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Coracao Envenenado Minha Vida c - Dee Dee Ramone Flipbook PDF

Coracao Envenenado Minha Vida c - Dee Dee Ramone


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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

PREFÁCIO INTRODUÇÃO À CAÇA DA LIBÉLULA Parte 1 INFÂNCIA Deutschland Deutschland Ober Alles O verão do ódio Parte 2 BLITZKRIEG BOP! Fruto proibido O garoto encontra Johnny Minha casa é o inferno Segura essa! Connie Parte 3 OS RAMONES SAEM DE CASA Uma viagem à Inglaterra Fim do século Chicken beak boy Parte 4 ESTRADA PARA A RUÍNA Sob pressão Psicoterapia Los Ramones Coração envenenado Alligator Alley Famílias felizes Na pior De volta ao Village Parte 5 SOBREVIVENTE Paris O campo de concentração líquido Westbourne Park Abstinência no hotel Chelsea Blues Buenos Aires Holanda

Mechelen Despedida argentina EPÍLOGO ANEXOS

Adendo à edição brasileira Em respeito à memória de Dee Dee, dedico esta edição de seu livro à legião de fãs brasileiros. Espero que vocês apreciem a leitura de sua história e que continuem a adorar a música por aí. Que o legado de Dee Dee esteja sempre com vocês. Agradecimentos Dee Dee Ramone deixa seus agradecimentos para todos que o acompanharam durante a vida e, em especial, para: Ramones, Ira Herzog, Michael e Sally da Herzog & Strauss, Seymour Strauss, Veronica Kofman, Daniel Rey, Larry Schatz, Ed Steinberg, Seymour Stein, Harold Holloway, dr. Finkel, dr. Hanch, Stanley Bart e Western Union. Veronica Kofman agradece a todos que colaboraram e, em especial, aos Ramones, a Dee Dee Ramone, a Joey Ramone e a William Norman Stone.

PREFÁCIO

Dee Dee, pai do punk por André Barcinski Era difícil entrevistar Dee Dee Ramone. Qualquer jornalista que tenha passado mais de cinco minutos com o sujeito concordaria comigo. Ele não era o mais articulado dos homens. As respostas saíam de sua boca rápidas, como um tiro, meio sem pensar. Às vezes, ele interrompia uma frase no meio e mudava de assunto, como se tivesse perdido o interesse pelo tema ou lembrado de algo mais importante. Para alguém apaixonado pela música de Dee Dee Ramone, como eu, isso era frustrante. Afinal, eu queria absorver tudo que ele dizia, esmiuçar sua memória, tirar dele alguma informação nova e relevante. Mas Dee Dee não se achava importante. Ele falava de discos clássicos, como o primeiro Ramones ou Rocket To Russia, como se estivesse conversando sobre o tempo. Para ele, Sid Vicious não era uma lenda do punk, mas simplesmente um cara bacana, com quem dividiu várias seringas. Phil Spector era um louco, que gostava de dar uns tiros no teto do estúdio durante as gravações. Certa vez, um amigo, que trabalhava como contador dos Ramones, me convidou para conhecer Dee Dee. Fomos ao hotel Chelsea, onde ele costumava se hospedar. Dee Dee encomendou comida chinesa e nos entreteve por várias horas, contando as histórias mais incríveis. Até hoje me arrependo de não ter levado um gravador. Ele contou sobre seus dias em Paris, quando tentou montar uma banda com Stiv Bators e Johnny Thunders (“seria a maior reunião de loucos da história do rock”, brincou); depois falou de Sid Vicious, lembrando que estávamos no hotel onde Nancy Spungen, namorada de Sid, morrera a facadas. “Não foi Sid que

matou Nancy”, garantiu Dee Dee. “Todo mundo sabe que foi o traficante dela”. Parem as máquinas! Dee Dee acaba de reescrever a história! Na mesma noite, ele nos convidou para a abertura de uma exposição de fotos sobre a cena punk nova-iorquina, numa galeria do East Village. Dee Dee entrou no lugar lotado, e a galeria parou. Fez-se um silêncio reverente, como se o Papa em pessoa tivesse adentrado o recinto. Henry Rollins estava lá, e veio cumprimentar Dee Dee. Ele nem pareceu ter notado a comoção. Existem duas teorias básicas sobre o surgimento do punk: uma diz que foi um movimento inspirado em anarquistas, dadaístas e outros radicais; outra diz que o punk surgiu do tédio de um bando de adolescentes, cansados dos pais, da dureza da vida e do rock babaca dos anos 70. A primeira acredita numa força intelectual e teórica por trás do movimento; a segunda diz que tudo surgiu num “Big Bang”, uma grande explosão movida a guitarras e ódio. Prefiro acreditar nas duas. Aliás, para que essa briga? Mais importante do que ficar discutindo como o punk surgiu, é celebrar sua importância. Sem ele, onde estaríamos? Provavelmente ainda ouvindo Emerson, Lake & Palmer. O punk reuniu, sob um mesmo teto, jovens cultos e bem informados (Richard Hell, Howard Devoto), e delinquentes juvenis (Sid Vicious, Steve Jones, Dee Dee Ramone). Todos aprenderam a lição mais importante do movimento: a de não dar importância a nada. E se o lema do punk era “faça você mesmo”, então Dee Dee Ramone poderia ser seu porta-voz (embora ele certamente não gostasse da idéia de ser porta-voz de merda nenhuma). Mas foi exatamente isso que aconteceu: um sujeito destinado a ser um fracasso na vida acabou tornando-se modelo para uma geração. Pergunte a Sid Vicious, que colou em Dee Dee como um fã ensandecido; ou a Paul Simonon, do Clash, que aprendeu a

tocar baixo ouvindo Dee Dee no primeiro disco dos Ramones. Pergunte a qualquer adolescente que, ainda hoje, veste as mesmas jaquetas de couro e jeans rasgados que os Ramones transformaram em uniforme. Embora ele mesmo fosse incapaz de explicar como, Dee Dee e os Ramones mudaram o rock. Sem palavras de ordem, sem teorias, sem blábláblá. Porque o negócio deles nunca foi teoria mesmo. O que eles sabiam era tocar música rápida, sem firulas ou solos de guitarra, com letras que falavam do dia-a-dia. Era uma música simples, mas que dizia mais que qualquer manifesto libertário. Quantas bandas não surgiram depois de ouvir “Blitzkrieg Bop”? Quantos adolescentes, nos anos 70, não pensaram a mesma coisa: “Se esses caras podem gravar um disco, eu também posso!”? Coração Envenenado não é um livro sobre música. Não espere tratados filosóficos sobre a invenção do punk