista André Soares, iniciador do movimento rococó em Portugal e precursor da obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho”.26

24. Carta (c. 455) de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Robert Smith, em 7 de agosto de 1947 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/P06/ Cx.0013/P.0060).

As suas conferências foram reunidas num curso, “Aspectos da arte portuguesa do século XVIII”, realizado no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, e que teve algumas delas ministradas em São Paulo, Salvador e Recife. As sete conferências do curso eram: 1) A arte portuguesa de setecentos (16 de julho de 1969); 2) A talha e Portugal durante o século XVIII (18 de julho de 1969); 3) Cinco grandes obras de Dom João V na Arquitetura (21 de julho de 1969); 4) Nicolau Nasoni, arquiteto do Porto (23 de julho de 1969); 5) André Soares, amador bracarense (25 de julho de 1969); 6) Frei José de Santo Antônio Vilaça, Aleijadinho do Minho (28 de julho de 1969); 7) O móvel português do século XVIII (30 de julho de 1969). Sobre o curso, Renato Soeiro, que na época ocupava a direção do IPHAN, afirmou que: (O curso) restabelece também a série de cursos da DPHAN, iniciada com o de Hannah Levy sobre História da Arte e o de Afonso Arinos de Melo Franco sobre o Desenvolvimento da Civilização Material no Brasil, seguidos dos ministrados pelo Professor Mário Chicó A Arquitetura Civil em Portugal e pelo Professor João Miguel dos Santos Simões sobre Azulejo luso-brasileiro.27 Smith publicou quatro artigos na “Revista do Patrimônio: “Alguns desenhos de arquitetura existentes no Arquivo Histórico Colonial Português” (n. 4, 1940), “O Códice de Frei Cristóvão de Lisboa” (n. 5, 1941), “Documentos baianos” (n. 9, 1945) e “Arquitetura civil do Período Colonial” (n. 17, 1969a). Além de artigos em periódicos, publicou também os livros “Arquitetura Colonial Baiana: alguns aspectos da sua história”, em 1951 e reeditado em 2010 e em 2012 (em coletânea); “Arquitetura colonial”, em 1954, reeditado no ano seguinte e em 2012 (em coletânea); “Congonhas do Campo”, em 1973; e, postumamente, foram publicadas as coletâneas de estudos, “Igrejas, casas e móveis: aspectos da arte colonial brasileira”, em 1979; e “Robert Smith e o Brasil: Arquitetura e Urbanismo” (volume 1), em 2012, organizada por Nestor Goulart Reis Filho. Smith tinha o desejo de publicar um livro sobre a história da Arquitetura brasileira no Período Colonial, o que não conseguiu realizar. De 1949 a 1956, esse desejo de finalizar o livro foi citado em cartas, nas quais pedia informações e fotografias, e cogitava trazer uma versão para que o amigo brasileiro

25. Carta de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 2 de junho de 1954 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/P06/ Cx.0013/P.0060). 26. Ofício (Of. n. 14) de Renato Soeiro ao Chefe do Departamento Cultural e de Informações do Ministério das Relações Exteriores - Embaixador Donatello Grieco, em 6 de janeiro de 1969 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/ P06/Cx.0013/P.0060).

27. Documento assinado por Renato Soeiro, com a data de 16 de julho de 1969 – provavelmente o discurso de apresentação e abertura do curso de Robert Smith (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/P06/ Cx.0013/P.0060).

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a revisasse. No entanto, sempre se referia à dificuldade de finalizar o seu intento, sendo que, na sua última referência ao livro em carta, afirmou: “Confesso que tenho demorado excessivamente em terminar este livro e encontrar os meios de o publicar. Um dos motivos tem sido o desânimo que me inspirou o livro do Bazin [...]”28. Essa carta, escrita em 1956, coincide com ano da publicação de Germain Bazin, “L’Architecture religieuse baroque au Brésil” (volume I), que foi publicado no Brasil somente em 1983 (seu outro livro, “Aleijadinho et la sculpture baroque au Brésil”, foi publicado em 1963 na França e, em 1971, aqui).

28. Carta de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 26 de fevereiro de 1956 (Arquivo Central do IPHAN / Seção Rio de Janeiro / Assuntos Internacionais - AA01/M065/P06/ Cx.0013/P.0060).

Assim, depois de um hiato de mais de cinco anos de correspondência entre Smith e Rodrigo (1956 a 1961), as cartas seguintes não faziam qualquer referência ao livro, que “jaz inacabado, em 800 páginas datilografadas e versões diversas no Arquivo de Arte da Fundação Gulbenkian, descoberta recente de Rafael Moreira” (BUENO, 2012, p. 35). Como Smith, Germain Bazin também teve apoio governamental de seu país para a sua primeira vinda ao Brasil, em 1945. Ele veio em missão do Governo francês e tinha por objetivo divulgar os valores da cultura francesa no contexto do Pós-Guerra, o que incluía a apresentação de uma exposição sobre pintura contemporânea, preparada juntamente com René Huyghe. Essa viagem possibilitou um contato que o fez rever os seus interesses e mudou a orientação de suas pesquisas, que passaram a contemplar a arte barroca. Segundo Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, o próprio Rodrigo teria encarregado Bazin de escrever os seus livros sobre arte brasileira (OLIVEIRA, 2006, p. 11). No entanto, nas considerações que Bazin fez na introdução dos seus livros, não há menção a esse fato. Bazin (1983) afirma: Entusiasmado pela arte do Aleijadinho, prometi a mim mesmo consagrar um livro ao último dos grandes escultores barrocos. A existência de toda uma escola de arte ainda desconhecida no Ocidente e dispersa em toda a extensão de um imenso território me atraiu loucamente (BAZIN, 1983, p. 14). Depois de 1945, Bazin voltou mais três vezes ao Brasil, até 1949,29 para pesquisar sobre o barroco. Embora o seu período de interlocução tenha sido mais curto do que o de Smith, não foi menos importante. Entre Rodrigo e Bazin também houve uma relação de amizade e uma troca de favores. A correspondência entre eles se deu somente na década de 1940, quando Bazin preparava as suas pesquisas no Brasil sobre a arquitetura religiosa e Aleijadinho. Rodrigo também facilitava e colaborava com as pesquisas de Bazin, e essa facilidade incluía o envio de documentos, textos, fotografias e a disponibilização da estrutura do IPHAN para as suas pesquisas. Essa colaboração também aconteceu não só no momento de sua passagem por diversas cidades brasileiras, assim como após essas passagens, de modo a viabilizar seus estudos e, claro, suas publicações sobre a arte brasileira.30 Bazin enalteceu a Arquitetura como fruto de uma civilização e deu ao barroco nacional um estatuto de obra de arte, de

29. Não foi possível identificar o roteiro de Bazin no Brasil. Sabe-se que, em 1948, ele esteve em Minas e na Bahia e provavelmente São Paulo. Em 1949, foi ao Rio de Janeiro, Pernambuco e a Alagoas. 30. Bazin e Smith se encontraram em alguns eventos, como em 1949, no “XVI Congresso Internacional de História d’Arte”, acontecido em Portugal, quando foi apresentar o trabalho sobre o desenvolvimento do barroco em Portugal e no Brasil. Smith também se encontrou com Bazin na França, em 1952, quando o francês o convidou para fazer uma conferência na École du Louvre, o que não pôde acontecer, mas lá trabalharam juntos.

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expressão e de representação própria e específica, distinguindo-o, assim, das manifestações do estilo ocorridas em outros lugares, principalmente em Portugal. Diferentemente de Smith, que exaltou e ressaltou a afinidade entre Brasil e Portugal na arte, na criação de cidades e na importância que deu aos arquivos portugueses para a pesquisa sobre o Brasil. Ele destacava a continuidade e a similaridade das Arquitetura e cidade brasileiras com relação às de Portugal, mas não de equivalência em valor para a arte. Ao se referir ao Brasil, usava palavras como cópia e imitação, o que Nestor Goulart dos Reis Filho destacou como uma má interpretação da obra de Gilberto Freyre.31 Outro destaque da abordagem de Smith foi dado aos arquivos e fontes de pesquisa, como fotografias, desenhos e pinturas, além do papel dos viajantes e autores de diários como fonte de informações sobre a Arquitetura. Assim, ele ressaltou modos de fazer pesquisa, incentivando a busca, uso e o cruzamento de diversos tipos de fonte, trazendo a importância dos desenhos para a “reconstrução” de edifícios antigos, a importância em se estudar documentos sobre Arquitetura guardados em arquivos municipais, considerando-os um “campo fertilíssimo, embora pouco explorado, para o estudo da arte colonial no país”, destacando o de Salvador, constante na coleção do Arquivo Histórico da Prefeitura (SMITH, 1945, p. 85).

31. Sendo que, “para Gilberto Freyre, a continuidade era um caminho de reconhecimento do valor de seus objetos de estudo, em nível equivalente aos dos exemplos portugueses” (REIS FILHO, 2012, p. 17).

Após a última correspondência entre Smith e Rodrigo (carta de Robert Smith a Rodrigo Melo Franco de Andrade, de 6 de outubro de 1967), a comunicação com o pesquisador americano ficou por conta de Renato Soeiro, que substituiu Rodrigo na direção do IPHAN, e durou até 1970 (carta de Smith a Soeiro, de 10 de março de 1970). Os vínculos profissionais e pessoais entre o pesquisador estrangeiro e o IPHAN foram importantes para viabilizar as vindas e as pesquisas, as homenagens prestadas e os cursos ministrados no Brasil. Foi um apoio importante para a construção de sua carreira internacional, que aqui não se encerrou em meados da década de 1950, quando o seu projeto de uma publicação sobre a arte colonial do Brasil foi abandonado. Mesmo com um hiato na comunicação, tal como exposto acima, esse vínculo perdurou com a colaboração para a pesquisa de outras publicações e a viabilização dos cursos ministrados aqui.

Considerações finais As vindas de Smith, bem como as de Bazin, embora estivessem ligadas entre si por um objetivo comum e tenham se conformado num movimento em torno do entendimento da arte brasileira, privilegiando o barroco, não tinham uma atribuição específica professada por uma instituição ou organização, nem foram solicitadas ou patrocinadas pelo Governo brasileiro, embora, em diversas oportunidades, tenha apoiado essas vindas. Em comum, eles tinham o foco de suas ações no território brasileiro por meio de suas associações, ligações ou conexões com os técnicos do IPHAN, e as trocas de experiências no campo da História da Arte, por meio do estudo e divulgação da arte brasileira e da formação teó-

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rica possibilitada pelos cursos e palestras ministrados, publicações, bem como pelas trocas de experiências. Nesse momento, o interesse dessa associação do IPHAN com os estrangeiros citados era conhecer e fazer reconhecida a arte brasileira, legitimar uma prática em curso e em elaboração, além de identificar bens para saber o que deveria ser protegido, conservado e cultuado. As cartas constantes no Arquivo Central do IPHAN acerca da comunicação entre Smith e Rodrigo revelaram discussões, caminhos e modos de pesquisar em um período em que se buscava uma abordagem criteriosa, embasada em diversos tipos de fontes de pesquisa, e os arquivos ganhavam uma posição de destaque, para além da obra de arte em si. A interlocução com o IPHAN também se configurou no trabalho e estudo de obras brasileiras, de modo a ajudar a conformar um campo de conhecimento a respeito da História da Arte no Brasil. Ela se deu por meio de levantamentos, pesquisas, estudos, discussões técnicas, publicações, exposições, cursos e conferências acerca da identificação da arte brasileira e de sua divulgação no País e no exterior. Vale destacar que havia também iniciativas e buscas para esse entendimento por técnicos brasileiros, o que não foi objeto de discussão neste artigo. Do vínculo que se configurou, o IPHAN facilitava, e até mesmo possibilitava, o acesso aos documentos, às pessoas e aos arquivos brasileiros pelos estrangeiros que vinham ao Brasil, os quais, por sua vez, sistematizavam, estudavam e difundiam a arte brasileira para os técnicos brasileiros e no exterior. A colaboração era mútua. Com isso, a instituição contribuía e se beneficiava das pesquisas, da repercussão e da aceitação da arte brasileira pelos princípios da História da Arte. Havia uma relação de dependência bem quista pelas partes, na busca pelo entendimento do que era a arte brasileira, como ela se relacionava com a arte estrangeira, em especial a portuguesa, e, principalmente, como ela se diferenciava e se aproximava desta. Isso demonstra que já havia um movimento e um canal estabelecido para a receptividade ao intercâmbio, por parte dos técnicos do IPHAN, para a cooperação técnica internacional entre instituições, quando se deu a intermediação para os pedidos de assistência técnica à UNESCO, a partir de 1964, quando Lourival Gomes Machado era diretor de Assuntos Culturais da organização e mantinha um contato estreito com Rodrigo. Desde então, o IPHAN passou a contar com uma série de missões de assistência técnica que promoviam a formação de quadros profissionais, por meio da concessão de bolsas de estudos e do encontro de técnicos locais e especialistas. Essas missões promoviam a conservação aliada ao planejamento, tendo em vista o turismo cultural e a superação do subdesenvolvimento, tal como preconizavam as Nações Unidas e as agências ligadas a ela, o que representa outro capítulo na interlocução, colaboração e circulação de ideias entre os técnicos brasileiros e estrangeiros, quanto ao campo da conservação e aos arranjos institucionais ocorridos.

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Recebido em 12/05/2014 Aprovado em 10/06/2014 Contato do autor: Cecilia Ribeiro Pereira e-mail: [email protected] / [email protected]

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1. Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas - SP. Mestre em Urbanismo pela mesma Universidade, 2012. Arquiteto e Urbanista pelo Centro Universitário Moura Lacerda – Ribeirão Preto, SP. 2. Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas junto ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (desde 1998) e junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (dese 1987). Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (1978), Mestrado em Urbanisme “Amenagement et Environnement” pelo Institut d´Urbanisme de Paris - Université de Paris XII (Paris-Val-de-Marne) (1981), Doutorado em Urbanisme “Amenagement et Environnement” pelo Institut d´Urbanisme de Paris - Université de Paris XII (Paris-Val-de-Marne) (1985) e Pós-doutorado junto ao Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2008-2009). DOI: 10.5752/P.2316-1752.2014v21n28p100

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Tendências gerais dos status urbanos no Nordeste paulista General status of urban trends in Northeast São Paulo Tendencias generales de los status urbanos en el Noreste de São Paulo

Dirceu Piccinato Junior1 Ivone Salgado2 Resumo Este artigo pretende traçar uma análise histórica sobre o processo dos status urbanos adotados no contexto de formações urbanas no nordeste do estado de São Paulo, destacando circunscrições espaciais e léxicos utilizados nessa sistemática no período que compreende o Brasil colonial e imperial. O modo de se fundarem cidades esteve vinculado às normas eclesiásticas, todavia a historiografia recente aponta que não se deve considerar uma linearidade ou um modelo, pois fatores de ordem política e econômica poderiam se sobrepor às determinações eclesiásticas. Palavras-chave: Status urbano. Circunscrição espacial. Léxico urbano.

Abstract This article seeks to trace a historical analysis of the process of urban status adopted in the context of urban formations in northeastern São Paulo state, highlighting spatial circumscriptions and lexicons used in this organization in the period comprising the colonial and imperial Brazil. The mode of founding cities was linked to the ecclesiastical norms. However, recent historiography suggests that one should not consider a linearity or a model, once factors in the political and economic order might overlap ecclesiastical determinations. Keywords: Status urban. Spatial circumscription. Urban lexicon.

Resumen Este artículo busca trazar una análisis histórica del proceso de los status urbanos adoptados en el contexto de las formaciones urbanas en el noreste del estado de São Paulo, destacando circunscripciones espaciales y léxicos utilizados en esta sistemática en el período que comprende el Brasil colonial e imperial. La forma de se fundar ciudades estaba vinculada a las reglas eclesiásticas, sin embargo, la historia reciente indica que no se debe considerar una linealidad o un modelo, una vez que factores de orden política y económica podrían sobreponerse a las determinaciones eclesiásticas. Palabras clave: Status urbano. Circunscripción espacial. Léxico urbano.

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Introdução A primeira norma a regimentar e ordenar as terras do Brasil Colônia foi a carta-patente trazida por Martim Afonso de Souza, em 20 de novembro de 1530. Ela é considerada o primeiro documento referente às sesmarias das terras brasileiras. O nobre português trouxe consigo, na verdade, três cartas régias que tratavam das seguintes conjunturas: a primeira carta conferia grandes poderes ao próprio Martim Afonso, nomeando-o capitão-mor da armada e de todas as terras que fossem descobertas; a segunda permitia que ele nomeasse oficiais de justiça, quantos fossem necessários para a posse e governabilidade das terras, e, por fim, a última lhe dava poder para doar sesmarias a quem as viesse requerer (ABREU, 2006, p. 204). Em linhas gerais, quando se estabeleceu o sistema das sesmarias com a carta-patente de 1530, a Monarquia Portuguesa visava a entregar as terras ainda não cultivadas àqueles que se comprometessem a colonizá-las dentro de um prazo estabelecido. A sesmaria era uma subdivisão da capitania; seu objetivo era o de ser aproveitada, ou seja, voltada a incentivar a ocupação das terras e estimular a vinda de colonos para o Brasil. Segundo Lígia Osório Silva, o “objetivo básico da legislação era acabar com a ociosidade das terras, obrigando ao cultivo sob pena de perda de domínio” (2008, p. 41). Em meados do século XVII, a política de doação de terras ganhou novos contornos. Teve início um processo progressivo de centralização da Administração Pública, em benefício do poder real, que durou até o século XVIII. Eram medidas que visavam ao aumento do controle sobre as doações de terras por parte da Coroa portuguesa. Com as novas exigências do Poder Régio na obtenção da permissão de uso da terra colonial, a corte passou a ter mais informações sobre a situação do território de sua colônia. A medida mais importante estabelecida para aumentar o controle sobre a apropriação territorial e que gerou inúmeras controvérsias foi o pagamento de um foro pelo concessionário, conforme consta na Carta Régia de 25 de dezembro de 1695. A introdução desse “imposto” alterava a principal característica do sistema sesmarial, a gratuidade. O sistema sesmarial de concessão de terras implantado no Brasil pelos portugueses contribuiu diretamente para o processo de formação e fundação de núcleos urbanos. Atesta essa afirmação Maurício de Almeida Abreu (2006), ao explicar o fato de que as sesmarias, que tendiam a ser grandes “latifúndios”, implicavam exagerados custos, particularmente com a escravaria, de modo que a maioria dos sesmeiros, com exceção dos ricos, não tinha condições de custear as elevadas despesas. Sob tal situação, muitos colonos acabaram não tendo acesso à terra. Os ricos sesmeiros puderam, portanto, obter a concessão de antigas sesmarias ou apenas parte delas, porém os pequenos sesmeiros, em sua maioria, acabaram se tornando agregados dos grandes sesmeiros, constituindo uma classe pobre que habitava o campo, mas

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destituída de bens de raiz. Essa população sem terra foi importante para o surgimento dos patrimônios religiosos (que dariam origem a muitas cidades), pois algumas glebas eram cedidas por um ou mais dos grandes sesmeiros para que esses trabalhadores sem chão pudessem ali se estabelecer e construir suas moradias. No entanto a doação dessas terras nunca acontecia diretamente a esses homens sem posse; elas sempre beneficiavam um santo padroeiro, cabendo à Igreja os cuidados com a administração desse patrimônio (ABREU, 2006, p. 232-233). Conforme a Carta Régia de 1695, caberia, portanto, aos sesmeiros o pagamento do dízimo régio ou foro. Assim, muitos desses donatários da Coroa passaram a aforar suas sesmarias, como forma de renda, ou seja, passaram a cobrar foros anuais sobre a produção dos produtores menores, dos seus agregados. As sesmarias doadas pela metrópole portuguesa eram então redivididas e arrendadas pelos sesmeiros aos pequenos colonos, formando-se “agregados agrícolas”, o que seria, para a época, uma primeira forma de trabalho livre, ao lado do trabalho escravo, e um processo maior, pertinente ao contexto desta análise, o das formações urbanas. O patrimônio religioso surgiu no Brasil de maneira tímida e discreta. Era constituído por uma gleba de terra que permitia a construção da capela e também do espaço externo recomendado pelas “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia” para a formação do casario que abrigaria os pequenos sesmeiros, dando origem ao futuro núcleo urbano. “De uma parte, ocupava-se um determinado terreno e plantava-se o templo desejado; de outra, propiciava-se a aglomeração de moradias e negócios” (MARX, 1991, p. 41). Tal contexto nos leva a considerar que muitas cidades de hoje ainda são regidas por normas instituídas num passado não muito distante, porém, sem entendê-las, tornamo-nos incapazes de compreender os espaços urbanos atuais. Por essa razão, lançar luz sobre os fundamentos históricos da apropriação da terra urbana auxilia a entender os desdobramentos dos fatos. Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar e discutir as tendências gerais do processo de formações urbanas na Região Nordeste do Estado de São Paulo, compreendendo o espaço, termos e conceitos urbanos.3 Para Cláudia Damasceno Fonseca, todavia, não se podem considerar os ditames acerca das fundações de cidades segundo uma regra, um modelo ou até mesmo uma linearidade normativa, espacial ou cronológica, pois fatores de ordem política, econômica e especialmente conflitos locais puderam influenciar e determinar com mais intensidade as proposições gerais do urbano do que necessariamente as normas eclesiásticas (FONSECA, 2011, p. 84). Para entender e analisar essa conjuntura, primeiramente se faz necessário circunscrever o que é, para este trabalho, o Nordeste paulista, terras que foram ocupadas e configuradas com os entrantes mineiros a partir do final do século XVIII, mas com maior afluência nas primeiras décadas do século XIX.

3. Os conceitos ou léxicos urbanos serão baseados parcialmente no dicionário de Raphael Bluteau (1712-1728), o “Vocabulário portuguez e latino...”, o primeiro dicionário da língua portuguesa, por acreditarmos se aproximar dos significados com propriedade e esclarecer as disposições urbanas do período colonial e imperial.

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Território, sociedade e economia Nos dez anos após a descoberta do ouro em Goiás (entre 1726 e 1736), ocorreram quase todos os processos de concessão e regulamentação das posses de sesmarias na Região Nordeste do interior paulista, devidamente documentados em razão da estrada do Anhanguera (BACELLAR; BRIOSCHI, 1999, p. 47). Entretanto o desejo de riqueza despertado pelas descobertas em Goiás não foi duradouro, como muitos imaginavam, comparado com o esplendor das Gerais. Entre as décadas de 1740 e 1790, a Região Nordeste do Estado de São Paulo passou por uma fase de estagnação, devido à rápida exaustão do ouro goiano e também pela abertura de novas rotas, o que contribuiu para esse período de pouco interesse por essa parte do território paulista. Deve-se considerar, ainda, nesse contexto, que muitas dessas sesmarias solicitadas pelo caminho de Goiás sequer foram ocupadas, “outras, supomos, foram abandonadas, pois, em 1779, raros são os habitantes do Sertão do Rio Pardo que se encontravam na relação dos agraciados com sesmarias” (CHIACHIRI FILHO, 1986, p. 52), transformando boa parte desse sertão em terras devolutas, objeto de futuras posses. A principal justificativa utilizada pelos colonos no pedido de concessão de sesmarias no caminho para Goiás era a instalação de pousos para maior comodidade dos viajantes e cobrança de dízimo régio (BACELLAR; BRIOSCHI, 1999, p. 47). Por volta do ano de 1750, o Nordeste paulista, embora não consideravelmente ocupado e povoado, começou a adquirir certa importância, por fazer parte da rota em direção às minas auríferas do interior do Brasil. Além disso, a atividade pecuária estava alcançando um desenvolvimento expressivo, com forte vínculo entre os mercados do Sul e do Nordeste brasileiros, intensificando ainda mais o trânsito de pessoas por essas paragens. Conquanto seja possível identificar conceitos diversos condizentes com as diferentes realidades territoriais, durante o movimento das Bandeiras, quando por essas terras havia somente pousos, o termo adotado para este território era o de “Sertão do Rio Pardo”.4 Até 1800, essa região pouco povoada era vista como um vasto mar de terras para uma escassa gente que se distribuía espaçadamente por elas, mas com a solicitação da fundação da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Franca, desmembrando-se do território de Mogi Mirim, essa realidade iria se modificar. Foi concedida à nova Freguesia uma área territorial que compreendia desde o rio Mojiguaçu, passando pelas terras entre o rio Pardo e o rio Sapucaí-Mirim, e terminava nas margens do rio Grande. Destarte, para este estudo, adotaremos como nordeste paulista as terras entre o rio Pardo, passando pelo rio Sapucaí-Mirim, terminando nas margens do rio Grande, limite com Minas Gerais (fig. 1). O interesse por parte dos mineiros nessas terras paulistas era modesto em fins do século XVIII. No ano de 1776, há registro de 155 mineiros, entre homens livres e escravos; no ano de 1790, registra-se um total de 182 homens; já em 1797, o núme-

4. José Chiachiri Filho relatou, em sua obra “Do Sertão do Rio Pardo à Vila Franca do Imperador”, que se deve ter cuidado para não considerar realidades diferentes num mesmo conceito. Segundo ele, o “Sertão do Rio Pardo engloba os pousos, e cada pouso forma uma unidade que, sozinha, não explica o Sertão” (CHIACHIRI FILHO, 1986, p. 18). Além de discorrer sobre tal conjuntura, a sua obra apresenta documentos de época que especificam essa região como “Sertão do Rio Pardo até o Rio Grande”.

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ro total é de 365 mineiros, entre homens livres (296) e escravos (69) (PICCINATO JUNIOR, 2012, p. 52). No ano de 1804, o número de mineiros nessas terras representava 24,7%, contra 4,6% de outras origens, para um total de terras desocupadas de 71,7%. Em 1824, quando já havia sido fundada a Freguesia de Batatais (1815), o número de mineiros passou para 75%, de outras origens caiu para 3%, e o total de terras ainda incultas representava 22% (CHIACHIRI FILHO, 1986, p. 141).

Minas Gerais

Rio Grande

Rio Sapucaí-Mirim Rio Pardo Rio Mojiguaçu

São Paulo

Figura 1 • Detalhe da Capitania de São Paulo e Minas Gerais, seus Sertões e o caminho para Goiás, século XVIII. Intervenção no mapa de autoria de Francisco Tosi Columbina. Em destaque, a Região Nordeste do Estado de São Paulo (adaptado pelos autores). Fonte: . Acesso em: 19 abr. 2013.

No início do século XIX, esses números sofreram um aumento significativo, em razão da existência de uma extensão de terras incultas e boas, tanto para o cultivo como para a criação de gado. Entre os anos de 1801 e 1807, a população dessa região quase triplicou, como apontam os números: em 1801, o número total de entrantes mineiros era de 571; no ano de 1814, esse número sobe para 2.848 mineiros; e, em 1835, chega ao total de 10.667, entre homens livres (7.224) e escravos (3.443) (PICCINATO JUNIOR, 2012, p. 53). Desde o século XVIII, essas terras tiveram como atividade econômica o comércio de beira de estrada, em função do caminho para Goiás. No final desse século e nas primeiras décadas do século XIX, houve uma modificação do contexto econômico, devido à migração mineira em busca de terras a serem cultivadas. Em passagem por essa região, Saint-Hilarie

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(1972) observou a predominância de agricultores e criadores, especialmente quando analisou Franca: “Os francanos cultivavam, fabricavam, em suas propriedades, tecidos de algodão e de lã, e aplicavam-se especialmente à criação de gado vacum, de porcos e de carneiros” (SAINT-HILARIE, 1972, p. 101).5 As atividades econômicas dos moradores do Sertão do Rio Pardo foram registradas também nos censos desde o ano de 1799 e, segundo Lucila Reis Brioschi (1995), entre os anos de 1799 e 1812, predominavam nessa região atividades de subsistência, que ela descreve da seguinte forma: “Planta para seu próprio consumo” e “agricultor (vive de suas lavouras e criações)” (BRIOSCHI, 1995, p. 140).

5. O viajante francês passou por Franca em 1819 e, anos mais tarde, atualizou seus relatos, baseando-se nos dados apresentados por Daniel Pedro Muller.

Nessa sociedade formada por agricultores e criadores, a produção de gêneros para a subsistência foi uma condicionante, devido à grande disponibilidade de terras a serem cultivadas. Independentemente de qualquer ofício, cargo ou função, os entrantes mineiros dedicaram uma parte de seus afazeres a plantar para o próprio consumo. A agricultura e a pecuária eram as atividades predominantes e diversificadas em graus e gêneros. Segundo Lobato Corrêa, uma definição mínima inicial de rede urbana é o conjunto de centros urbanos funcionalmente articulados entre si, e, na sua identificação, natureza e significado, é preciso considerar os seguintes aspectos: a divisão territorial do trabalho; as relações entre a rede urbana e os ciclos de exploração; as relações entre rede urbana e forma espacial; e o caráter mutável da rede urbana, que permite periodizações (CORRÊA, 2006, p. 25). O autor afirma ainda que, no Brasil, com a formação das redes urbanas nacionais e regionais, as relações sociais e econômicas espacializadas são controladas por uma cidade dominante (CORRÊA, 2006, p. 23) (no nosso caso, Franca) que atua sobre uma relativamente vasta hinterlândia, constituída por cidades menores e, em muitos casos, por áreas rurais diferenciadas em termos de estruturas e paisagens agrárias. “A cidade é um espelho de uma região, ou, ao contrário, a região é o resultado de uma ação motora da burguesia urbana” (CORRÊA, 2006, p. 24). A Região Nordeste do Estado de São Paulo tem uma unidade territorial definida historicamente por meio do processo de desmembramento da Vila de Mogi Mirim, fundada em 1769. A definição da rede urbana nessa região em estudo iniciou-se com a fundação de duas Freguesias na Vila de Mogi Mirim, a de Franca, em 1804, e a de Batatais, em 1815. A partir de futuros desmembramentos do território dessas duas freguesias, a rede urbana do Nordeste paulista passou a ser composta pelas atuais cidades: Ituverava (1847), Igarapava (1851), Santo Antônio da Alegria (1866), Rifaina (1873), Patrocínio Paulista (1874) e Jeriquara (1885), estas desmembradas das terras de Franca. O território de Batatais, sendo desmembrado, passou a ser composto pelas seguintes cidades: Cajuru (1835), Ipuã (1859), Morro Agudo (1872), Nuporanga (1873) e Altinópolis (1875) (FIG. 2). Para examinar o estado da arte na configuração do urbano, todas contribuirão em graus variados com o estudo, conforme a contextualização dos fatos a serem descritos e espacializados, e segundo as proposições gerais acerca do processo de for-

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mações urbanas nessas terras paulistas. Portanto não há uma hierarquia de importância, mas sim valores de interpretação. Nosso entendimento sobre esse processo é aquele proposto por Bernard Lepetit (2001), para quem os tempos da cidade não são lineares. No processo histórico das cidades, não cabe uma compreensão de temporalidade cronológica, isso porque elas abrigam uma trama de tempos descompassados que se cruzam de formas diferentes, gerando mudanças constantes. A cidade nunca é absolutamente sincrônica: o tecido urbano, o comportamento dos citadinos, as políticas de planificação urbanística, econômica ou social desenvolvem-se segundo cronologias diferentes (LEPETIT, 2001, p. 45).

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Nesse sentido, ao adotarmos uma ordem supostamente cronológica referente à sistemática da apropriação do solo para explicar cada condição da urbe, podemos perceber que os tempos de cada caso nem sempre seguem essa cronologia. Analisar a conjuntura das formações urbanas, partindo do status de arraial, passando pelo de capela, freguesia e finalmente vila, significa decodificar um conjunto de circunstâncias empregadas na configuração e reconfiguração do solo urbano e todo o encargo civil e eclesiástico que essa conjuntura engloba, permitindo-nos a verificação de que, em alguns casos, essas temporalidades são diversas.

1 - Franca (Freguesia da Franca) 2 - Batatais (Freguesia do Senhor Bom Jesus) 3 - Cajuru 4 - Ituverava 5 - Igarapava 6 - Ipuã 7 - Santo Antônio da Alegria 8 - Morro Agudo 9 - Rifaina 10 - Nuporanga 11 - Patrocínio Paulista 12 - Altinópolis 13 - Jeriquara Figura 2 • Localização das cidades em discussão. Interpretação realizada no detalhe do Mappa do Sertão que atravessou João Caetano da Silva em 1817 (adaptado pelos autores). Fonte: . Acesso em: 10 jan. 2014.

O estado da arte na configuração do urbano Os núcleos urbanos tendem a expressar a organização da sociedade local ou regional, revelando conflitos e contrapondo hierarquias. De maneira geral, a implantação de uma povoação era pautada no seguinte processo: os povoadores, quando se instalaram na região, viam-se muito afastados de uma capela ou igreja. Assim, uniam-se e edificavam um pequeno templo, o qual, num primeiro momento, possibilitava, em seu interior, os atos religiosos do cotidiano das famílias. Essa modesta ermida também servia para eventuais celebrações quando da passagem de um pároco pelas cercanias. Aos poucos, com a instalação de novos povoadores, o número de fiéis aumentava. Nesse momento, os moradores se reuniam e solicitavam

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ao bispado local uma capela a ser reconhecida. Entretanto não era suficiente apenas construir o templo, era fundamental sacralizá-lo. “A sacralização iria tornar esse abrigo uma ermida também para a Igreja, uma capela reconhecida como tal, uma capela curada, ou seja, visitada regularmente por um padre” (MARX, 1991, p. 19). Por definição das “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, essa capela não poderia ser construída em terras particulares. Era necessário que se constituísse um patrimônio fundiário próprio para a capela, a qual deveria se posicionar em lugar decente, alto, distante de lugares sujos, livre de umidade e com espaço ao redor para as manifestações religiosas. Surgia, nesse momento, um ou mais dos grandes sesmeiros que doavam uma porção de terras a um santo de devoção. Essas terras, além de abrigar a construção, destinavam-se também a gerar receitas para sua manutenção, quando ali começassem a se instalar os agregados e entrantes de poucas posses. A doação de terras por parte dos homens de posses acabava produzindo uma estrutura fundiária que se tornava, com o decorrer do tempo, uma concentração de moradias no entorno do templo religioso. Novamente, esses moradores poderiam solicitar ao Bispado de São Paulo a elevação de status de capela para a condição de paróquia, “cujo nome corriqueiro tradicional foi freguesia e que constituía o módulo da organização eclesiástica, como que a sua unidade territorial” (MARX, 1991, p. 27). Na condição de freguesia, a capela não bastava frente a uma nova representação eclesiástica: a antiga capelinha era reformada, de modo que o lugar, em muitos casos, acabava sendo o mesmo, mas se transformava em sede paroquial, paróquia ou, como conhecemos nos dias atuais, igreja matriz. Tendo a sede da freguesia crescido e se adensado, o próximo status a ser buscado era o de vila. Na condição de vila, o núcleo urbano conquistava finalmente sua autonomia político-administrativa, especialmente com a presença das instituições civis. Considerando o fato de que, mesmo para uma região, não há um denominador comum, um consenso contínuo acerca dos status urbanos formados, revelar os conflitos e as hierarquias denota a importância de se contribuir para a discussão privilegiando as relações entre os poderes eclesiástico e civil e a formação territorial. Esses processos gerais acerca das formações urbanas, quando observados em situações históricas precisas, podem revelar similaridades ou especificidades no momento de mudança dos status urbanos. Nosso intuito é o de observar essa conjuntura na formação do território Nordeste paulista, no século XIX. Nessa região, o estudo de caso de Batatais é esclarecedor sobre a formação de um arraial. Quanto à formação de uma capela, podemos observar os casos de Ituverava, Igarapava, Santo Antônio da Alegria, Rifaina, Nuporanga, Jeriquara, Cajuru, Ipuã, Morro Agudo e Altinópolis. Patrocínio Paulista permite a compreensão dos complexos processos de formação de uma freguesia e, para entender o status urbano de vila, tomamos Franca como estudo de caso.

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Arraial O termo arraial foi comumente empregado nas primeiras povoações formadas em terras das Gerais, possivelmente com a migração mineira para o Nordeste paulista e também pela proximidade entre as capitanias (São Paulo e Minas Gerais). O termo também foi utilizado na região em estudo para nomear alguns poucos casos, lembrando que os pontos de formação e ordenamento do urbano em parte das terras paulistas foram os pousos dos bandeirantes. Segundo dicionário atual, um arraial pode ser traduzido como um acampamento de tropas, como um lugar de festas populares ou até mesmo como lugarejo (FERREIRA, 2011, p. 101). No dicionário do padre D. Raphael Bluteau, escrito entre os anos de 1712 e 1728, obra composta em oito volumes, arraial significa “o alojamento de hum exército na campanha”.6 Na colônia, a palavra arraial podia designar um tipo de galpão rústico, com um telhado simples apoiado nas extremidades por pilares de madeira, que poderia servir tanto para abrigar as mercadorias como os viajantes durante as paradas. Essa palavra poderia abranger também um “pouso”, um ponto de parada (FONSECA, 2011, p. 63-64). Para Murillo Marx, essa condição significa a dependência da necessidade de terrenos para cada morador e sua família, visto que, seguramente, poderia possuir acesso à terra, todavia dependeria do reconhecimento de uma sociedade organizada (1991, p. 18).

6. BLUTEAU. Vocabulário portuguez e latino..., v. 1 (Letra A). Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2013.

O que Marx descreve, quando analisa a conformação espacial de um arraial, é que este não seria somente um ponto de parada, um pouso para o descanso das tropas, mas um núcleo, com a presença do chão de terra (as datas), do adensamento familiar e principalmente de uma modesta ermida, mesmo que esta não fosse reconhecida ainda pelo bispado, como exemplificará Batatais. Uma das primeiras referências acerca de Batatais é uma carta escrita pelo bandeirante Ignácio Vieira em meados do século XVII. Essa correspondência é citada por Afonso de E. Taunay na sua obra “História Geral das Bandeiras” e se encontra anexa nos “Autos de Inventário”. Porém, na obra desse autor, a data é incerta. Mas Carvalho Franco, em seu livro “Bandeirantes e Sertanistas do Brasil”, faz menção ao bandeirante Ignácio Vieira, que, em 1663, achava-se no Arraial dos Batataes, sertão desconhecido (TAMBELLINI, 2000, p. 74-76). Segue o teor da carta: Senhor Pae Estimarei esta ache Vossa Mercê em perfeita saúde, em companhia da Senhora-Mãe, a quem beijo as mãos e as de Vossa Mercê. Eu fico com saúde, Deus louvado, até o presente neste arraial dos Batataes, que me deixa o Capitão, com mais dois homens, a guardar-lhe a fazenda que tem aqui, de barris de pólvora e fardões e mantimentos, que tem com concerto de que entraríamos nas partilhas igualmente com os demais. Ignácio Vieira (TAUNAY, 1949 apud TAMBELLINI, 2000, p. 74, grifo nosso). Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.21, n.28, 1º sem. 2014

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Durante os anos de 1938 e 1998, foram organizadas quatro expedições em busca do local onde estava o antigo arraial. A primeira busca aconteceu no dia 8 de março de 1938. Participaram desse grupo Guilherme Tambellini, Jesus Machado Tambellini, Antônio Abeid e Oswaldo Alves. A segunda expedição aconteceu nesse mesmo dia, quando, em companhia do administrador da fazenda, o grupo encontrou os vestígios do velho arraial. Uma segunda busca aconteceu no dia 4 de abril de 1938, formada por um novo grupo, e a última ocorreu em 5 de outubro de 1998. Nas duas primeiras expedições, o grupo identificou o lugar, os vestígios da primeira ermida, o cruzeiro e as moradias que circundavam a casa de oração (FIG. 3).

Figura 3 • Croqui do Arraial dos Batataes, 8 de março de 1938. Desenho elaborado por Antonio Abeid (adaptado pelos autores). Fonte: TAMBELLINI, 2000, p. 302.

Como resultado espacial, o Arraial dos Batataes demonstra não ser um núcleo terminado, estático, mas representa um longo “processo nem sempre linear e, portanto, dinâmico” (MARX, 1991, p. 18).

Capela O termo capela, para Bluteau, significa uma parte da igreja onde se encontra o altar, a capela-mor. Mais adiante, ele menciona que a palavra também pode fazer alusão a uma “fazenda, que o testador deixa com obrigação de missas.7 Instituição que avincula certa parte das rendas a encargos de obras pias, como missas”, o que denota que a capela não é somente uma edificação, mas também uma possuidora de uma faixa de terra.

7. BLUTEAU. Vocabulário portuguez e latino..., v. 2 (Letras B-C). Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2013.

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As normas descritas nas “Ordenações Primeiras do Arcebispado da Bahia” eram as diretrizes para a escolha do lugar onde seria construído o templo. O bispo de São Paulo somente autorizava a edificação de uma capela e a formação de moradias ao seu redor se esse chão a ser formado fosse um chão de Deus, o que significa que caberia aos fazendeiros ou sesmeiros a doação de terras para a formação do patrimônio do santo de devoção (patrimônio religioso). Como exemplo dessa conjuntura, destacamos as atuais cidades de Altinópolis, que teve seu patrimônio consagrado a Nossa Senhora da Piedade e Jeriquara, cujo patrimônio foi dedicado a São Sebastião. Essa porção de terras doadas para constituir o patrimônio do santo era usualmente administrada por uma entidade da igreja, a Fábrica,8 que deveria cumprir com aquilo que as Ordenações do Reino determinavam, principalmente conceder data de terra a quem desejasse ali construir sua moradia. Muitos dos bens doados eram também bens móveis, como dinheiro e animais, representando, assim, um dote inicial para sustento e obra da capela. Quando das concessões das terras, usualmente os doadores utilizavam como marcos limítrofes a paisagem natural: relevos acidentados, troncos caídos, bebedouros de animais, marcos imprecisos para os dias atuas. Porém uma constante era a presença de um curso d’água para abastecimento e escoamento do povoado. Para Maria Fernanda Derntl (2010, p. 66), “o território onde viviam os fiéis que frequentavam a capela não era delimitado fisicamente”.

8. A Fábrica constituía uma entidade formada pelos clérigos e fiéis que tinham como função administrar os bens da Igreja, que disporia das terras doadas em datas urbanas, cedidas por aforamento àqueles que se interessassem em viver ali. Geralmente a entidade era composta de pessoas da comunidade e, quase sempre, tinha como presidente o pároco. “O nome fábrica vem do fabrico da Igreja, de sua construção, aformoseamento e compra de alfaias, que era para onde deveriam, em tese, se dirigir (sic) os recursos do aforamento das terras urbanas” (GHIRARDELLO, 2010, p. 75).

Ilustrando esse contexto, em julho de 1847, o vigário Vicente Pires da Motta concedeu parecer favorável à visita e bênção da Capela de Santa Rita, atual cidade de Igarapava. Foi doado um total de 418 hectares para a formação do patrimônio nas proximidades do córrego Santa Rita. No caso da atual cidade de Ipuã, quando de sua formação, o casal Carlos Fernandes e Teresa Fernandes doou uma porção de terras a Santana dos Olhos D’Água. A cidade de Morro Agudo também exemplifica esse prospecto eclesiástico para a formação e construção de uma capela. Na década de 1860, os habitantes locais enviaram uma solicitação ao bispo de São Paulo para erigirem uma capela. Tempos depois, veio o parecer positivo e, no dia 12 de março de 1869, a capela foi abençoada em louvor a São José. Em fevereiro de 1866, outra capela, a Capela do Cuscuzeiro, recebeu ofício do bispo de São Paulo com parecer favorável para a construção e bênção da ermida, mas em louvor a Santo Antônio; hoje essa é a cidade de Santo Antônio da Alegria. O casal Bernardino Pereira da Silva e Julia Rosa Farconieri doou, em 1860, uma porção de terras da fazenda Ressaca para constituir o patrimônio do Divino Espírito Santo, atual cidade de Nuporanga. O termo de doação não faz menção à extensão das terras doadas, mas descreve os marcos limítrofes, caracterizando a fragilidade quanto ao delineamento do espaço patrimonial: Tem princípio na passagem velha para baixo da casa da mesma Desidéria, e desta casa aonde divisa com José Pinto do Guimarães e seus herdeiros e Francisco Alves Tostes, e desta ao Espigão da Fazenda de São Bento e desta à esquerda em rumo direto à tapera, para baixo

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de um brejo e desta voltando à esquerda, pelo veio do Córrego até a estrada que vai para a casa da mesma Desidéria, e desta uma cova, divisando com Francisco Tostes, até onde teve princípio e fim esta divisa (LIVRO 5, 1895 apud IRMÃO, 1975, p. 46). Dois outros casos interessantes são as formações das capelas das atuais cidades de Ituverava e Rifaina. Sobre esta última, José Joaquim Gomes Branquinho, Antônio de Paula Silva Leão, José Francisco da Silveira e Manoel Pereira Cassiano, cada qual com sua esposa, doaram juntos um total de 40 alqueires ao patrimônio de Santo Antônio. Entretanto, a particularidade consiste em que, uma vez concedidas as terras em patrimônio, os doadores já definiram as dimensões das datas e o pé-direito das moradias: Cuja Capela será feita de esmolas e do arrendamento das terras: todas as pessoas que quiserem construir casas no patrimônio serão obrigadas a pagar quatro mil réis por oitenta palmos de frente e cento e sessenta de fundo, cuja quantia será aplicada para as obras e ornamento da capela. Fica nomeado para procurador das obras Manoel Pereira Cassiano, que tomará a seu cargo a arrecadação dos dinheiros, medições dos terrenos e alinhamento das casas, e não consentirá que pessoa alguma levante casa no dito patrimônio que os esteios da frente tenhão a menos de dezoito palmos de pé direito... (RIFAINA, s/d, p. 24, grifo nosso) O aspecto singular de Ituverava é que ela, quando formada como capela e destinada em louvor a Nossa Senhora do Monte Carmo, obteve parecer favorável do bispado paulista, mesmo sendo edificada em terra de terceiros, como revela o termo de autorização: Hei por bem pela presente conceder-lhe faculdade para que o muito Reverendo Pároco desta freguesia [Franca] possa benzer a dita Ermida por si ou por Sacerdote de sua licença, na forma do Ritual Romano o que feito se poderá nela celebrar missa e os demais ofícios divinos, enquanto não se julgar interditada com obrigação, porém de que o instituidor dará os guisamentos necessários, visto não ser patrimoniada (grifo nosso).11 Dentro do status de capela, facilmente poderia acontecer um desdobramento, ou seja, ela poderia vir a se tornar capela colada ou capela curada. As colativas eram mais raras de serem instituídas por serem mantidas pela Coroa; já as curadas eram formadas com mais frequência, contavam com a presença permanente de um cura e dependiam da “boa-fé” dos fiéis no sustento das atividades religiosas, como aconteceu com a Capela de São Bento e Santa Cruz do Cajuru, que se tornou curada em março de 1835.

11.Livro Tombo n. 1 da Igreja Matriz de Franca.

Freguesia É muito comum encontrar nas literaturas memorialista e científica sobre cidades a expressão “freguesia ou paróquia”

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como termos de mesmo significado. Segundo Bluteau, freguesia é uma “igreja parochial, o lugar da cidade, ou do campo, onde vivem os freguezes”12. Sobre o termo paróquia, o padre faz a seguinte colocação: “Parrôchia ou Paróquia, Freguezia, Igreja Parrochial, governada por Parroco”,13 logo depois, ele acrescenta “parrochial, ou parroquial. Cousa concernente a Parrochia ou Freguezia”.14 Portanto, podemos concluir que freguesia e paróquia são realmente sinônimas, como apontam os estudos. Outra conjuntura, não muito frequente, mas que pode surgir com relação a esses termos, é o de circunscrevê-los em ordens diferentes, ou seja, porventura se pode entender o termo freguesia como uma instituição civil e o termo paróquia como uma instituição religiosa. Claudia Damasceno Fonseca, em suas pesquisas sobre os léxicos urbanos na França e no Brasil, particularmente em Minas Gerais, aponta que tanto freguesia como paróquia se referem ao edifício religioso em si, ao patrimônio religioso e ao conjunto de moradores, os fregueses “e, por fim, o território paroquial, que incluía a povoação sede, áreas rurais e, por vezes, sertões residuais” (FONSECA, 2011, p. 86).

12. BLUTEAU. Vocabulário portuguez e latino..., v. 1 (Letras A-K). Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2013. 13. BLUTEAU. Vocabulário portuguez e latino..., v. 6 (Letras O-P). Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2013. 14. BLUTEAU. Vocabulário portuguez e latino..., v. 6 (Letras O-P). Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2013.

Nessa nova condição urbana, uma situação não será alterada: o local da matriz será o mesmo. A modesta capela passará por sucessivas reformas para dar lugar à Igreja Matriz. Cresce o prestígio, e seu adro se torna cada vez mais palco das inúmeras manifestações religiosas e ponto de encontro para a cidadania. Segundo Maria Fernanda Derntl, na condição de capela, não havia a necessidade de demarcar in loco as terras cedidas em patrimônio, porém, quando freguesia ou paróquia, caberia às autoridades locais demarcarem o patrimônio doado quando da formação da capela e o termo da freguesia conforme existissem freguesias limítrofes. Do ponto de vista das autoridades locais, a definição dos limites da freguesia representava o controle sobre a população e a estabilidade administrativa. Não havia uma lógica no processo de elevação de uma capela ao status de freguesia, visto que se “costumava levar em consideração critérios de ordem econômica e demográfica, embora fatores de ordem política mesmo [tinham] preeminência” (DERNTL, 2010, p. 66). Em geral, os moradores solicitavam ao bispo de São Paulo a elevação à freguesia, alegando se encontrarem carentes de assistência espiritual cotidiana, dificuldades com os gentios na caminhada e, principalmente, a distância que enfrentavam até à sede paroquial mais próxima. Assim, a característica particular que definia uma localidade como freguesia era a necessidade de demarcação de suas terras, destacando que essas terras deveriam assegurar uma renda anual mínima para a manutenção da localidade; essa conjuntura é preponderante tanto para as capelas como para as freguesias. Sob esse aspecto, elevar uma capela à condição de matriz era conceder a ela o título de sede da freguesia. Como paróquia ou freguesia significava uma condição religiosa na configuração do urbano, poderia acontecer frequentemen-

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te, assim como na capela, o desdobramento entre freguesia curada e freguesia colada. Maria Fernanda Derntl aponta que, no final do século XVIII e início do século XIX, “A maior parte das freguesias existentes na diocese de São Paulo era curada; apenas treze eram coladas, ou seja, erigidas pelo Rei e mantidas pela Coroa” (DERNTL, 2010, p. 68). As origens da formação da cidade de Patrocínio Paulista data da segunda metade do século XVIII, quando entrantes mineiros afluíram em busca de terras férteis e outras fontes de riquezas. Eles foram se estabelecendo em pequenos núcleos familiares numa área conhecida, na época, como Barro Preto. Logo depois, fundaram uma pequena povoação denominada Santa Bárbara das Macaúbas. Em julho de 1833, em razão de um número considerável de habitantes, foi criada a Freguesia. Como a maioria dos entrantes eram garimpeiros das Gerais, muitos continuaram a explorar os ribeirões próximos, prejudicando o fornecimento de água. Os fazendeiros locais, liderados por João Cândido dos Reis, enviaram uma petição ao governo estadual, solicitando que a freguesia não continuasse ali. Entretanto novas notícias da existência de pedras preciosas provocaram nova migração de entrantes para essa região. Nesse novo movimento, os garimpeiros se instalaram em terras da Fazenda do Turvo, onde hoje está situada a cidade de Patrocínio Paulista. O padre Cândido Rosa, observando o aumento do número de entrantes, interveio junto a eles, requerendo uma doação de terras para a formação do patrimônio da capela de Nossa Senhora do Patrocínio do Sapucaí. Em julho de 1869, Joaquim Carlos Monteiro e esposa fizeram uma doação pública de uma parte das terras da Fazenda do Turvo para a constituição do patrimônio e construção da ermida. Em 30 de março de 1874, o então presidente da Província, João Theodoro Xavier, promoveu a elevação da capela à condição de freguesia, estabelecendo o seu termo. Dentro da Vila Franca do Imperador, “foram aprovadas por atos da mesma presidência, em 13 de maio de 1875, e marcadas as divisas em 3 de outubro do mesmo ano” (FÉLIX, 2012, p. 29). Em 1905, uma planta elaborada pelo agrimensor Antônio Carlos de Vilhena circunscreveu, de forma precisa, a demarcação do patrimônio (FIG. 4), “com todas as datas anteriores, e constatou que a primeira foi concedida em 1º de abril de 1870, e a construção de prédios regulares começou nesse mesmo ano” (FÉLIX, 2012, p. 29).

Vila Tendo a sede da freguesia crescido e se adensado, poderiam os moradores sentirem-se fortes o suficiente para pleitear e conquistar “finalmente a sua autonomia política, a categoria de município” (MARX, 1991, p. 62), ou seja, atingir o status de vila. Segundo Bluteau, vila é uma “povoação aberta, ou cercada, que nem chega a cidade, nem he tão pequena, como Aldeia. Tem Juiz, & Senado da Camara & seu pelourinho”.15 Não é cidade, mas também não é freguesia ou outra categoria de povoação, uma condição delicada para analisar.

15. BLUTEAU. Vocabulário portuguez e latino..., v. 8. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2013.

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Segundo as colocações de Bluteau, caberia à vila estabelecer a presença do Estado, das instâncias do poder civil no processo de gerenciamento desta. Isso significa que, quando uma localidade recebia o título de vila, ao mesmo tempo, era-lhe conferido o direito de se autogerir, de ter uma câmara e mais a jurisdição de um território e terras para a renda. Na condição de vila, o núcleo urbano era formalmente integrado ao Império Português.

Figura 4 • “Planta de Patrocínio Paulista”, s/d. Em destaque, o patrimônio de Nossa Senhora do Patrocínio, todavia, em razão do estado de conservação, não é possível concluir os limites na parte inferior da planta. Ao centro, o símbolo () indica a localização da Igreja. Essa planta faz parte do acervo do Arquivo Histórico do Estado de São Paulo, não constando do nome do autor e o ano de sua elaboração (adaptado pelos autores). Fonte:. Acesso em: 25 jul. 2013.

Muitos dos concelhos municipais tinham como sede uma vila, tornando sinônimos os dois termos. Todavia, cada concelho tinha duas partes distintas: “a vila – núcleo urbano principal, onde se reúne a câmara – e seu termo – o território de jurisdição dos oficiais camarários, que incluía geralmente várias localidades” (FONSECA, 2011, p. 29). Esse contexto denota que a vila tinha duas dimensões espaciais: no âmbito local, a povoação-sede de um concelho; no âmbito territorial, todo o espaço ao entorno da sede. Essas duas dimensões espaciais estão associadas a duas circunscrições territoriais para a formação de uma vila: o termo e o rossio. O termo, extensão de terras maior, corresponde ao território controlado pela câmara, onde podia haver vários bairros e paróquias (freguesias com seus termos, como foi o caso de Franca por um período). O rossio se refere a uma área territorial menor, destinada à divisão em terrenos, a fim de integrar o patri-

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mônio da câmara. “Esta podia dividi-los em “chãos” (lotes) e concedê-los, mediante o pagamento dos foros anuais, aos moradores que os pediam para edificar suas casas” (FONSECA, 2011, p. 30). O rossio, em linhas gerais, era uma faixa de terras em quadra destinada à expansão urbana e de uso comum, ele era demarcado a partir do centro geométrico, o pelourinho, que “materializava a justiça administrativa pelos oficiais da municipalidade” (FONSECA, 2011, p. 30). Havia todo um ritual solene quando da definição dos limites, com a presença de autoridades civis e eclesiásticas, pois era o reconhecimento formal da localidade como vila. Entretanto, “os rossios, assim como os termos, usualmente tinham limites confusos e imprecisos” (DERNTL, 2010, p. 75). Era de responsabilidade das câmaras municipais gestarem os aspectos fundamentais da vida e do cotidiano dos moradores da localidade, organizando-se por meio da elaboração dos códigos de posturas. As câmaras eram compostas por dois ou três vereadores, um procurador e um ou dois juízes ordinários, segundo as “Ordenações Filipinas”. Essas autoridades tinham de ser escolhidas dentre os homens bons da vila e mediante eleições indiretas. Essas “Ordenações” também determinavam que fossem construídas a casa de câmara e a cadeia. Em síntese, o status de vila era alcançado quando a autonomia era conquistada, quando as questões referentes à municipalidade e urbanísticas, em especial, passavam a merecer uma atenção maior, direta. Entretanto, Murillo Marx destaca que, mesmo com a nova categoria urbana, ainda “ficou referido aos antigos elementos, na maioria das vezes insuperados, símbolos antigos, largo e igreja matriz, conjunto articulado e foco inconteste da agora vila” (MARX, 1991, p. 65). No ano de 1821, a Freguesia de Franca foi elevada à condição de Vila. Assim, na antiga área do patrimônio religioso, foi sobreposta uma légua de terra que a Câmara da Vila ganhou da Província paulista para servir de rossio. A localidade passou a ter duas instituições (religiosa e civil) como responsáveis pela conformação da terra urbana. Segundo a permissão: À dita nova Câmara uma sesmaria de meia légua de terras absolutamente devolutas, conjunta ou separadamente, na forma determinada por sua Majestade a esse Governo, em Aviso Régio de 4 de novembro de 1799 para seu Patrimônio, e poderá a Câmara, depois de havidos os competentes títulos aforar essas terras em pequenas porções, por emprazamentos perpétuos, foros racionais, e laudêmios de lei, observando-se o Alvará de 23 de julho de 1766 (CHIACHIRI, 1979 apud BENTIVOGLIO, 1997, p. 74). Essas terras que constituíram o rossio da Vila de Franca foram demarcadas, a partir do pelourinho, em dezembro de 1824, compreendendo “seis mil braças em quadro, tendo para o lado das covas ao norte 1650 braças, para o lado sul 450 braças, para oeste 945 braças e a oeste 555 braças”16 (LIMA, 1995 apud BENTIVOGLIO, 1997, p. 75). Segundo Bentivoglio, essa irregularidade do rossio em quadra foi motivada pelo fato de, na parte sul, já haver terras ocupadas, demarcando-se uma

16. Uma braça equivale hoje a 2,2 m, portanto, seis mil braças em quadra são 13.200 m², assim 1.650 braças são 3.630 m, 450 braças equivalem a 990 m, 945 braças são 2.079 m e 555 braças equivalem a 1.221m.

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medida inferior. Como ao norte havia terras devolutas, essa medida foi então aumentada. Na parte oeste, também já havia terras com título de posse, aumentando-se a medida para leste (BENTIVOGLIO, 1997, p. 75), como mostra a FIG. 5. As terras do rossio foram mantidas para o uso comum dos moradores, destinadas a atender às necessidades do núcleo urbano, como moradia e pastagem de animais. Diferente era a demarcação administrativa, o termo. No caso de Franca, o termo estabelecido foram as terras entre os rios Sapucaí-Mirim e Grande, devido a essas terras serem zona de litígio e pelo reconhecimento legal da Freguesia de Batatais, que teve como jurisdição territorial as terras entre os rios Pardo e Sapucaí-Mirim.

Figura 5 • O rossio da Vila de Franca. Em destaque, o rossio da Vila de Franca em cartografia de 1969. A seta indica a localização do pelourinho (adaptado pelos autores).Fonte: BENTIVOGLIO, 1997, p. 74.

Não é intenção nossa discutir o processo de elevação de vila à condição de cidade, pois este último status “não lhe conferia automaticamente nenhuma prerrogativa econômica ou política suplementar” (FONSECA, 2011, p. 29), embora tornar-se sede de bispado pudesse ser um excelente argumento.

Considerações finais Nessa busca pelo passado, com relação à história dos status urbanos, não devemos nos ater exclusivamente aos vestígios concretos, isto é, às formas materiais que, de alguma maneira, (re)configuraram a paisagem de muitas cidades, mas também às articulações e manobras dos interessados. As normas eclesiásticas e civis desse passado, que atuaram muito e diretamente no processo de formações urbanas pelo território, fazem-se valer até hoje. Dessa maneira, sem compreendê-las adequadamente, segundo suas especificidades, não será possível pensar adequadamente o espaço urbano, sua gênese e sua evolução. Nem seremos capazes de relativizar as questões que, de tempos em tempos, emergem acerca da propriedade fundiária urbana.

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Pensar o passado das cidades é o passo fundamental para se buscarem formas adequadas de agir junto às localidades que ainda hoje fazem subsistir, em seu tecido urbano, as relações conflituosas do clero e do Estado, os reflexos dessa conjuntura na expansão das cidades e os problemas desencadeados com o passar dos tempos. Referências ABREU, Maurício de Almeida. A apropriação do território no Brasil colonial. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs.). Explorações geográficas: percursos no fim do Século. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 197-245. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado; BRIOSCHI, Lucila Reis (org.). Na estrada do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 1999. BENTIVOGLIO, Júlio César. Igreja e urbanização em Franca: século XIX. Franca: Unesp-FHDSS, 1997. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2013. BRIOSCHI, Lucila Reis. Criando história: paulistas e mineiros no nordeste de São Paulo (1725-1835). 1995. 266 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. CHIACHIRI FILHO, José. Do Sertão do Rio Pardo à Vila Franca do Imperador. Ribeirão Preto: Ribeirão, 1986. CORRÊA, Roberto Lobato. O estudo da rede urbana: uma proposição metodológica. In: Roberto Lobato Corrêa (org.): Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 16-57. DERNTL, Maria Fernanda. Método e arte: criação urbana e organização territorial na capitania de São Paulo (1765-1811). 2010. 225 f. Tese (Doutorado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. FÉLIX, Sandra Regina (org.). Patrocínio Paulista: 127 anos de história. São Paulo: Noovha América, 2012. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio Júnior: dicionário escolar da língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2011. FONSECA, Claudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. GHIRARDELLO, Nilson. A formação dos patrimônios religiosos no processo de expansão urbana paulista (18501900). São Paulo: UNESP, 2010. IRMÃO, José Aleixo. Nuporanga Minha Terra (1861-1930). São Paulo: Cúpulo, 1975. MARX, Murillo. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Universidade de São Paulo, 1991.

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1. Mestra e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU UFBA), especialista pelo Curso de Especialização em Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios Históricos (IX Cecre UFBA), arquiteta pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EA UFMG), professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA) e do Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos (MP-Cecre UFBA). Pesquisadora Associada do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFBA). Coordenadora Acadêmica da FAUFBA. 2. Mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU UFBA), especialista pelo Curso de Especialização em Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios Históricos (IX Cecre UFBA), arquiteto pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EA UFMG), professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA), do Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos (MP-Cecre UFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFBA). Coordenador do MP-Cecre UFBA, diretor da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo (Anparq). DOI: 10.5752/P.2316-1752.2014v21n28p120

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Conflitos entre a Arqueologia e a Arquitetura: o Templo Mayor na Cidade do México e o Pátio Franciscano em Olinda Conflicts between archeological excavations and the urban heritage: the Templo Mayor in Mexico City and the São Francisco Square in Olinda Los conflictos entre Arqueología y Arquitectura: el Templo Mayor en la Ciudad de México y el Patio Franciscano en Olinda

Juliana Cardoso Nery1 Rodrigo Espinha Baeta2 Resumo Este artigo visa a analisar ações que, nos últimos anos, têm provocado, em nome da Arqueologia, verdadeiras mutilações nos tecidos urbanos históricos. Avaliando-se duas polêmicas intervenções, almeja-se promover uma discussão sobre os conflitos gerados entre o desejo de se privilegiar a recuperação de vestígios soterrados da história em determinados sítios consolidados, em prejuízo da percepção do espaço arquitetônico e urbano. Os problemas poderiam ser assim formulados: até que ponto se justificaria a perda de fragmentos de tecido urbano preexistente, que compunham artisticamente a continuidade arquitetônica e urbanística de centros históricos reconhecidos pelo seu estado de conservação, em nome do estudo e, ou, exposição de ruínas e objetos vinculados a um período anterior e sepultados há séculos? Palavras-chave: Escavações. Arqueologia. Intervenções no patrimônio edificado. Ruínas. Abstract This article aims to analyze actions that, in the last two centuries, have caused, in the name of archeology, true mutilations over the cities. The evaluation of two and polemic interventions, intend to promote discussion about conflicts between the desire to favor the recovery of traces of history buried in certain consolidated places, causing impaired perception of architectural and urban space. Consequently, the problems could be formulated this way: To what extent would justify the loss of fragments of preexisting urban landscape, that made artistically the continuity of architectural and urban historical centers recognized by their state of conservation, on behalf of the study and/or exposure ruins and objects linked to an earlier period and buried for centuries? Keywords: Excavations. Archeology. Interventions in heritage buildings. Ruins.

Resumen Este ensayo tiene como objetivo analizar las acciones que, en los últimos años, han provocado en el nombre de la arqueología, verdaderas mutilaciones en el tejido urbano histórico. Con la evaluación de dos intervenciones polémicas, nuestro objetivo es promover una discusión sobre los conflictos que se generan entre el deseo de favorecer la recuperación de los restos enterrados de la historia en ciertos sitios consolidados, causando la alteración de la percepción del espacio arquitectónico y urbano. Los problemas se podrían formular así: ¿Hasta qué punto había de justificar la pérdida de fragmentos de tejido urbano preexistente, ingeniosamente compuesto en la continuidad de los centros históricos urbanos y arquitectónicos reconocidos por su condición, en nombre del estudio y / o la exposición de las ruinas y objetos vinculados a un periodo anterior y enterrados por siglos? Palabras clave: Excavaciones. Arqueología. Las intervenciones en el patrimonio construido. Ruinas

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Este artigo almeja suscitar um debate que envolveria a temática da preservação de sítios antigos de indiscutível qualidade arquitetônica, consolidados e preservados, assentados em importantes núcleos urbanos, edificados, no entanto, acima de vestígios arqueológicos ancestrais de culturas e civilizações que teriam dominado as regiões em precedência, ou que se sobrepuseram a registros históricos que desvelariam, entre outros documentos de um passado distante, a morfologia das primeiras ocupações do território. Consequentemente, os problemas poderiam ser assim formulados: até que ponto se justificaria a perda de fragmentos de tecido urbano preexistente, que compunham artisticamente a continuidade arquitetônica e urbanística de centros históricos reconhecidos pelo seu estado de conservação, em nome do estudo e, ou, exposição de fundações, alicerces, pisos, paredes, colunas, bem como artefatos e obras de arte (ruínas e objetos vinculados a um período anterior e sepultados há séculos)? É possível dizer, no que se refere à questão da preservação, que o vestígio mais antigo é sempre mais importante que o mais recente, e que, portanto, sua recuperação autoriza a destruição daqueles extratos mais novos e superficiais, mesmo se a massa edificada que está ocultando os resquícios arqueológicos subjacentes se reconhece como de capital importância? Qual é realmente a grande perda que esse tipo de atitude pode provocar para os centros históricos consolidados? Logo, este artigo visa a analisar ações que, nos últimos dois séculos, têm provocado, em nome da Arqueologia, verdadeiras mutilações nos tecidos históricos. Avaliando-se diversas e polêmicas intervenções, almeja-se promover uma discussão sobre os conflitos gerados entre o desejo de se privilegiar a recuperação de ruínas soterradas da história em determinados sítios consolidados, em prejuízo da percepção do espaço arquitetônico e urbano.

As escavações do Templo Mayor na Cidade do México No dia 25 de fevereiro de 1978, durante a abertura de uma fenda, com a finalidade de se colocar um cabeamento subterrâneo em um quarteirão vizinho à Catedral Metropolitana da Cidade do México, funcionários da Compañía de Luz y Fuerza del Centro encontraram, a uma pequena profundidade, um grande monólito com mais de três metros de diâmetro e cerca de 30 centímetros de espessura. Essa pedra, aproximadamente circular, apresentava uma escultura em alto relevo, que representava a deusa asteca da lua (Coyolxauhqui), ídolo que se assentava na escadaria à direita da pirâmide do Templo Mayor, principal recinto cerimonial da antiga capital dos astecas,3 Tenochtitlán.

3. Também conhecidos como mexicas.

Essa significativa descoberta levaria o Instituto Nacional de Antropología e Historia (INAH) a dar início a um vasto programa de investigações arqueológicas na área, ação desenvolvida em longo prazo, conhecida como Proyecto Templo Mayor. A consequência mais imediata desse complexo programa foi a escavação, já iniciada em 1978, de mais de 1,35 hectares na zona

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adjacente à descoberta do monólito, em nome da exibição, a céu aberto, de importantíssimos testemunhos da imensa área sagrada localizada em uma plataforma ao centro da pujante capital dos mexicas: particularmente das fundações e alicerces das 13 etapas construtivas do Huey Teocalli,4 o Templo Mayor de Tenochtitlán; as quatro etapas da chamada Casa de las Águilas; bem como restos de organismos arquitetônicos e milhares de objetos, esculturas e pinturas murais, que se espalhavam nas proximidades, acima do terraço. Além disso:

4. Teocalli é uma palavra nauatle (a língua dos antigos astecas), que significa “Casa de Deus”, ou seja, o termo asteca para “templo”.

O projeto também teve, a seu encargo, o condicionamento da zona arqueológica do Templo Mayor, tanto para a visitação turística, a conservação dos monumentos arquitetônicos e escultóricos da zona, a restauração dos artefatos e dos ecodados recuperados, a criação de um museu do sítio que expõe os materiais que foram produto das escavações quanto para o estabelecimento de um centro de investigação especializado na cultura mexica e na Arqueologia do chamado primeiro quadro da Cidade do México (LUJÁN, BALDERAS, 2010, p. 296, tradução nossa). A qualidade e o zelo das escavações e do tratamento do sítio arqueológico impressionam. É cativante caminhar por passarelas abertas em meio aos alicerces das etapas construtivas do Templo Mayor e compreender o sistema de substituição de um teocalli mais antigo por outro que se sobrepunha a ele, aumentando sobremaneira suas dimensões: uma situação privilegiada, já que permite a compreensão do processo de desenvolvimento arquitetônico do monumento por meio da revelação das bases de seis pirâmides expostas dentro do que seria a estrutura maior do Huey Teocalli, a última e mais recente “camada”: aquela enorme estrutura que o conquistador Hernán Cortés teria visto em 1519 e, posteriormente, com a ajuda dos primeiros invasores peninsulares, empenhado-se em destruir juntamente com outros tantos imponentes edifícios da cidade de Tenochtitlán (FIG. 1 a 3). Por outro lado, caminhando pelas passarelas do sítio arqueológico, é possível deparar com outra série de ruínas dispersas de construções rituais do antigo centro cerimonial, tudo delicadamente preservado e com informações contidas em uma comunicação visual eficiente e esclarecedora. Também interessante é apreciar a arquitetura do Museu del Templo Mayor, que se levanta na periferia das escavações, ainda dentro da área desobstruída do centro histórico. A obra de 1987 é do renomado arquiteto mexicano Pedro Ramírez Vázquez, mais conhecido pelo projeto do Museu de Antropología da Cidade do México. Para além do edifício em si, o museu expõe, em seu acesso, uma ilustrativa maquete que reconstitui o recinto sagrado da capital asteca. Também acolhe, em grande destaque, a pedra de Coyolxauhqui, bem como milhares de artefatos e obras de arte descobertos durante as escavações da área. Contudo, não obstante o caráter fascinante que as ruínas do Templo Mayor podem causar ao visitante, as escavações provocaram a abertura de um imenso vazio na área de ocupação mais primitiva da cidade colonial, a dois passos da Catedral Metropolitana e da praça principal, conhecida como El Zócalo.

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Figura 1 • Uma das etapas construtivas da pirâmide do Templo Mayor revelada nas escavações. Fonte: fotografia nossa, 2009. Figura 2 • Detalhe da maquete do Huey Teocalli, mostrando suas etapas construtivas. Museu do Templo Mayor, Cidade do México. Fonte: fotografia nossa, 2009.

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Ao abrir esta “clareira” para empreender os estudos arqueológicos e observar as ruínas a serem expostas, 13 edifícios de diversas épocas, que compunham ao menos dois quarteirões do centro histórico, foram jogados abaixo. Os arqueólogos Leonardo López Luján e Ximena Chávez Balderas, profissionais que têm atuado diretamente no Proyecto Templo Mayor, discutindo os problemas que comumente derivam das escavações dos vestígios de Tenochtitlán sobre a área central da capital mexicana, afirmaram:

Figura 3 • Sítio arqueológico do Templo Mayor. Panorama das pirâmides ancestrais que estavam ocultas por aquela maior que Cortés teria visto em 1519 e desmontado após a conquista da capital asteca. Fonte: fotografia nossa, 2009.

Esta área, declarada patrimônio da humanidade pela UNESCO, acolhe o conjunto monumental com maior riqueza artística e histórica do continente americano. Lá coexistem edifícios de uma qualidade excepcional, pertencentes a estilos tão diversos, como o barroco, o neoclássico, o eclético porfiriano, o art nouveau, o art déco e o neocolonial. Em muitos casos, trata-se dos mais belos expoentes da Arquitetura ocidental no Novo Mundo, sem que isso signifique que estejam isentos das contribuições de uma cultura local caracterizada pela sua grande vitalidade. Em tal contexto, o paradoxo consiste em que qualquer tentativa ambiciosa para recuperar os restos materiais de Tenochtitlán e reconstruir a história de seus habitantes implica sacrificar uma parte imprescindível da herança colonial e dos séculos XIX e XX (LUJÁN, BALDERAS, 2010, p. 294-296, tradução nossa). Ou seja, a exposição das ruínas dos alicerces do Tempo Mayor acabaria criando um grave problema e gerando uma importante discussão: o valor, indubitavelmente inestimável, das descobertas arqueológicas no centro histórico de conformação colonial da Cidade do México compensa ou justifica a perda de 13 construções e a abertura de um desolado buraco na mais importante área do centro histórico? Para embasar o debate, seria necessário discorrer sobre o processo de desenvolvi-

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mento urbano da área, particularmente a formação e a constituição da paisagem urbana da capital mexicana.

Sobre Tenochtitlán Após as primeiras décadas de colonização dedicadas à conquista e ocupação das ilhas e costas do Caribe, os espanhóis deparariam com realidades muito mais complexas e atraentes, que coincidiriam com as regiões nas quais as mais adiantadas culturas autóctones americanas estariam habitando há mais de quatro milênios, áreas que viriam a se tornar os territórios mais importantes entre as vastas e diversas regiões destinadas à colonização. Em maior destaque apareceriam os domínios do poderoso império dos Astecas, sediado no planalto mexicano. Por ocasião da invasão espanhola, essa cultura nativa teria subjugado, há algum tempo, a maioria dos povos que viviam nas partes mais desenvolvidas da Mesoamérica.5 Segundo diversas estimativas atribuídas a muitos dos autores que estudaram as culturas mesoamericanas (LEÓN-PORTILLA, 2003, p. 29), o México Central, a área mais importante sob o domínio da civilização asteca, chegaria a contar com uma população entre 12 e 25 milhões de indivíduos por ocasião da conquista. Mesmo a menor das cifras seria impressionante em relação às 7 milhões de pessoas que deveriam viver na Espanha por volta de 1492. Seguramente, em termos de urbanização, seria a última e a mais desenvolvida das etapas históricas das civilizações mesoamericanas (HARDOY, 1999, p. 163). Ponderando especificamente sobre a sede do império dos mexicas e baseado em relatos de conquistadores que conviveram com a capital asteca de 12 de novembro de 1519, quando Hernán Cortés e seus homens chegaram ao núcleo central, a convite do imperador Moctezuma II, até 13 de agosto de 1521, quando cairia a última resistência imperial, cronistas assegurariam um número de, pelo menos, 60 mil habitações espalhadas pelo núcleo urbano. Em razão dessa quantidade de casas avaliada pelos espanhóis que tomaram a cidade, usualmente o número de habitantes de Tenochtitlán seria estimado em cerca de 300 mil, cifra que parece um pouco exagerada para alguns autores, mas que seria confirmada com segurança pelos contemporâneos, bem como pela maioria dos investigadores do tema. Hardoy (1999, p. 166) que, a princípio, veria certo abuso no cálculo tradicional, não conseguiria propor uma nova estimativa, mas avaliaria que a população da capital asteca alcançaria bem mais que a metade do considerado; ou seja, atingiria um patamar muito superior a 150 mil habitantes. Qualquer uma das suposições seria surpreendente, levando-se em consideração que nenhuma cidade espanhola, por ocasião da conquista, chegasse próximo a essa cifra; por outro lado, poucos núcleos urbanos europeus ultrapassariam os 100 mil habitantes no século XVI. Na cidade, que fora levantada na pequena ilha do lago Texcoco, as casas, em sua maioria, estariam distribuídas nos quatro bairros próximos às áreas de chinampas, método de agricultura comum no vale do México, onde verduras e flores eram cultivadas em áreas retangulares que flutuavam acima da su-

5. Mesoamérica é uma região do continente americano que coincide, aproximadamente, com as áreas centrais e meridionais do território mexicano, delimitando-se, ao norte, pelo Rio Fuerte, bem acima do que hoje seria a capital do país, e envolvendo todas as regiões abaixo (como Oaxaca, Chiapas, Yucatán), além, de outros países, como a Guatemala, El Salvador, Belize e as partes ocidentais da Nicarágua, Honduras e Costa Rica. Mais importante seria o fato de a Mesoamérica ter acolhido as grandes civilizações pré-colombianas das Américas do Norte e Central, como os olmecas, zapotecas, teotihuacanos, maias, totonacas, mixtecas, toltecas, astecas.

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perfície de lagos e lagunas. Esses bairros possivelmente se organizavam por meio de uma divisão conseguida mediante a presença de quatro calçadas retilíneas, ordenadas segundo os pontos cardeais, caminhos que venciam as águas do lago Texcoco. Dentro da ilhota, as calçadas poderiam se transformar em avenidas regulares que alcançariam a plataforma na qual seriam levantados o citado teocalli, a pirâmide do Templo Mayor da capital asteca, e um número significativo de monumentos dispersos regularmente entre os espaços vazios rituais da vasta plataforma que constituía o recinto sagrado da cidade (FIG. 4 e 5).

Figura 4 • Pintura mural da Sala Asteca do Museu de Antropología da Cidade do México reconstituindo o cenário de Tenochtitlán. Fonte: fotografia nossa, 2009. Figura 5 • Maquete que reconstitui a plataforma sagrada de Tenochtitlán. Museu de Antroplogía da Cidade do México. Fonte: fotografia nossa, 2009.

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De Tenochtitlán a Cidade do México: a Plaza Mayor Após a tomada da cidade, em 1521, com a ideia de apagar todo e qualquer resquício da preexistente metrópole pré-colombiana, Cortés escolheria o próprio sítio de Tenochtitlán como a base topográfica para acolher aquela que viria a ser a mais importante cidade da América hispânica, a capital do Vice-Reinado da Nueva España. Assumindo o princípio da tábula rasa e da sobreposição, imediatamente se pensou em um moderno desenho viário para o novo núcleo urbano espanhol. Curiosamente, o designer da nova cidade de origem peninsular, o agrimensor e mestre de obras, Alonso García Bravo, concebeu o realinhamento regular da Cidade do México (então Nueva Tenochtitlán), preservando as principais vias do ancestral núcleo asteca, os eixos distribuídos ortogonalmente que comporiam as quatro avenidas que atingiriam o teocalli, artérias que hoje estão dispersas na grelha viária da região central. Mesmo assim, a herança monumental deixada pelos mexicas iria gradativamente desaparecer após o desmantelamento dos grandes edifícios de Tenochtitlán, vestígios do império subjugado, ocultos logo abaixo das construções coloniais que os esconderiam. A área mais importante da cidade colonial, a Plaza Mayor, seria aberta, não por acaso, adjacente ao que seria a plataforma cerimonial de Tenochtitlán. Na verdade, parte de El Zócalo iria se sobrepor diretamente ao antigo recinto sagrado, particularmente na área na qual seria levantada a Catedral. Mesmo não alcançando o tamanho desmesurado da antiga plataforma, a plaza mayor da capital do antigo Vice-Reinado da Nueva España contaria com uma extensão desconhecida para as cidades europeias contemporâneas: com impressionantes 350 metros de comprimento por 250 de largura. Já o complexo da Catedral, incluindo seu estonteante sacrário barroco, projetado pelo arquiteto espanhol Lorenzo Rodríguez, ocuparia uma área quadrangular de aproximadamente 140 metros de lado, constituindo um sólido volume que se destacaria, dramaticamente, pela sua colossal massa construtiva: a maior igreja erguida na América colonial, assentada no âmago da mais extensa das praças virreinales. A sede episcopal, desse modo, não se diluiria e nem se apagaria no gigantesco vazio da esplanada. Exercendo o papel de protagonista na composição do drama encenado no Zócalo, despontaria como o mais imponente evento arquitetônico da cidade virreinal, assim como era o papel do Huey Teocalli para Tenochtitlán.

Sobre a traza da Cidade do México Quando se analisa a conformação dos núcleos urbanos fundados pelos espanhóis nas Índias Ocidentais durante o Período Colonial, fica latente o processo de desenvolvimento de uma tipologia regular de cidade: uma tendência

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de ordenação referente ao plano gerador dos assentamentos humanos criados (e algumas vezes sobrepostos a antigos aglomerados pré-colombianos), que teria sido repetida inúmeras vezes, nas mais diversas regiões do vastíssimo território sob o domínio da metrópole peninsular. Segundo Nicolini (2005, p. 29), o delineamento regular das cidades fundadas na parte hispânica do grande continente aspiraria, gradativamente, a um esquema cada vez mais rigoroso, culminando na realização de um modelo de cidade que apresentaria uma organização absolutamente cartesiana: a cidade projetada de forma reticular, com quarteirões e plaza mayor quadrangulares ou retangulares. No caso da Cidade do México, Alonso García Bravo projetaria a traza após 1521, seguindo a recente tradição de elaboração do design das cidades hispano-americanas por meio de uma grelha obsessivamente ordenada, apesar da apropriação de parte das antigas vias que rasgavam a capital asteca. Nas centúrias subsequentes à fundação e à implantação da cidade ortogonal, o rígido plano abstrato, que tomaria forma na primeira metade do século XVI, com o assentamento do sistema viário, teria sua imagem preexistente potencializada pelo crescimento interno da cidade, mesmo admitindo a manutenção integral da estrutura viária colonial. O primeiro aspecto essencial desse processo de transformação iria se dar pela gradativa subdivisão dos desmedidos solares destinados aos conquistadores e fundadores em diversos lotes de menores dimensões. O gabarito superior das construções que ocupariam o lugar das antigas casas isoladas, bem como a constante regularidade das alturas dos sobrados, a multiplicação das edificações e a consequente ausência dos vazios que despontariam nas testadas dos solares, tudo isso somado ao fato de as edificações civis se apresentarem contíguas, agregadas umas às outras e rigidamente alinhadas com as vias, atribuiriam aos panoramas retirados de dentro da grelha ortogonal um forte impulso perspectivo. A interminável sequência das fachadas dos sobrados residenciais ou de uso misto, ordenada de forma retilínea, flanqueando as duas faces das vias mais importantes, produziria “paredes” de edificações trabalhadas com ricas, ritmadas e variadas modenaturas, marcações que colaborariam para a aceleração daquela fuga em profundidade que buscaria o plano infinito, não obstante as interrupções dos cruzamentos regulares. Para além disso, a área central da Cidade do México, declarada Patrimônio da Humanidade em 1987, tem preservado, com poucas alterações, o aspecto que seria consolidado no decorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX. Um cenário no qual a imensa Catedral, assentada no colossal vazio da Plaza de Armas, assim como uma grande quantidade de igrejas, com suas altas torres e suas maciças cúpulas, despontariam como “figuras” no “fundo” regular da massa edificada distribuída pela grelha ortogonal do núcleo urbano (FIG. 6 e 7).

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Figura 6 • Ilustração confeccionada por Casimiro Castro, em meados do século XIX ,de um balão aerostático. Nela se vislumbra a Catedral assentada no colossal vazio da Plaza de Armas, assim como a grande quantidade de igrejas, com suas torres e cúpulas despontando como “figuras” no “fundo” regular da massa edificada distribuída pela grelha ortogonal do núcleo urbano. Imagem do estofado de uma poltrona pertencente ao acervo do Museo de la Ciudad de México. Fonte: Rodrigo Baeta, 2009.

Figura 7 • Imagem aérea da praça principal (El Zócalo) da Cidade do México. Seria aberta ocupando uma parte da antiga plataforma sagrada da capital asteca, justamente a área na qual seria edificada a monumental Catedral. Fonte: CEHOPU (1989, p. 189).

Nesse sentido, a rígida estrutura viária preexistente acabaria favorecendo a busca por expressões arquitetônicas que pudessem destacar os edifícios religiosos na extensa e repetitiva superfície da grelha; e aqui entraria uma das maiores contribuições barrocas à conformação da paisagem urbana transfigurada nos séculos XVII e XVIII. De fato, grande parte das construções religiosas que se espalhariam pela cidade já teria sido erigida no século XVI, normalmente contando com um pequeno recuo aberto para dentro do quarteirão, espaço conquistado na manzana, deslocando a igreja do alinhamento das construções ordinárias, para conformar, desse modo, seu adro e marcar sua condição hierarquicamente superior. Ou seja, o realce dos edifícios religiosos não poderia ser comandado apenas pelas suas modestas inserções urbanísticas. Notadamente, a estrutura dramática perseguida seria alcançada por meio das intervenções que as igrejas sofreriam durante o período barroco (FIG. 8 e 9).

Fragmentação da paisagem urbana do centro histórico da Cidade do México: as escavações do Templo Mayor Nesse sentido, as fraturas decorrentes das escavações empreendidas a poucos metros a nordeste da Catedral Metropolitana da Cidade do México recaem em uma série de problemas vinculados à temática da preservação desse sítio histórico de valor artístico inestimável, de características urbanísticas e pai-

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Figura 8 • Perspectiva da Rua República de El Salvador, com destaque para a torre do complexo do Oratório de São Felipe Néri. Fonte: fotografia do autor, 2009.

Figura 9 • A recuada fachada-retábulo churrigueresca do Oratório de São Felipe Néri. Este conjunto proporcionaria um interessante jogo cenográfico lançado na rígida grelha ortogonal. Fonte: fotografia do autor, 2009.

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sagísticas coloniais. Primeiramente, a dilaceração da massa edificada fechada e unitária de pelo menos algumas manzanas assentadas na área mais importante do centro histórico, com a consequente abertura de um imenso vazio no tecido denso, prejudica sobremaneira o típico encaminhamento perspectivo oriundo dos panoramas retirados da calha das vias retilíneas. Por outro lado, interrompendo a sequência de fachadas alinhadas que, de maneira cadenciada, provocava a fuga em profundidade das ruas, o vácuo que expõe as escavações do centro cerimonial asteca passa naturalmente a se destacar no sítio colonial, competindo com os monumentos religiosos, que, com seus pequenos e discretos recuos, mas especialmente com sua imponente arquitetura e decoração, deveriam ser os protagonistas absolutos do cenário artístico de conformação barroca da área central. As escavações chegam mesmo a ameaçar a Catedral e a Plaza Mayor, que deveriam imperar absolutos no núcleo central da capital, já que a imensa “clareira” está aberta contígua ao Zócalo (FIG. 10 a 12). Não há dúvidas, como fica claro nesta explanação, a importância de se estudarem e exporem as ruínas de monumentos levantados pela civilização asteca, cultura ancestral determinante para a formação do povo mexicano. Foi comentada a qualidade arquitetônica e museológica que a área do Proyecto Templo Mayor recebeu nas suas três décadas de existência. Mas as perdas no centro vivo derivadas dessa intervenção não podem ser toleradas no que tange à preservação integral de um dos mais impressionantes cenários urbanos coloniais existentes. Figura 10 • Implantação dos principais edifícios e avenidas do centro de Tenochtitlán em relação ao plano da atual Cidade do México. Reparar a posição da Pirâmide Maior, assinalada. Fonte: LÓPEZ, 2007, p. 29.

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Figura 11 • Imagem de satélite da Plaza Mayor (El Zócalo) da Cidade do México. As escavações do templo estão no alto, à direita, assinalada. Fonte: GOOGLE EARTH, 2013.

Figura 12 • Interrupção da sequência de fachadas alinhadas que compunham a face leste do Zócalo, em razão das escavações do Templo Mayor. Fonte: fotografia do autor, 2009.

A questão passa pelo reconhecimento de que o grande monumento do centro histórico da Cidade do México não é o Templo Mayor, não é a Catedral, o Palácio Nacional ou qualquer outro edifício oficial ou religioso. O monumento mais significativo da capital é, na verdade, o próprio centro histórico, com todas as suas nuances arquitetônicas e urbanísticas que remontam, especialmente, aos séculos coloniais. Esse monumento, animado e pulsante em sua apropriação humana, foi profundamente, mas não irremediavelmente, afetado pelas escavações do Huey Teocalli.

A fragmentação do Pátio Franciscano da cidade de Olinda Em 1956, o historiador da arte francês, curador-chefe do Museu do Louvre, Germain Bazin, difundiu um dos mais importantes estudos sobre a Arquitetura colonial brasileira, fruto de pelo menos dez anos de investigações sobre os edifícios eclesiásticos barrocos, os quais impressionariam profundamente o pesquisador e já despertariam seu interesse quando esteve no Brasil em sua primeira visita, em 1945. O livro “L’architecture religieuse baroque au Brésil” é ainda a mais completa e extensa obra publicada que versa sobre a arquitetura de igrejas, conventos, mosteiros, colégios edificados na América lusitana no Período Colonial.6

6. Traduzido parae Urbanismo, o português 1983. Cadernos de Arquitetura v.21, n.28,em 1º sem. 2014 Edição em dois volumes que ganharia o nome 133 de “A Arquitetura religiosa barroca no Brasil” (BAZIN, 1983).

Em um dos mais célebres capítulos do primeiro volume do livro, sessão intitulada “Uma tradição arquitetônica: a Escola Franciscana do Nordeste” (BAZIN, 1983, p. 137), o autor desenvolveria uma análise que conseguiria sintetizar, por meio de reduções morfológicas, compositivas e tipológicas, o que ele distinguiria como uma rica e original criação da arquitetura brasileira, manifestação artística sem precedentes claros em Portugal: o conjunto formado pelas estruturas eclesiásticas franciscanas do Nordeste.7 As bases para a caracterização dessa tradição arquitetônica iriam se fundamentar no reconhecimento de uma série de padrões de conformação edilícia que seriam seguidos (com muitas variações, mas dentro de certa estrutura tipológica) pelas igrejas, conventos e pelos seus respectivos adros. Todos os mais importantes conjuntos franciscanos nordestinos, fundados, em sua maioria, no final do século XVI e início do XVII, mas reconstruídos, invariavelmente, a partir da segunda metade do século XVII, iriam se render ao léxico desenvolvido na Colônia: conventos franciscanos como os de Ipojuca, Serinhaém, Cairu, Santo Antônio de Paraguaçu, Igaraçu, Recife, Olinda, Penedo, Marechal Deodoro, Salvador, São Cristóvão, João Pessoa e São Francisco do Conde.

7. Os conventos que conformariam a chamada “Escola Franciscana do Nordeste” passam, atualmente, por análise para entrarem na lista da UNESCO de patrimônio mundial. Seria um registro inédito para o Brasil, já que se trata de um conjunto de edificações dispersas em um imenso território, e não um monumento específico, um sítio histórico ou uma área de preservação natural ou arqueológica.

Um dos aspectos tipológicos mais interessantes que envolveria a “Escola Franciscana do Nordeste” estaria ligado ao tratamento que receberiam os adros de todos os conjuntos religiosos. Os grandes espaços vazios à frente das igrejas e dos conventos comprometeriam diretamente o cenário urbano, já que os chamados pátios franciscanos, não obstante serem áreas privativas das ordens religiosas, eram frequentemente abertos ao público, conformando uma das principais praças dos núcleos urbanos coloniais; como os casos, em destaque, do largo aberto à frente do conjunto franciscano de Santa Cruz, na cidade de São Cristóvão, em Sergipe (inscrito na lista do patrimônio mundial da UNESCO, no ano de 2012), ou o pátio da Igreja da Ordem Primeira de São Francisco de Assis, em Salvador. Artisticamente, o adro se configurava como um espaço oco, contido por paredes de edificações alinhadas e contíguas, algumas vezes encerrado por pitorescos muros convergentes, ou com seus limites definidos por uma tênue separação entre o recinto urbanizado do largo e a paisagem natural, formada por bosques ou jardins, que despontaria para além do recinto sagrado, como seria o caso do conjunto de Olinda. Quase sempre, o eixo principal do conjunto iria se desenvolver em direção à estrutura protagonista, ou seja, apontaria para a igreja da ordem primeira, com um cruzeiro de pedra, geralmente monumental, exposto à frente de sua fachada.8 Para além disso, o complexo alcançaria, amiúde, o patamar de obra-prima da composição arquitetônica e da conformação do espaço urbano, em razão do eficiente tratamento paisagístico oferecido para aquele trecho de cidade. Cenários dramáticos, filiados à poética barroca, marcados por alguns elementos essenciais: o dinâmico adro, diversas vezes assentado em planos distintos, em aclive ou declive; a imensa cruz de pedra, lançada acima de uma maciça peanha em forma de sino; a igreja disposta à frente, com seu inebriante frontispício enquadrando a perspectiva em profundidade; frontaria articulada em três níveis, com uma inusitada conformação triangular, reforçada pelo fato de

8. Segundo Bazin, “O culto franciscano pela paixão levou-os a colocar, diante do frontispício, uma grande cruz que servia às procissões de via-sacra, especialmente durante a Semana Santa” (BAZIN, 1983, v. 1, p. 151).

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a torre única estar recuada em relação à fachada, com uma profunda galilé aberta em cinco arcadas: seria o caso, entre outros, dos adros de Santo Antônio da Paraíba, em João Pessoa; Santo Antônio de Paraguaçu, em Santiago do Iguape, na Bahia; Santo Antônio de Cairu, também na Bahia9 (CAMPELO, 2001, p. 46). Indubitavelmente, um dos conjuntos mais importantes e preservados, e até há pouco tempo plenamente integrados ao sítio histórico, é o complexo de Nossa Senhora das Neves, em Olinda. Foi a primeiro convento franciscano fundado no Brasil, em 1585, mas a sua primitiva estrutura foi incendiada pelos holandeses em 1631 (BAZIN, 1983, v. 2, p. 129). O aspecto que o conjunto guarda atualmente remonta, em parte, à segunda metade do século XVII, quando o convento seria reconstruído e seu adro receberia o tratamento que até pouco tempo o caracterizava. Sua inserção na inebriante paisagem certamente foi um dos fatores determinantes para que o centro histórico da cidade fosse eleito pela UNESCO, em 1982, Patrimônio Cultural da Humanidade. Como tantos outros conjuntos religiosos, a grande estrutura do complexo franciscano encontra-se diluída nas idílicas colinas verdes de Olinda, entre a mata tropical e o mar; uma movimentada e alva massa construtiva, formada por vigorosos volumes reentrantes e salientes, cobertos por telhados alaranjados, imersos em contraponto à deslumbrante paisagem natural, onde as altas e esguias palmeiras competem com seu campanário, bem como com as torres das outras inúmeras igrejas de Olinda, também justapostas ao verde e ao mar. Coerente com os outros conjuntos franciscanos nordestinos, seu pátio expunha uma articulação profundamente significativa para a arquitetura da cidade: envolvido pela massa verde natural, apresentava-se como o espaço sagrado que se abria, em suave aclive, ao eixo da igreja, com o grande cruzeiro de pedra protagonizando a imagem que se retirava da zona central do adro (FIG. 13).

9. É importante salientar que havia muitas variações no partido básico do tratamento dos adros e das fachadas. Por exemplo, em Salvador e São Francisco do Conde, as igrejas apresentam duas torres. Nesses templos e nos de São Cristóvão e de Marechal Deodoro, as torres estão alinhadas com o frontispício. Em Salvador, a igreja não se abre para uma galilé. Por outro lado, em diversas situações, a galilé apresentaria três vãos e não cinco: Olinda, São Cristóvão, Penedo, etc.

Figura 13 • Pátio franciscano de Olinda, antes das intervenções arqueológicas da década de 2010. Fonte: MENEZES, 2007, p. 111.

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Todo esse equilíbrio entre a poderosa arquitetura, o espaço da praça, o imponente cruzeiro e a paisagem selvagem seria prejudicado, a partir do ano de 2002, quando, de forma acidental, foram feitas algumas descobertas arqueológicas no Pátio Franciscano. No “Relatório Intermediário do Plano Diretor de Conservação do Conjunto Franciscano de Olinda”, elaborado, em 2006, pelo CECI (Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada), o professor Sílvio Zancheti e seus colaboradores narraram o acontecido: Em fevereiro desse ano [2002], foram achados vestígios do antigo adro franciscano – um beiço de pedra lavrada –, por ocasião das instalações do canteiro de obras do Projeto de Recuperação do Largo e Cruzeiro de São Francisco. Quando estava sendo cavado um buraco no terreno para se construir a fossa séptica do sanitário dos operários, o mestre de obras deparou-se com uma laje de pedra. Devido à sua experiência em obras de restauro, o mestre solicitou a presença da equipe de arquitetos e arqueólogos da Municipalidade, que realizou uma varredura no local usando o método Ground Penetrating Radar (GPR). O resultado da interpretação dos dados denunciou uma área sólida mais ou menos a 1,50 metros abaixo do piso atual, fazendo a equipe suspeitar tratar-se do antigo adro da igreja e cruzeiro. Foram abertas cinco janelas (valas) de prospecções e foram confirmadas as suspeitas (ZANCHETI et al., 2006, p. 27). Segundo esse relatório, os trabalhos de prospecção nas cinco janelas foram concluídos no mesmo ano de 2002. Não muito tempo depois, os buracos foram provisoriamente encobertos após ficarem algum tempo expostos, prejudicando o funcionamento do complexo conventual, já que o adro é parte integrante da trama arquitetônica e urbana do conjunto, tanto no que se refere à sua continuidade estética quanto em relação ao uso tradicional (procissões, festas, concentração de pessoas) ou contemporâneo (estacionamento, brincadeiras das crianças, usufruto da comunidade local). Como a situação era insustentável, a Prefeitura, por meio da Diretoria de Patrimônio Histórico, tomou a decisão de desenvolver um projeto definitivo, visando a uma solução que viabilizasse a exposição das peças encontradas. A proposta se baseava em empreender uma grande escavação em todo adro franciscano, recuperando o nível subjacente da primeira ocupação do pátio, após a fundação do convento em 1585 (um ordenamento arquitetônico e urbano extinto há pelo menos 350 anos). O plano foi encaminhado à instituição estadual de preservação, a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Pelo que parece, o projeto foi integralmente aprovado, já que a conformação topográfica centenária do largo foi implacavelmente eliminada em prol do resgate da camada inferior de seu assentamento original. A imagem derivada da intervenção realizada é desoladora: no lugar da rica trama barroca, decantada desde a reconstrução do convento, em meados do século XVII, o que se vê é uma insólita cratera que exibe uma pequena quantidade de

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escombros arqueológicos, sem qualquer possibilidade de leitura e compreensão por parte do público leigo. O equilíbrio paisagístico ancestral, fundado no lento desenvolvimento de um cenário dramático que conciliava o espaço urbano, o pátio sagrado franciscano, o cruzeiro monumental, a paisagem natural fronteiriça, a complexa volumetria do conjunto de edifícios da ordem, bem como seu teatral frontispício, virtualmente lançado à frente pelo recuo do único campanário disposto à esquerda, foi totalmente perdido ao se alterar radicalmente a composição topográfica do adro (FIG. 14 e 15).

Obviamente, o cruzeiro franciscano ficou desambientado quando foi abaixado o nível no qual sua imponente base se assentava; uma rústica plataforma foi improvisada ao se retirar a terra que sustentava a peanha da cruz. Por sua vez, a rua que passa adjacente à fachada do complexo, e que concluiria o adro em seu encontro com a igreja, foi preservada. Mas, se antes havia uma continuidade coerente entre o pátio e a via, quiçá em função de uma intervenção que os teria ligado a partir de uma suave rampa, após a implantação do plano de escavação, que rebaixaria todo o Pátio Franciscano, passaria a existir um incoerente desnível que separaria negativamente as duas estruturas (igreja-convento e adro). Não houve a preocupação na elaboração de um desenho de qualidade para criar a necessária transição proveniente da diferença de cota criada pelos arqueólogos: pelo contrário, o adro, que tem a implantação mais dramática entre todos os conjuntos religiosos

Figura 14 • Situação atual do Pátio Franciscano de Olinda. Com as escavações e o rebaixamento do piso, o cruzeiro ficou totalmente desambientado, acima da improvisada plataforma de pedra. Fonte: fotografia do autor, 2008.

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Figura 15 • Situação atual do Pátio Franciscano de Olinda. Os entulhos arqueológicos diluídos no novo piso não despertam interesse algum. Fonte: fotografia do autor, 2008.

do centro histórico (Patrimônio Mundial) de Olinda, receberia improvisadas escadarias e guarda-corpos metálicos para se resolverem os problemas dos percursos verticais criados, sem nenhuma acessibilidade a deficientes físicos. Segundo Zancheti, O projeto aparece mais como uma proposta de revelar um passado perdido. Desconsidera o trabalho secular construtivo e de formulação de uma concepção artístico-barroca do espaço urbano que integrou o adro à fachada do Conjunto Franciscano, ao cruzeiro, aos caminhos e à vegetação, em uma topografia acidentada (ZANCHETI et al., 2006, p. 29). Ou seja, em nome da exposição de pequenas faixas de pisos, além de poucos vestígios de muros de alvenaria de pedra perdidos no novo calçamento que hoje cobre a fenda aberta a pedido dos técnicos do Patrimônio Histórico da Prefeitura de Olinda, uma composição arquitetônica e urbana absolutamente preservada foi destroçada. Curiosamente, isso acontece em um momento em que os conventos que conformariam a chamada “Escola Franciscana do Nordeste” passam por análise para entrarem na lista da UNESCO de patrimônio mundial (FIG. 16 a 18).

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Figura 16 • Desnível entre a rua e o pátio após as escavações. Fonte: fotografia do autor, 2008.

Figura 17 • Desnível entre a rua e o pátio após as escavações; escombros. Fonte: fotografia do autor, 2008.

Figura 18 • Situação atual do Pátio Franciscano de Olinda. Perceber os parcos registros arqueológicos expostos. A parte rebocada dos muros laterais marca o antigo nível topográfico do adro. Em frente à igreja, percebe-se o desnível criado pelas escavações em relação à via que passa adjacente à igreja. Fonte: fotografia do autor, 2008.

Considerações finais Em todas as situações debatidas, é possível perceber um conflito que costuma afetar as intervenções pelas quais o patrimônio edificado passa, seja na dimensão da Arquitetura, seja no que se refere à continuidade do espaço urbano (à gradativa conformação visibilística de sua paisagem). Por um lado, descortina-se o desejo de se reviver os resquícios documentais que esclareceriam as formas primevas de assentamento da área específi-

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ca na qual a ação de “preservação” deveria ser empreendida. Por outro, clama-se pela recuperação daquele substrato mais superficial que coincide, simplesmente, com a própria ocupação urbana aflorada, fruto de um coerente desenvolvimento ancestral, uma configuração decantada em séculos de ações sobre o tecido da cidade, plenamente visível, viva e animada, ao mesmo tempo profundamente aprazível ao transeunte, ao espectador. Esse conflito poderia ser reduzido a um problema mais genérico: a frequente incapacidade de conciliação entre privilegiar a história ou considerar a arte em uma intervenção que atue sobre uma preexistência material. De fato, a recuperação das camadas arqueológicas subjacentes, e a sua exposição ao ar livre, pressupõem a perda inevitável de fragmentos importantes da obra de arte coletiva, que é a própria cidade histórica; e aqui não se está fazendo referência a qualquer núcleo urbano, é claro, mas àqueles poucos que comovem o fruidor com sua cativante unidade estética e paisagística. Para além do mais, a tábula rasa que aniquila a massa edificada e o desenho de áreas inteiras não provoca somente perdas artísticas inestimáveis, contribui para a extinção de importantíssimos documentos históricos atrelados à Arquitetura e à cidade; bairros tradicionais, quarteirões, ruas, praças, bem como a edilícia que sucessivamente foi conformando a cidade para além de seu plano bidimensional. Em outra direção, a preservação desses fatos urbanos não determina a perda das camadas arqueológicas inferiores, ocultas abaixo do substrato superficial; pelo contrário, mesmo não visíveis e acessíveis, elas estão ali, protegidas, intocadas, soterradas sob as fundações de construções civis, palácios, igrejas, ou ocultas pela pavimentação de cidades medievais, renascentistas, barrocas, coloniais, oitocentistas, modernas. Contudo, por mais contraditório que possa ser, as intervenções mutiladoras e destruidoras de cunho arqueológico, que eliminam para sempre trechos importantes dos centros históricos, são cometidas invariavelmente em nome da história; sempre sob a aura sagrada do respeito pelo passado e do resgate pelos documentos mais antigos. Todavia são um verdadeiro afronte aos testemunhos artísticos, arquitetônicos, urbanísticos, a tudo que reside acima dos mais profundos extratos arqueológicos, causando perdas irreversíveis em registros essenciais do desenvolvimento da arquitetura e da cidade, que revelavam muito sobre as formas de apropriação das comunidades em relação ao espaço que habitavam. É claro que, quando o que se perde é pouco relevante, tanto como documento histórico quanto como expressão artística vinculada à esfera maior da cidade enquanto obra de arte, mas também como espaço social de trocas, de convívio, afetivamente vinculado à memória de seus habitantes, e o que se acha é absolutamente relevante e imprescindível, as destruições na camada superficial seriam pertinentes. Mas os dois casos paradigmáticos aqui tratados denunciam o usual aniquilamento de importantes documentos da história urbana, além da fragmentação de inebriantes paisagens citadinas

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consolidadas, sem que o ganho seja justificável, pelo menos na interpretação do autor. É preciso admitir que, no caso do Templo Mayor, o que se expôs após a mutilação do tecido urbano é do maior interesse, e o tratamento recebido pelo sítio arqueológico é dos melhores. Mas será que não poderia haver uma ação conciliadora? Segundo Leonardo López Luján e Ximena Chávez Balderas, a ideia de se empreender escavações subterrâneas esbarraria em alguns obstáculos intransponíveis na Cidade do México: Uma maneira certa de salvar esta classe de obstáculos seria por meio de explorações subterrâneas que permitissem o estudo dos níveis arqueológicos mais profundos, sem alterar os monumentos da superfície. Porém as obras desse tipo são praticamente inimagináveis no centro histórico da Cidade do México por duas razões simples. Por um lado, o subsolo do antigo vale lacustre é extremamente instável devido a estar constituído por argilas compressíveis e pelo fato de ser objeto de exploração indiscriminada dos seus mantos aquíferos para satisfazer às demandas da população atual. Por outro, o centro tem um subsolo difícil de penetrar, dada a existência de um nível freático elevado e de espessas capas de cimentação sulcadas por redes anárquicas de água potável, drenagem e cabeamento elétrico. Se isso não fosse pouco, imediatamente abaixo desse substrato, localizam-se os níveis mais antigos da Nueva España, os quais datam do período compreendido entre 1521 e 1650. Essas capas se distinguem pela inusitada abundância de elementos culturais que testemunham a vida opulenta dos conquistadores e de seus descendentes no centro hispânico mais pujante de ultramar. Para além das camadas coloniais, encontram-se as mexicas, terrivelmente danificadas pelos enfrentamentos bélicos de 1521 e pela demolição sistemática dos edifícios empreendida após a conquista10 (LUJÁN, BALDERAS, 2010, p. 296, tradução nossa). Mesmo aceitando a impossibilidade de prospecções subterrâneas, talvez existisse uma solução que mantivesse a continuidade estética e paisagística do cenário urbano e, ao mesmo tempo, permitisse a exposição dos vestígios astecas descobertos. Na verdade, a importância dos edifícios que foram demolidos residia, essencialmente, na sua condição de moldura construtiva formada por uma arquitetura ordinária que compunha aquele “fundo” regular de casarões que caracterizava as cidades ordenadas hispano-americanas, em seu contraste com os monumentos do poder oficial, e, especialmente, em oposição às construções religiosas (mais especificamente, no contraponto com a catedral vizinha). Ou seja, o espaço interno da arquitetura civil não importaria para a preservação da continuidade artística da paisagem urbana do centro histórico; apenas sua volumetria e as fachadas, por assim dizer, afetariam esteticamente a composição do tecido urbano. Nesse sentido, não seria possível manter apenas a caixa mural dos 13 edifícios que compunham os quarteirões afetados e empreender as escavações em seu espaço interno

10. A defesa dos arqueólogos mexicanos parece contraditória, a partir do momento em que, no Proyecto Templo Mayor, as camadas subjacentes que testemunhariam as primeiras ocupações hispânicas seriam dizimadas em nome da exposição das ruínas astecas.

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“oco”, conservando suas paredes exteriores e seus telhados? Não seria interessante a oportunidade de se desenvolver um projeto contemporâneo de arquitetura que permitisse a adequada e segura exibição dos testemunhos arqueológicos (protegidos das intempéries), com uma iluminação especial, passarelas elevadas, mezaninos, com seus espaços encerrados pelas cascas das construções preexistentes, ambientes integrados às prospecções exteriores que coincidissem com os quintais antigos ou os pátios a céu aberto? O próprio museu do complexo arqueológico não poderia ser constituído nos pavimentos superiores dos casarões, nos mezaninos, acima da exposição dos vestígios arqueológicos? Não seria profundamente instigante e didático? As ações no Pátio Franciscano de Olinda caminharam, por sua vez, para um desfecho bem pior. Na cidade pernambucana, o que se revelou, causando a grande mutilação do adro, é muito pouco significativo. Na verdade, a intervenção arqueológica dos técnicos da prefeitura, ou seja, os “destroços” a céu aberto em meio ao largo rebaixado, prejudicam sobremaneira a apreciação da praça. Por que não recobrir as camadas inferiores, já estudadas, e restaurar o Pátio? Referências BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. 2. v. CAMPELO, Glauco de Oliveira. O brilho da simplicidade: dois estudos sobre a arquitetura religiosa no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; Departamento Nacional do Livro, 2001. CEHOPU. La ciudad hispanoamericana. El sueño de un orden. Madrid: Cehopu, 1989. HARDOY, Jorge Enrique. Ciudades precolombinas. Buenos Aires: Infinito, 1999. LEÓN-PORTILLA, Miguel. Mesoamérica antes de 1519. In: LÉON-PORTILLA, Miguel et al. América Latina en la época colonial: España y América de 1492 a 1808. Barcelona: Crítica, 2003. v 1. LOPEZ, Enrique Espinoza. Ciudad de México: compendio cronológico de su desarrollo urbano 1521-2000. Ciudad de México: Instituto Politécnico Nacional, 2007. LUJÁN, Leonardo López; BALDERAS, Ximena Chávez. Al pié del Templo Mayor: excavaciones en busca de los soberanos mexicas. In: LUJÁN, Leonardo López; MCEWAN, Colin (org). Moctezuma II: tiempo y destino de un gobernante. Ciudad de México: Instituto Nacional de Antropología e Historia, 2010, p. 294-320. MENEZES, José Luiz Motta. Olinda, PE. In: PESSÔA, José; PICCINATO, Giorgio. Atlas de centros históricos do Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. NICOLINI, Alberto. La ciudad hispanoamericana, medieval, renacentista y americana. Atrio, Revista de Historia del Arte, Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, n. 10-11, p. 27-36, 2005.

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ZANCHETI, Sílvio Mendes et al. Conjunto Franciscano de Olinda: Plano Diretor de Conservação: Relatório Intermediário. Olinda: Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada, 2006.

Recebido em 07/04/2014 Aprovado em 12/05/2014 Contato dos autores: Juliana Cardoso Nery e-mail: [email protected] Rodrigo Espinha Baeta e-mail: [email protected]

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1. Trabalho elaborado com base na dissertação de mestrado intitulada “Um brutalismo suave: traços da Arquitetura em Pernambuco (1965-1980)”, defendida pelo autor no MDU-UFPE, em 2009. 2. Arquiteto pela FAU-PE. Mestre em ambiente construído pelo MDU-UFPE. Doutorando pelo MDU-UFPE. Pesquisador visitante do dARQ-FCTUC (Portugal). Professor na Unifavip e FBV-Devry. DOI: 10.5752/P.2316-1752.2014v21n28p144

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Existe algo atrás da porta: o brutalismo em Pernambuco1 There is something behind the door: the brutalism in Pernambuco Hay algo detrás de la puerta: el brutalismo en Pernambuco

Aristóteles de Siqueira Campos Cantalice II2 Resumo As décadas do Pós-Guerra europeu foram marcadas por uma nova sensibilidade arquitetônica comumente chamada de “brutalismo”. A partir da década de 1960, os arquitetos que atuavam em Pernambuco passaram a utilizar aspectos dessa sensibilidade construtiva sem descartarem as heranças modernas locais desenvolvidas, particularmente, por Delfim Amorim e Acácio Borsoi. Este trabalho procura demonstrar quais as obras-chave dessa nova sensibilidade pernambucana e apontar quais os principais aspectos absorvidos e adaptados para a realidade local entre as décadas de 1960 e 1980. Palavras-chave: Brutalismo. Nova sensibilidade. Arquitetura pernambucana.

Abstract The European postwar decades were marked by a new architectural sensibility commonly called “brutalism”. From the 1960s on, the architects who worked in Pernambuco began using aspects of this constructive sensibility, yet without discarding the local modern heritages developed particularly by Delfim Amorim and Acácio Borsoi. The paper demonstrates the key buildings of this new Pernambuco sensibility and points out the main aspects that were absorbed and adapted for the local reality between the 1960s and the 1980s. Keywords: Brutalism. New sensibility. Pernambuco Architecture.

Resumen Las décadas de la Post-Guerra europea fueron marcadas por una nueva sensibilidad arquitectónica comúnmente llamada “Brutalismo”. A partir de la década de 1960 los arquitectos que trabajaban en Pernambuco pasaron a utilizar aspectos de esa sensibilidad constructiva sin descartar las herencias modernas locales, desarrolladas particularmente por Delfim Amorim y Acacio Borsoi. Ese trabajo busca demostrar cuales son las obras clave de la nueva sensibilidad pernambucana e indicar cuales son los principales aspectos absorbidos y adaptados por la realidad local entre las décadas de 1960-1980. Palabras-clave: Brutalismo. Nueva sensibilidad. Arquitectura pernambucana.

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Introdução As décadas do Pós-Guerra europeu foram marcadas por uma nova sensibilidade arquitetônica que advogava a exposição direta dos materiais, dos elementos tectônicos, do resgate de materiais tradicionais, da preferência por jogos de volumes mais dinâmicos e do uso extensivo do concreto, numa postura comumente chamada de “brutalismo”. A expressão “brutalismo” foi primeiramente utilizada por Hans Asplund para caracterizar uma casa projetada por dois colegas suecos, em concreto aparente (BANHAM, 1967, p. 10), e logo se tornou corrente nos círculos dos jovens arquitetos ingleses. O brutalismo foi uma tendência arquitetônica que se desenvolveu entre as décadas de 1950 e 1970 e que se expressou pela exposição dos materiais, o resgate aos materiais tradicionais e a adoção de jogos mais expressivos de volumes. Entretanto, hoje está cada vez mais claro que nunca houve um estilo brutalista fechado e com intenções programáticas, mas sim uma “nova sensibilidade” construtiva que procurava voltar-se para o saber-fazer de suas regiões, estabelecendo uma maior relação com a cultura de construção local como forma de se distanciar do internacionalismo do Movimento Moderno (CURTIS, 1997). É essa visão de brutalismo como uma nova sensibilidade que será adotada neste artigo. Essa nova sensibilidade brutalista permeou a Arquitetura mundial de diversas maneiras e intensidades, e, apesar de os jovens arquitetos britânicos terem priorizado uma linguagem mais industrial (empregando materiais como o aço e o vidro), o brutalismo teria alcançado expressão mundial por meio do chamado “brutalismo corbusiano”, que explorava, de maneira vasta, a plasticidade e as texturas do concreto. Esses arquitetos procuravam explorar o concreto bruto como um material “natural” moldado, creditando sua expressão pelas marcas da atividade humana, com todas as possibilidades de falhas e contingências possíveis, denotando certo primitivismo. No Brasil, os arquitetos paulistas destacaram-se com obras que demonstraram essa nova sensibilidade desde a década de 1950. Esse esforço culminou na “Escola Paulista”, movimento que procurava reformular a maneira de projetar a casa paulistana mediante uma nova divisão espacial interna, com grande ênfase nos espaços sociais em detrimento dos íntimos. Além disso, a “Escola Paulista” explorava elementos estruturais, materiais aparentes, e usava extensamente o concreto aparente (SANVITTO, 1997), características também encontradas na arquitetura dessa nova sensibilidade brutalista. É importante apontar que, mesmo essa nova sensibilidade estando profundamente baseada no primitivismo e na questão da “verdade dos materiais”, resultante de uma visão poética da realidade de reconstrução de um Pós-Guerra cru e rude, o caso brasileiro não poderia ser desconsiderado. Stanislaus Von Moos (2013) defende, em “‘L’Europe après la pluie’ ou le brutalisme face à l’histoire”, que vários países que não foram atingidos pelos bombardeios da Guerra também passaram a ter uma “Arquitetura do Pós-Guerra”. De acordo com Von Moos, isso se deu por meio de arquitetos que demonstraram aptidão por esse tipo

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de Arquitetura, como também por aqueles que viveram a realidade da guerra e que seguiram para outros países. Na ocasião, o autor apontou, entre outros, o caso do Brasil. Em Pernambuco, a Arquitetura moderna se consolidou no início da década de 1950, com a chegada do italiano Mario Russo, do carioca Acácio Gil Borsoi e do português Delfim Amorim. Esses arquitetos (nitidamente influenciados pelo movimento da “Escola Carioca”) conseguiram consolidar uma Arquitetura moderna bastante adaptada às condições locais, o que levou críticos e historiadores a se referirem a uma “Escola Pernambucana” (AMORIM, 2001). No entanto, a partir da década de 1960, novas influências são observadas na arquitetura de Borsoi e de Amorim, que passam a experimentar aspectos dessa “nova sensibilidade”. Estava sendo dado, naquele momento, um novo rumo à produção local que, arquitetônica e culturalmente, viria a mudar a Arquitetura pernambucana.

Existe algo atrás da porta Para um melhor entendimento de como a nova sensibilidade brutalista passou a influenciar Borsoi e Amorim, é necessário analisar mais a fundo as circunstâncias que levaram cada um deles a projetar as duas obras-chave que são vistas como pioneiras dessa nova sensibilidade em Pernambuco. Entre 1959 e 1960, Borsoi foi contemplado com uma bolsa do Itamaraty e foi à Europa, onde teve contato com obras de arquitetos como Le Corbusier, Arne Jacobsen, Alvar Aalto e James Stirling, além de visitar países como Inglaterra, França, Suécia, Dinamarca e Finlândia (BORSOI, 2001). Na viagem, ele teve a oportunidade de contemplar essa Arquitetura do revisionismo do Pós-Guerra, que estava em voga no Pós-Guerra europeu. Quando Borsoi retornou dessa viagem, percebeu-se que essa nova sensibilidade passou a ganhar mais espaço em sua obra, em detrimento da linguagem mais influenciada pela “Escola Carioca” da década de 1950. Borsoi passou a priorizar uma arquitetura mais relacionada com a questão dos detalhes, dos materiais e da cultura de construção local. Além disso, em 1963, Borsoi fez outra viagem, dessa vez para os Estados Unidos, onde teve contato com a obra de Louis Kahn, Paul Rudolph, Marcel Breuer, entre outros (NASLAVSKY; AMARAL, 2003, p. 11). Essa nova viagem serviu para reforçar ainda mais esses novos princípios que eram almejados por ele. Em 1960, Borsoi projetou o Edifício Santo Antônio3 (finalizado em 1962), onde explorou a questão do detalhe com mais afinco, já inspirado nessa “nova sensibilidade” arquitetônica do período. De fato, o Santo Antônio é indicado como o projeto que marcou uma fase de mudanças na obra de Borsoi, pois sua “produção da década de 1960 apresentou várias características que podem ser associadas aos princípios da filosofia Estruturalista e do movimento do Novo Brutalismo” (AMARAL, 2004, p. 93). O Santo Antônio é um pequeno edifício de escritórios com quatro andares e comércio no térreo, construído nos fundos do terreno de um convento franciscano. A fachada frontal do

3. O projeto e a construção foram feitos em parceria com o arquiteto Wilson Nadruz.

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edifício é poente e exige certos cuidados, fazendo com que o arquiteto desenvolva uma película de cobogós de concreto solta das esquadrias de vedação, as quais contêm as aberturas, gerando um espaço intermediário para filtragem do sol. O edifício tem dois aspectos principais que o apontam como um dos primeiros modelos a adotar características brutalistas em Pernambuco. O primeiro diz respeito à vestimenta externa do edifício (confeccionada de cobogó e que descansa na face limítrofe da edificação, solta das esquadrias principais), que tem a finalidade de proteger a edificação do forte poente nordestino (FIG. 1). Essa vestimenta torna o prédio fechado e introspectivo, semelhante às soluções da “Escola Paulista”, e é confeccionada por meio de um sistema de cobogós desmontáveis idealizadas por Borsoi e que parte do princípio de duas peças tipo macho e fêmea. A peça fêmea tem dois sistemas de encaixes, um na parte frontal e outro na parte posterior, fazendo com que as placas (macho) oscilem entre o plano frontal e posterior, gerando um interessante jogo de reentrâncias e saliências, e permitindo a melhor entrada da luz e do vento (FIG. 2).

O segundo aspecto diz respeito ao trato dos materiais internos. O hall tem os elevadores e as escadas em volta de um fosso com uma claraboia, e o revestimento de suas paredes é de tijolo aparente, com um trecho contendo um painel artesanal de tijolos recortados, recuados e salientes, de autoria do próprio Borsoi (FIG. 3). A escada tipo espinha de peixe (FIG. 4) é confeccionada levemente solta da parede lateral, demonstrando individualidade estrutural tanto nessa questão quanto

Figura 1 • Edifício Santo Antônio, Acácio Gil Borsoi, 1960-1962. Foto do autor. Figura 2 • Detalhe dos cobogós do Edifício Santo Antônio. Foto do autor.

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no trato dos materiais. Esse conjunto denota um sentimento de leveza e, ao mesmo tempo, de rusticidade, que demonstra influências de edificações dessa nova sensibilidade inglesa, principalmente pelo emprego do concreto e do tijolo aparente.

Figura 3 • Painel de tijolos do Edifício Santo Antônio. Foto: Ana Cantalice. Figura 4 • Escada do Edifício Santo Antônio. Foto: Ana Cantalice.

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Ainda em relação ao segundo aspecto (da questão do trato dos materiais), é possível perceber que, nas circulações internas das salas de escritório, quando o arquiteto propõe paredes curvas em tijolo aparente com uma seteira central e com portas pivotantes, o faz com extremo cuidado. A solução do assentamento dos tijolos é pensada em um nível construtivo tal, que Borsoi elabora um sistema de pontalete curvo para o passo do tijolo e um sistema de separadores. Esse sistema possibilita o perfeito assentamento do tijolo em uma solução não usual, como da parede curva, em que a mão de obra local poderia fazer cortes indevidos no tijolo caso não recebesse as orientações pertinentes. Essa solução resgata princípios básicos relacionados ao entendimento da feitura da construção pelo arquiteto, que, como um artífice, desenvolve as próprias ferramentas para a concepção de seus objetos por meio da compreensão de como a obra deve ser erigida (SENNETT, 2009), fato inclusive explorado por Banham (1967) e Bächer e Heinle (1967) como um dos aspectos do brutalismo. Assim como Borsoi, Amorim também fez viagens. Em 1957, ele retornou a Europa, onde, de acordo com Naslavsky (2004, p. 180), passou por uma profunda reflexão arquitetônica, além de ter viajado a São Paulo, para visitar obras de Artigas e de outros arquitetos da “Escola Paulista”. Amorim passou a demonstrar características desse revisionismo do Pós-Guerra em sua Arquitetura principalmente a partir do Edifício do Seminário do Nordeste4 (1962), que é considerado outro projeto pioneiro na utilização de aspectos dessa nova sensibilidade brutalista. O projeto foi implantado em uma Gleba com diversos desníveis, que fizeram com que Amorim sugerisse o formato de “S”, numa espécie de implantação que procura se adequar a um platô mais ou menos plano, mas devido aos declives do terreno, em diversas partes da edificação, formam-se poços semienterrados onde Amorim propõe áreas de prática de esportes e circulação interna.

4. Delfim Amorim convidou Marcos Domingues, Florismundo Lins e Carlos Correa Lima para integrarem a equipe de arquitetos (NASLAVSKY, 2004).

O volume da edificação acaba por assemelhar-se a algumas implantações de conjuntos, como o de Pedregulho (1946-1952), de A. E. Reidy. Na extensão da edificação, as salas dos seminaristas são em sentido longitudinal, alcançados por extensos corredores nas extremidades, voltadas para o platô, deixando as janelas dos compartimentos voltadas para o vale posterior. O acesso principal à edificação é marcado por um volume vertical em tijolo aparente maciço e portante, que saca da estrutura principal, e por uma grande malha de cobogós robustos em concreto, que, assentados e amarrados na estrutura de concreto (FIG. 5), guardam semelhanças em proporção com diversos projetos internacionais do Pós-Guerra, como o da Saint John Church (1953), do arquiteto Marcel Breuer e Hamilton Smith. No entanto, a característica que mais relaciona o Seminário com a nova sensibilidade brutalista é a questão do emprego dos materiais. A edificação procura expor os materiais de maneira rude, sem demãos, cada qual com sua expressão e textura devidamente respeitada, diferente da prática da Arquitetura moderna recifense até então. A utilização do tijolo maciço aparente é bastante explorada, ora por expressivos volumes verticais portantes que sacam da edificação, ora como painéis de vedação emoldurados pelo concreto aparente do sistema estrutural. A

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Figura 5 • Cobogós do acesso principal do edifício do Seminário do Nordeste, Delfim Amorim e equipe, 1962. Foto do autor.

utilização do concreto armado levemente texturizado também é explorada segundo premissas do brutalismo corbusiano, pois o sistema estrutural é de pilares de secção quadrada implantados em formato de quadrícula angulada, enquanto que as vigas em concreto aparente sacam do volume principal, finalizando-se numa espécie de console e afirmando ainda mais essa posição estrutural mais expressiva, típica da sensibilidade brutalista (FIG. 6). As vedações internas (também em tijolo aparente) contrastam com as esquadrias de madeira pintadas de branco, em uma clara inspiração dessa nova sensibilidade, que tanto pelo contraste entre esquadria branca e tijolo quanto pelos materiais aparentes, fazem referência à Maison Jaoul (1954), de Le Corbusier, e ao Ham Commom Flats (1955), de James Stirling (FIG. 7), que adotam o uso do tijolo e das cintas de concreto aparente. Figura 6 • Vista da circulação externa com os andares e os consoles que sacam da estrutura principal. Foto do autor.

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Figura 7 • Detalhe dos consoles de concreto e das vedações em tijolo do Ham Commom Flats, James Stirling, 1955. Foto do autor.

Tanto o Edifício Santo Antônio de Borsoi quanto o Seminário do Nordeste de Amorim marcam esse novo rumo que a Arquitetura pernambucana viria a tomar com base na nova sensibilidade brutalista. Por um lado, pela ânsia pelo detalhamento e pelo estudo de texturas e superfícies dos materiais, buscando relações cada vez maiores com os métodos construtivos e com o saber-fazer da região; e, por outro, pela exploração plástica e evidência dos sistemas estruturais, buscando cada vez mais as reentrâncias, as saliências e os jogos volumétricos mais expressivos, típicos dessa sensibilidade do período.

A nova sensibilidade em Pernambuco A partir das duas obras-chave de Amorim e Borsoi, o reconhecimento desse novo metier em projetar começava a ebulir em Pernambuco. Além disso, o fato de Amorim e Borsoi lecionarem as disciplinas de Projeto Arquitetônico na UFPE contribuiu para a experimentação dessa nova sensibilidade em aula, com os futuros arquitetos pernambucanos. Além da influência de Amorim e Borsoi, os arquitetos dessa “nova geração” de formados também sofreram influências externas, primeiramente dos recentes exemplares da “Escola Paulista”, que não deixaram de influenciar a cena local, principalmente por meio de publicações e de visitas empreendidas no início da década de 1960, quando muitos arquitetos dessa segunda geração (ainda estudantes), fizeram visitas guiadas, principalmente por Amorim, a São Paulo. No entanto as influências internacionais foram ainda mais profundas e ocorreram

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principalmente por meio das publicações internacionais disponíveis em Pernambuco, notadamente a partir de meados da década de 1960, principalmente de livros da Editora Gustavo Gili, como “El brutalismo en Arquitectura: ¿Ética o estética?” (1967), de Reyner Banham; “Construcciones en Hormigon Visto” (1967), de Bächer & Heinle; “Marcel Breuer: nuevas construcciones y proyectos” (1970), de Tician Papachristou, entre outros.5 Além disso, houve as viagens que alguns desses fizeram a Estados Unidos e Europa, ao longo da década de 1960, demonstrando que a atuação dos arquitetos pernambucanos estava sintonizada com os temas vivenciados pela Arquitetura internacional naquele momento.

5. Afirmação do arquiteto e professor Luiz Lacerda, que pertenceu a essa segunda geração de arquitetos formados por Amorim e Borsoi, em entrevista ao autor deste artigo, em 22 de fevereiro de 2008.

Os arquitetos dessa nova geração pós-Borsoi e Amorim foram os que mais demonstraram solidariedade com essa nova sensibilidade na Arquitetura pernambucana. Por meio dessa busca por uma poética da construção fortemente influenciada pelo saber-fazer local e pela tecnologia acessível, essa geração foi marcada pelo início da difusão mais extensa da Arquitetura europeia e da Arquitetura paulista no cenário recifense. Dentre os arquitetos locais que se utilizaram dessa nova sensibilidade durante a década de 1960 e 1970, podemos citar os pioneiros Acácio Borsoi e Delfim Amorim, e também os discípulos de primeira e segunda geração de Amorim e Borsoi, como Heitor Maia Neto, Frank Svensson e Marcos Domingues, Glauco Campello, Reginaldo Esteves, Mauricio Castro, Dinauro Esteves, Vital Pessoa de Melo, Armando de Holanda, Wandenkolk Tinoco, Alexandre Castro e Silva, Jerônimo e Pontual, Roberto Soares, entre outros. Este subitem tem a finalidade de olhar, de maneira teleférica, a obra de cada um deles, demonstrando as principais contribuições que guardam relação com a nova sensibilidade. Durante as décadas de 1960 e 1970, Acácio Borsoi passou a desenvolver diversos projetos como protótipos dessa nova sensibilidade baseada no revisionismo do Pós-Guerra, explorando fortemente a questão plástica e dos detalhes arquitetônicos. Dentre as obras de Borsoi que demonstram influências do revisionismo do Pós-Guerra, podemos citar o Edifício Bancipe6 (1963), que trabalha com diversas texturas de concreto e com discretos brises de concreto em sua fachada principal (FIG. 8); os Edifícios Mirage (1967), Michelangelo (1969) e Portinari (1969); o Edifício do Bandepe7 (1969), que, com leves brises, ergue-se discretamente no centro histórico do Recife, ora com finos brises e seteiras, ora com pesadas placas de concreto que desenham a fachada (FIG. 9); o Fórum de Teresina (1972), uma das maiores expressões dessa nova sensibilidade de Borsoi, que se trata de uma edificação quadrangular e com uma coberta de concreto levemente apoiada por finos pilares circulares que se apoiam acima dos robustos “pilares brises” os quais se erguem para proteger a caixa de tijolo interna (FIG. 10); e o Ministério da Fazenda de Fortaleza (1975), prédio que resgata o debate da modulação e que, concebido com detalhes requintados, ergue-se como um dos principais exemplares da Arquitetura do período naquela cidade (Fig. 11). O também pioneiro Delfim Amorim passou a incorporar e relacionar os costumes de construção local com a expressão

6. Em colaboração com Vital Pessoa de Melo. 7. Em colaboração com Gilson Miranda e Janete Costa.

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Figura 8 • Edifício Bancipe ao lado da Igreja Matriz de Santo Antônio, Acácio Borsoi e Vital Pessoa de Melo, 1963. Foto do autor. Figura 9 • Edifício Bandepe, Acácio Borsoi, Gilson Miranda e Janete Costa, 1969. Foto do autor.

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Figura 10 • Edifício Bandepe, Acácio Borsoi, Gilson Miranda e Janete Costa, 1969. Foto do autor. Figura 11 • Ministério da Fazenda de Fortaleza, Acácio Borsoi, 1975. Foto do autor.

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dessa nova sensibilidade do Pós-Guerra, gerando obras peculiares e de valor único, nas quais foram utilizadas empenas com platibanda, jogos de sombra e luz entre volumes salientes; reentrâncias expressivas; além de manterem o contato com a vegetação e um inteligente sistema de aberturas para amenizar o agressivo clima do Nordeste brasileiro. Em seu período tardio, Amorim fez uma parceria com Heitor Maia Neto, arquiteto que se formou no curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes do Recife, em 1952, ainda sob forte influência do mestre Mario Russo, e, em 1963, associou-se a Amorim (NASLAVSKY, 2004). Dentre as obras da sociedade desse período, podemos citar o Edifício Barão do Rio Branco (1966); a Casa Alfredo P. Correia (1969), que trabalha com os telhados de telha francesa típica do Nordeste, mas que, aliado a uma plástica mais expressiva com platibandas inclinadas e com o volume da caixa d’água destacado, confere certa referência à Arquitetura escandinava dessa nova sensibilidade (FIG. 12); a Residência Miguel Doherty (1969) (FIG. 13); a Residência José da Silva Rodrigues (1970); o Edifício Duque de Bragança (1970), e diversos supermercados da rede Bompreço. Figura 12 • Casa Alfredo P. Correia, Delfim Amorim e Heitor Maia Neto, 1969. Foto do autor.

Figura 13 • Casa Miguel Doherty, Delfim Amorim e Heitor Maia Neto 1969. Foto do autor.

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Frank Svensson e Marcos Domingues (o primeiro, formado pela Escola de Arquitetura da Universidade de Minas Gerais, fixou moradia em Recife em 1963; e o segundo, formado pela Escola de Belas Artes do Recife, em 1953, onde posteriormente se tornou professor na década de 1960 - AMORIM, 1999, p. 100) formaram um escritório que contribuiu com importantes projetos adotando aspectos dessa nova sensibilidade em Pernambuco. Entre as obras da sociedade, podemos citar a Residência Enário de Castro (1968), que é detentora de uma forma rude e pesada por meio do emprego do concreto bruto, e que os ambientes voltados para dentro, de forma integrada com o jardim posterior, fazem referência à noção de grande abrigo típica da “Escola Paulista”; a Residência Paulo Meirelles (1968), que, além de usar de maneira vasta o concreto, os arquitetos se aproveitam da maleabilidade do concreto para propor um interessante jogo de cobertas arqueadas com sheds que, com claras influências escandinavas, têm a finalidade de iluminar e prover um escape de ventilação aos ambientes internos (FIG. 14); e a Sede da Rede Ferroviária (1970), projeto que, com forte expressão material e espacial, relembra a solução de implantação adotada no projeto de Sheffield pelos Smithsons, devido à maneira que a edificação se distribui na horizontal do lote, enquanto que a configuração espacial interna é fortemente marcada por passarelas, pisos em cotas de nível diferentes e rampas e escadas que ligam a diversos pontos da edificação (FIG. 15 e 16).

Figura 14 • Residência Paulo Meirelles, Svensson e Domingues, 1968. Foto do autor. Figura 15 • Vista do pátio central da Sede da Rede Ferroviária, Svensson e Domingues, 1970. Foto do autor. Figura 16 • Vista do prédio principal da Sede da Rede Ferroviária. Foto do autor.

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Reginaldo Esteves, diplomado em 1954 pela Escola de Belas Artes de Pernambuco e professor da Escola de Engenharia de Pernambuco, desenvolveu, em sua terceira fase8 (sua obra tardia), uma produção marcada por volumes imponentes que têm como principal característica grandes balanços e amplos espaços internos. Entre seus projetos, podemos citar o SCFC Santa Cruz Futebol Clube (1973); a Celpe - Companhia Energética de Pernambuco9 (1972); o CAC-UFPE - Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (1973), onde desenvolveu um sistema interno de passarelas e níveis distintos que se assemelham ao de strata, adotado por Denys Lasdun em seus projetos (CURTIS, 1997, p. 542-545). Esse sistema marcou a Arquitetura brutalista inglesa no período e tem a finalidade de tornar os espaços mais complexos devido aos altos e baixos, conferindo pessoalidade à edificação, e pode ser visto no CAC-UFPE, que é marcado com placas de concreto, que ora servem de vedação, ora de brises. Os altos e baixos e as passarelas desencontradas propostas pelo strata geram um interessante jogo de luz e sombra nas fachadas de concreto desencontradas (FIG. 17).

Glauco Campello, nascido na Paraíba e formado em 1959, na Faculdade Nacional de Arquitetura do Rio de Janeiro, foi outro importante arquiteto da cena pernambucana. Campello projetava aliando a expressão dos materiais crus com demais características predominantes da cultura de construção local. Entre os projetos de sua autoria, podemos citar o prédio sede da Sudene - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste10 (1967), onde a pesada base de concreto armado com pilares generosos suporta um volume superior com leve curvatura (FIG. 18). Esse volume tem empenas laterais revestidas em cerâmica, enquanto

8. São reconhecidas, na obra de Reginaldo Esteves, três fases distintas. A primeira sob influência da Escola Carioca; a segunda, marcada por uma tentativa de aliar tradição e modernidade; e a terceira, conhecida como sua fase do concreto (AMORIM, 1999, p. 95). 9. Em colaboração com Vital Pessoa de Melo.

Figura 17 • Vista do pátio interno do CAC-UFPE com uma passarela ao fundo. Reginaldo Esteves, 1973. Foto do autor.

10. Em colaboração com Mauricio Castro e equipe.

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a face nascente é vazada por esquadrias e a poente é totalmente vazada em cobogó de placas de concreto, as quais permitem que a edificação respire permanentemente (FIG. 19); além do projeto de sua residência (1967) e do Edifício Oásis (1970).

Figura 18 (esquerda) • Sudene, Glauco Campello, Mauricio Castro e equipe, 1967. Foto do autor

Figura 19 • Detalhe da fachada de cobogó da Sudene. Foto do autor.

Vital Pessoa de Melo, que, no período de faculdade, foi aluno tanto de Amorim quanto de Borsoi, também foi outro arquiteto que produziu obras de considerável valor na época. Em seu período de estudante, Vital fez uma viagem com Delfim Amorim a São Paulo, onde conheceu a Arquitetura da “Escola Paulista”. Logo após sua formação, em 1961, desenvolveu uma parceria com Borsoi (Edifício Bancipe, 1963) e com Reginaldo Esteves (sede da Celpe, 1972). Das obras que demonstram traços dessa nova sensibilidade, podemos citar o projeto de sua residência (1968), que utilizou os elementos construtivos de maneira a gerar planos marcantes, trabalhando com materiais brutos e ásperos, por meio de fortes texturas em variados tons, como o do concreto liso, o das placas de concreto rugosas com acabamento lavado, quando em processo de cura, o da laje nervurada com blocos de cerâmica aparente, e o da parede com chapisco grosso pintada de branco, que, juntamente com o fechamento da casa para a rua, conferem um tom austero e introspectivo que relembra a posição da “Escola Paulista” (FIG. 20); além do projeto da Celpe11 (1972), onde procurou utilizar a solução do brise-soleil em peças de concreto aparente como principal elemento de composição de fachada, com a finalidade de proteger a vestimenta de vidro da fachada interna (FIG. 21).

11. Em colaboração com Reginaldo Esteves. 12. Em colaboração com Mauricio Castro.

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Figura 20 • Vista frontal demonstrando os planos em materiais diversos da Casa do Arquiteto, Vital Pessoa de Melo, 1968. Foto do autor.

Figura 21 • Vista da fachada frontal com os brises de proteção da Celpe, Vital Pessoa de Melo e Reginaldo Esteves, 1972. Foto do autor.

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Armando de Holanda, que ingressou na Faculdade de Arquitetura de Recife, em 1959, e estagiou com Glauco Campello, logo foi a Brasília fazer pós-graduação na UnB. Holanda ingressou como professor na Faculdade de Arquitetura de Recife, em 1970, e, em 1976, publicou um importante livro para os arquitetos pernambucanos: o “Roteiro para se construir no Nordeste” (HOLANDA, 1976), que condensa as ideias projetuais já adotadas pelos arquitetos locais para o desenvolvimento de uma Arquitetura correta no clima nordestino. Dentre suas obras que guardam congruências com a nova sensibilidade, podemos citar a do Parque Nacional dos Guararapes (1973-1976), onde trabalhou com finas cobertas de concreto em formato de hiperbólicas invertidas (FIG. 22); a do Edifício Bougainville (1973), que, com vedações verticais em tijolo aparente numa solução bastante espartana, propõe varandas com base em cobogó e peitoris ventilados, com a finalidade de resolver os problemas de controle climático (FIG. 23); além da casa Nilo Coelho (1976). Figura 22 • Bloco Administrativo do Parque Nacional dos Guararapes, Armando de Holanda, 1973-1976 Foto do autor.

Figura 23 • -Vista das janelas protegidas do Edifício Bougainville, Armando de Holanda, 1973 Foto: Ana Cantalice.

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Entre outros arquitetos que tiveram obras que demonstram certa solidariedade com os princípios da sensibilidade brutalista, podemos citar Jerônimo e Pontual, que projetaram o Edifício da IBM (1970-1971) e o Edifício Sparta (1972), este último suportado por dois grandes pilares de concreto nas extremidades e que tem um fechamento superior de forte impacto plástico na forma de um grande balanço em concreto (FIG. 24); Alexandre Castro e Silva, que projetou a Residência Francisco Pedrosa (1974) e o Edifício Tiberius (1975); Dinauro Esteves, que projetou a sede da Chesf - Companhia Hidrelétrica do São Francisco12 (1975), que tem imponentes sheds de iluminação nas circulações verticais, que demonstram essa procura pelo expressivo trabalho das aberturas, típico da revisão do Pós-Guerra (FIG. 25); além de Wandenkolk Tinoco, Roberto Soares, Geraldo Santana, entre outros.

Figura 24 • Edifício Sparta, Jerônimo e Pontual, 1972. Foto do autor.

Considerações finais É importante apontar que as obras exploradas neste artigo não procuram evidenciar uma postura projetual pernambucana caracterizada somente a partir dessa nova sensibilidade brutalista, mas sim uma posição solidária a essa Arquitetura do revisionismo do Pós-Guerra. Ao se analisarem as obras dos arquitetos citados, é possível perceber que essa solidariedade aparece principalmente por meio de três características: a primeira é uma relação mais expressiva com a plástica da

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Figura 25 • Detalhe dos sheds de iluminação da circulação vertical da Chesf, Dinauro Esteves e Mauricio Castro, 1975. Foto do autor.

edificação, que alcança forte expressão através de reentrâncias, saliências e componentes construtivos (brises, pérgulas, gárgulas, cobogós, volumes de circulação vertical e de caixas d’água); a segunda é uma posição mais radical com os materiais e texturas, que passam a ser tratados denotando uma “verdade dos materiais”, que alcança expressão por meio de propostas (muitas vezes pioneiras) de texturas impressas no concreto e do emprego do tijolo aparente e de outros materiais deixados sem demãos ou revestimentos; e a terceira, que é representada pelo estudo das soluções estruturais, que alcançam expressão por meio da evidência da estrutura como componente plástico, e que também contribuem para a forma final da edificação. Tais arquitetos absorveram essa sensibilidade brutalista da época, seja por imagens de livros internacionais, viagens, Arquitetura paulista ou os pioneiros Borsoi e Amorim, no entanto o fizeram relacionando-a com uma posição projetual que procurava a proteção do clima quente e a adequação ao saber-fazer local, afastando-se de um princípio norteador fechado e com intenções programáticas, como acontecia no Movimento Moderno. Os resultados alcançados nas obras pernambucanas desse período abarcam a pluralidade de visões dos projetistas locais e aproximam-se da definição de Curtis (1997, p.

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530-531) de um realismo que se apoia no desenvolvimento de uma Arquitetura frouxa de amarras sociais e que procura significados culturais mais profundos por meio da exposição dos materiais. Ao olharmos essa nova sensibilidade brutalista através desse caleidoscópio (de poética construtiva, verdade dos materiais e identidade local), a produção pernambucana se solidarizava perfeitamente com ele. A partir do início da década de 1980, a opção por materiais cada vez mais industrializados e a diminuição de detalhes para a “racionalização” das obras fizeram com que a utilização de alguns princípios relacionados à nova sensibilidade começasse a escassear, dando lugar a um período de transição para uma Arquitetura com novos paradigmas, embasados predominantemente na economia de meios e na simplicidade projetual. Referências AMARAL, Izabel Fraga. Um olhar sobre a obra de Acácio Borsoi. 2004, 176 f. Dissertação (Mestrado em Projeto, morfologia e conforto do ambiente construído) - Faculdade de arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2004. AMORIM, Luiz. A Escola do Recife: três paradigmas do objeto arquitetônico e seus paradoxos. Arquitextos Vitruvius, v. 12.03, 2001. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/ revistas/read/arquitextos/01.012/889 . Acesso em: 20-11-2013. AMORIM, Luiz. The sectors’ paradigm: a study of a spatial and functional nature of modernist housing in Northeast Brazil. 1999, 419 f. Tese (Doutorado em Arquitetura) - Faculty of the Built Environment, University College London. BÄCHER, Max; HEINLE, Erwin. Construcciones en hormigón visto: 80 ejemplos de su utilización con indicaciones sobre planeamiento e realización. Barcelona: Gustavo Gili, 1967. BANHAM, Reyner. El brutalismo en Arquitectura: ¿Etica o estética? Barcelona: GG, 1967. BORSOI, Acácio Gil. Arquitetura é construção: o projeto é apenas um meio para se chegar ao produto (entrevista). Revista Projeto Design, São Paulo, v. 257, p.8-10, jul. 2001. CANTALICE II, Aristóteles. Um brutalismo suave: traços da arquitetura em Pernambuco (1965-1980). 2009, 236 f. Dissertação (Mestrado em Ambiente Construído) - MDU, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife. CURTIS, William. Modern Architecture since 1900. London: Phaidon, 1997. HOLANDA, Armando de. Roteiro para construir no Nordeste. Recife: MDU/UFPE, 1976. NASLAVSKY, Guillah; AMARAL, Izabel. Identidade nacional ou regional?: a obra de Acácio Gil Borsoi. In: DOCOMOMO BRASIL, 5, 2003, São Carlos. Disponível em: http://www.docomomo.org. br/seminario%205%20pdfs/056R.pdf . Acesso em: 12-2-2014. NASLAVSKY, Guilah. Arquitetura moderna em Pernambuco, 1951-1972: as contribuições de Acácio Gil Borsoi e Delfim Fer-

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nandes Amorim. 2004, 270 f. Tese (Doutorado em Estruturas ambientais e urbanas) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo. PAPACHRISTOU, Tician. Marcel Breuer: nuevas construcciones y proyectos. Barcelona: Gustavo Gili, 1970. SANVITTO, Maria Luiza Adams. Brutalismo paulista: o discurso e a obra. Revista Projeto Design, São Paulo, v. 207, p. 92-97, abr. 1997. SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009. VON MOOS, Stalisnaus. “L’Europe après la pluie’ ou le brutalisme face à l’histoire. In: SBRIGLIO, Jacques (Org.). Le Corbusier et la question du brutalism. Paris: Foundation Le Corbusier, 2013, p. 64-87.

Recebido em 20/05/2014 Aprovado em 08/08/2014 Contato do autor: Aristóteles de Siqueira Campos Cantalice II e-mail: [email protected]

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TRABALHOS ACADÊMICOS Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.21, n.28, 1º sem. 2014

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1. Trabalho final de graduação indicado ao 24° Ópera Prima. 2. Graduação: Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas, 1° semestre de 2011. Orientador: Cláudio Listher Marques Bahia.

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Qualificação do entorno do Viaduto Santa Teresa1 Mateus de Oliveira Castilho2

Tema O ponto de partida deste projeto é um vazio na cidade, o qual se encontra em um importante ponto de expressão e referencial histórico no hipercentro da cidade de Belo Horizonte e atualmente abriga um estacionamento de veículos individuais. Após a escolha do local, fez-se necessária uma apurada investigação da paisagem urbana, com mapeamento criterioso do entorno e análise dos aspectos urbanísticos e socioeconômicos. Reconhecendo o hipercentro com espaço da mistura, da diversidade, pontua-se a intervenção com um edifício multifuncional e tratamento do baixio do Viaduto Santa Teresa.

Proposta O programa do edifício mistura diversas atividades: praça pública/esplanada, pilotis, estabelecimentos comerciais, centro educacional de artes, escritórios, residências, praça elevada, estacionamento subterrâneo, passarela e mirante, além da remodelação dos passeios sob o viaduto e a criação de uma pista de skate. Dessa maneira, o programa engloba atividades que se relacionam com seu entorno, buscando levar vitalidade e participação da vida urbana nos diversos períodos do dia.

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A liberação da praça pública no térreo em frente ao edifício proposto e a remodelação do espaço do baixio do viaduto, com o fechamento da rua lateral ao parque, possibilitam a articulação com os espaços públicos existentes, levando o verde e as pessoas, resgatando o valor das cidades como lugar de encontros e trocas para os seus cidadãos. O volume central encaminha e guia o usuário aos estabelecimentos comerciais nos pavimentos acima e ao ponto do projeto que extrapola os limites do terreno. Esse volume em balanço, que recebe tratamento em cor verde, abriga uma escadaria, um elevador e alguns terraços, leva os usuários para as lojas acima do primeiro pavimento e para uma praça elevada, com estabelecimentos em mesmo nível, localizados na cobertura do prédio vizinho, e para uma passarela que atravessa sobre a Rua da Bahia. Essa passarela pousa do outro lado da rua, em um lote no qual funciona outro estacionamento, que é passível de intervenção. O pedestre que passeia dentro desse volume tem a vista emolduradas pelos arcos do Viaduto Santa Teresa e o Bairro Floresta. O Centro Educacional de Artes está localizado nos quatro primeiros pavimentos, à direita do volume central. Esse Centro Educacional abrigará aulas de música, artes plásticas, teatro e dança, capacitando, levando cultura e lazer aos cidadãos. Os escritórios e residências são importantes atividades que ajudam a manter os espaços urbanos ativos e com constante fluxo de pessoas, questão importante para a segurança dos lugares.

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Inserção urbana O Centro da cidade de Belo Horizonte foi idealizado, de acordo com os preceitos positivistas no final do século XIX, para abrigar a nova capital política e administrativa do Estado de Minas Gerais. Atualmente, tem como principal característica a diversidade de usos e de referências históricas, estando sua atratividade relacionada à ampla oferta de bens e serviços e à fácil acessibilidade. O conjunto tombado da Praça Rui Barbosa vem se reforçando como importante eixo cultural para a cidade, abrigando importantes equipamentos culturais e eventos culturais oficiais e espontâneos. Apesar da recente requalificação na Avenida dos Andradas, ainda se encontra um grande número de terrenos vazios e de edificações abandonadas. O Viaduto Santa Teresa é um importante marco histórico para a cidade. Emblemático e símbolo de Belo Horizonte, ele marca uma importante fase, a possibilidade de transposição de uma barreira física criada pela linha de trem e do ribeirão Arrudas, ligando, assim, o Centro ao bairro Floresta. O terreno é utilizado atualmente como um estacionamento de veículos particulares e é murado em todos os encontros com os locais públicos.

Implantação Localizado junto a importantes marcos históricos e equipamentos públicos, o terreno se encontra na esquina da Avenida Andradas com a Rua dos Carijós e tem como a terceira testada o baixio do Viaduto Santa Teresa. Para a inserção da praça elevada, foi utilizada a cobertura do edifício vizinho, criando, assim, a possibilidade de inserção de uma passarela que atravessa a Rua da Bahia e vai em direção ao terreno do outro lado da rua, no qual se encontra um estacionamento com grande área para receber o pouso desse elemento.

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Aspectos urbanísticos e socioeconômicos A análise dos aspectos urbanísticos e socioeconômicos demonstra que a área apresenta importante conjunto tombado, com grande diversidade de usos e atividades, edificações, em geral, em bom estado de conservação e grande quantidade de imóveis vazios ou subutilizados. Outra característica fundamental é que o local vem se consolidando como importante eixo de concentração de eventos a céu aberto e em espaços fechados, equipamentos culturais e de lazer. Sua localização estratégica é reforçada pela presença da estação central do metrô e a de integração de ônibus urbanos.

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1. Trabalho final de graduação indicado ao 24° Ópera Prima. 2. Graduação: Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas, 2° semestre de 2011. Orientador: Manoel Teixeira Azevedo Júnior

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Parque Linear Vale do Arrudas1 Guilherme Fernandes Rolla Guimarães2

Tema/conceito O projeto consiste na criação de um parque linear urbano ao longo do ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte, no trecho contíguo aos bairros Santa Teresa, Santa Efigênia e Horto. A proposta se relaciona com dois programas do Município de Belo Horizonte. O primeiro é o Bulevar Arrudas, de requalificação urbanística da Avenida dos Andradas, via que se desenvolve ao longo do ribeirão, e que prevê o tamponamento deste em diversos trechos. O outro é o Plano de Mobilidade Urbana de BH, uma vez que a área é atravessada pela linha do metrô. Esse plano tem como finalidade principal propor alternativas para o sistema de mobilidade de Belo Horizonte, valorizando os sistemas de transporte público e não motorizados, além de estimular a utilização de sistemas eficientes sob os pontos de vista ambiental e energético. O plano inclui diversas alternativas para o transporte público, e o metrô é um dos principais alvos dessas intervenções. O projeto, entretanto, diferencia-se desses dois programas na abordagem e no tratamento que propõe para a área, utilizando outras formas de intervenção urbana, com o enterramento das linhas férreas do metrô e do trem de carga e a criação, na área liberada, de um parque linear que se integra ao ribeirão e à via marginal existente, atualmente utilizada para caminhadas e ciclismo. O enterramento das linhas férreas nesse trecho, além de permitir a geração do parque, possibilitaria a conexão, através dele, dos bairros adjacentes, hoje separados pelas linhas férreas.

A área A área do projeto se desenvolve no vale do ribeirão Arrudas, cuja bacia abrange a maior parte do Município. A área de influência direta do projeto compreende os bairros contíguos de Santa Teresa, Santa Efigênia e Horto, na Região Leste da cidade. Entretanto, pela sua proximidade com o Centro, o parque se conecta com espaços de lazer centrais, mais diretamente com o Parque Municipal. Além disso, pelo fato de a área ser atravessada pela linha do metrô, tendo nela três estações, o parque proposto teria excelentes condições de acessibilidade por ampla parcela da população do Município. Em sua área de influência direta, situam-se importantes equipamentos urbanos e espaços públicos, alguns dos quais teriam forte interação com o parque proposto. Destacam-se a Praça Floriano Peixoto, a Praça Duque de Caxias, em Santa Teresa, o Estádio Independência, a Câmara Municipal, o Boulevard Shopping, o Mercado Distrital de Santa Teresa, o presídio feminino e o pátio de manobras da Ferrovia Centro Atlântica, cujos

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galpões poderiam ser reabilitados e integrados ao parque. No interior da área do projeto, sobrevive também uma edificação de grande porte, subutilizada, em parte ocupada ainda por uma fábrica de pregos, remanescente das obras de retificação do ribeirão e abertura da Avenida dos Andradas, constituindo-se em importante referência histórica, a ser valorizada no projeto. Junto à área proposta para o parque, situam-se também três favelas de pequenas dimensões.

Inserção urbana

Sistema viário de transporte

Topografia e hidrografia

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Objetivos/justificativa Conhecendo-se as condições urbanas atuais de Belo Horizonte, sabe-se da carência de áreas de lazer e de parques urbanos. A proposta busca lidar com a paisagem e com o planejamento dos espaços livres públicos como um sistema integral de recursos naturais, contínuos e com integridade ecológica. Tendo em vista o crescente número de pessoas que buscam a recreação nesses espaços, eles cumprem também uma função cívica. No local em questão, acentua-se o caráter democrático do projeto, uma vez que é um elemento de fácil acesso e que beneficia não apenas parte da cidade, mas toda ela. Por fim, ressalta-se a exequibilidade física e financeira que norteou a proposta. Alguns pontos de fundamental importância foram levados em conta na criação desse novo parque: - Conexão: conectar os espaços do parque com os bairros do entorno, atualmente isolados pelo ribeirão e, sobretudo, pela via férrea. - Atrativos: oferecer novos equipamentos à comunidade, segundo a variedade e os interesses de cada área, aumentando a qualidade de vida dos usuários e do entorno direto: campos, escolas, bibliotecas, quadras, centros comerciais, esportivos, médicos, culturais, de lazer, profissionalizantes, de exposições, feiras, serviços, etc. - Mobilidade: além do uso recreativo, esse parque, como vários parques lineares, pode ser utilizado também como corredor de deslocamento para trabalho, escola, compras, potencializando a locomoção a pé ou em bicicleta. - Segurança: pela sua permeabilidade e continuidade de forma, o parque linear evita os perigos de isolamento e desconexões dos parques urbanos tradicionais. - Revitalização: além da revitalização urbana, o projeto abarca o remanejamento de áreas e equipamentos urbanos obsoletos, com grande potencial de transformação do entorno e de viabilidade comercial. - Retorno financeiro: mais além dos evidentes benefícios para a população, os argumentos acima apontam para o fato de que o projeto apresenta possibilidades econômicas que compensam os investimentos necessários para criá-lo e mantê-lo.

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Estratégias do projeto Para concretizar os objetivos norteadores do projeto, foram desenvolvidas sete estratégias primordiais: 1. modernizar e implantar a linha férrea subterrânea do metrô e do trem de carga; 2. dar continuidade ao espaço do pedestre do projeto Bulevar Arrudas, sem o tapamento do ribeirão Arrudas, e ampliando seu caráter como corredor de lazer; 3. dar continuidade à Ciclovia Arrudas, dentro da área do parque; 4. integrar com a área central e com o centro do Horto; 5. reforçar/criar conexões do parque com os principais pontos nodais da área de entorno; 6. requalificar e dar continuidade à Rua Conselheiro Rocha; 7. melhorar a acessibilidade dos pedestres em relação à transposição da Avenida dos Andradas e do ribeirão Arrudas.

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Ações específicas Área 1 • Criação de uma ADE (área de diretrizes especiais) ao lado da Avenida do Contorno (3), prevendo uma alta taxa de permeabilidade no piso térreo, com pilotis, permitindo a livre circulação de pedestres para acesso ao parque, e área comercial restrita, voltada para o lado do parque. • Facilitação do acesso direto ao parque para quem vem por cima do viaduto da Avenida do Contorno, por meio de escadas. • Criação de um novo trecho da Rua Conselheiro Rocha, fazendo a ligação direta com a Avenida dos Andradas, promovendo uma nova opção de acesso à área central da cidade para os moradores do Horto e de Santa Teresa. • Prolongamento da Rua Pacífico Mascarenhas, criando uma opção de acesso de veículos vindos do bairro Santa Efigênia em direção ao bairro Santa Teresa. • Criação de nova estação de metrô subterrânea de Santa Efigênia (4), com praça em seu entorno, junto às vilas Dias e São Vicente, no bairro Santa Teresa. • Tapamento do ribeirão Arrudas no trecho em frente à nova estação (5), gerando uma esplanada e espaço de permanência, e levando maior segurança e conforto aos usuários do metrô. • Ocupação com prédios de uso misto, com comércio no térreo e parte sobre pilotis e uso residencial nos demais andares na área (6). • Criação de um teatro, reforçando o parque como espaço de manifestações culturais (7). • Criação de diversos espaços de lazer e convivência espalhados por todo o parque, entre eles a Praça Caracol (8), Praça da Criança (9), pista de skate e espaços fitness ao ar livre, além de banheiros públicos e quiosques de uso coletivo, com estrutura para piquenique e churrasco. • Transformação do antigo galpão da fábrica de pregos em um centro esportivo (10), com esportes indoor, e quadras esportivas ao ar livre. • Alargamento da Rua Conselheiro Rocha, no trecho em frente a essa área, para a criação de pontos de parada de ônibus. • Criação de novas pontes/passarelas, com a padronização dos acessos ao parque, gerando acessibilidade universal e segurança na travessia da Avenida dos Andradas e do ribeirão Arrudas, e também de plataformas que avançam sobre o ribeirão, permitindo maior interatividade dos usuários com este.

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Área 2 • Continuidade da Rua Conselheiro Rocha, atualmente com vários trechos interrompidos, gerando um novo eixo de ligação do Horto ao Centro da cidade. • Eliminação da barreira atualmente formada pelas linhas férreas, gerando uma área contínua formada pelo parque e o ribeirão Arrudas. • Reforço dos principais focos urbanos já existentes na Rua Conselheiro Rocha, área tradicional de bares e restaurantes, com tratamento urbanístico e ambiental em toda extensão da via. • Criação de uma nova estação de metrô subterrânea de Santa Teresa (14) e de um segundo bicicletário (2) junto a ela. • Criação de uma praça em frente ao metrô (5) e uma área de estacionamento (1) em espaço gerado a partir do tapamento de um trecho do Ribeirão Arrudas, facilitando o acesso à estação e a conexão intermodal com linhas de ônibus e veículos particulares da Rua Niquelina e Avenida Mem de Sá. • Criação de nova passarela (13) ligando o parque e o bairro Santa Teresa à Câmara Municipal. • Instalação de pequenos quiosques comerciais (15), distribuídos ao longo dos caminhos do parque, propiciando conforto a ciclistas, corredores e demais usuários.

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Área 3 • Continuidade da ciclovia, saindo da área do parque e voltando para a Avenida dos Andradas, iniciativa integrada com o plano de implantação de mais de 30 km de ciclovias previstas para a cidade de Belo Horizonte até a Copa do Mundo de 2014. • Transformação do antigo viaduto férreo sobre a Avenida Silviano Brandão em uma passarela (17), com espaço ajardinado e mobiliário de permanência. • Criação de um centro comunitário (16), com atividades artísticas, de capacitação profissional, de sociabilidade comu195

nitária, entre outras. Entre os potenciais beneficiários, estão os moradores da próxima Vila João Alfredo e as detentas do presídio feminino. Para a criação desse centro, a Rua João Alfredo seria prolongada até a Rua Conselheiro Rocha. • Para dar continuidade e acesso à Rua Conselheiro Rocha, criação de pequenos aterros para superar a declividade acentuada de determinados trechos. Para garantir acessibilidade universal ao parque, foram pensados três caminhos que se intercomunicam através de rampas e escadas. Na parte mais alta, a calçada junto à Rua Conselheiro Rocha; na parte mais baixa, um caminho junto à ciclovia, interligados por rampas adaptadas às especificidades topográficas de cada trecho. • Reforço da conexão entre o parque e o Mercado Distrital de Santa Teresa, por meio da complementação da arborização e tratamento urbanístico das vias que ligam os dois espaços. • Criação de nova estação de metrô subterrânea do Horto (21). • Criação de praças e espaços de convivência ao redor da estação do metrô, com anfiteatros, fontes de água e playground infantil (5). • Criação de uma área destinada a feiras temporárias, com infraestrutura adequada para o maior conforto dos feirantes (21). • Ocupação das adjacências da estação de metrô com prédios de uso misto (6), com comércio no térreo, reforçando e dando diversidade ao centro do Horto e articulando-se com as áreas esportivas e culturais propostas para seu entorno. • Previsão da instalação de restaurantes e lanchonetes, de modo a complementar as demais atividades e garantir frequentação diurna e noturna da área.

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INSTRUÇÕES PARA A SUBMISSÃO DE TRABALHOS A submissão de trabalhos deverá ser feita por meio do portal eletrônico dos Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, em http://periodicos.pucminas.br/index.php/arquiteturaeurbanismo, no qual estão as normas, inclusive em inglês e espanhol, para apresentação de trabalhos.

SUBMISSION AND NORMS TO PRESENTATION OF PAPERS http://periodicos.pucminas.br/index.php/arquiteturaeurbanismo

SUMISIÓN Y DIRECTRICES PARA PRESENTACIÓN DE TRABAJOS http://periodicos.pucminas.br/index.php/arquiteturaeurbanismo

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS 1. Serão aceitos para apreciação trabalhos das seguintes modalidades: • artigos de revisão relacionados às diversas áreas temáticas de Arquitetura e Urbanismo; • artigos de pesquisa, que apresentem novas contribuições para Arquitetura e Urbanismo; • artigos associados a dissertações de mestrado e teses de doutorado; • artigos relacionados ao ensino de Arquitetura e Urbanismo; • projetos de Arquitetura e Urbanismo, discutidos teórica e metodologicamente; • entrevistas; • resenhas de livros, artigos e filmes de significativa importância para Arquitetura e Urbanismo. 2. Só serão aceitos trabalhos inéditos e ainda não publicados. 3. A critério do Conselho Editorial, poderão ser aceitos trabalhos que não se enquadrem nos itens acima, considerada a sua especial relevância. 4. Os trabalhos deverão atender às seguintes especificações: • trabalho digitado em Word, na fonte Arial, corpo 11, entrelinha 1,5, página em formato A4, com margens superior, inferior e direita de 2 cm, e margem esquerda de 3 cm; • o trabalho completo (incluindo resumos, notas, ilustrações e referências bibliográficas) deverá ter, no mínimo, 12 e, no máximo, 20 páginas; • título e subtítulo objetivos, de, no máximo, 50 caracteres, apresentados de modo trilíngue (português, inglês e espanhol); • caso o trabalho seja decorrente de pesquisas, dissertações, teses ou similares, explicitar, em nota de rodapé associada ao título, espaçamento entre linhas simples, como indicado no exemplo a seguir: Este artigo toma por base investigação em andamento no doutoramento de Maria de Assis, no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob orientação de João Martins; • nome completo do autor ou autores, complementado com as seguintes informações, indicadas em nota de rodapé (uma para cada autor): Formação/instituição, titulação, filiação profissional, como indicado no exemplo a seguir: Arquiteto pela PUC Minas, mestre em Desenvolvimento Urbano pela UFMG, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano pela PUC Minas. Professor do Departamento de Expressão Gráfica da PUC Minas; • resumo do trabalho, apresentado de modo trilíngue (português, inglês e espanhol), contendo, no máximo, 500 caracteres cada (contados sem espaços); • palavras-chave indicadoras do conteúdo do trabalho (mínimo de 3 e máximo de 5), apresentadas de modo trilíngue. Sugere-se que ao menos duas das palavras-chave tenham um caráter mais genérico;

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• citações e referências bibliográficas devem ser apresentadas segundo o Padrão PUC Minas de Normalização, disponível em http://www.pucminas.br/documentos/normalizacao_artigos.pdf; • as notas devem ser de rodapé; • as imagens de qualquer natureza (gráficos, figuras, fotos, mapas e outras) devem ser perfeitamente legíveis e apresentadas de duas maneiras: 1. ao longo do texto, em baixa resolução, numeradas, acompanhadas de legendas específicas, com identificação de fonte (as imagens não podem ter problema de direitos autorais); 2. cada uma das imagens inseridas ao longo do trabalho deve ainda ser submetida pelo sistema, conforme consta do “passo 4: envie documento suplementar”. Elas devem estar em formato JPG ou TIF, com tamanho real de, no mínimo, 1.000 pixels na horizontal e altura proporcional, de modo a garantir boa qualidade para a reprodução gráfica. As imagens da versão digital poderão ser coloridas, mas, na versão impressa, serão em preto e branco; • E-mail, telefone (com DDD) e endereço completo para correspondência (com CEP) de cada um dos autores, inseridos ao final do trabalho, como indicado no exemplo a seguir: Endereço para correspondência: Maria de Assis E-mail: [email protected] Rua Dom José Leme, 57 - apto. 804 Bairro Coração Eucarístico Belo Horizonte–MG 52420-000 (Observação: No artigo será publicado apenas o e-mail do autor.); • deve-se evitar que tabelas e quadros estejam bloqueados para edição. 5. A identificação de autoria do trabalho será removida do arquivo pela equipe editorial, garantindo, dessa forma, o critério de sigilo da revista, caso submetido para avaliação por pares. 6. Condições gerais: A colaboração de autores e avaliadores não é remunerada. O artigo estará disponível no site dos Cadernos de Arquitetura e Urbanismo por tempo indeterminado, acessível por link direto.

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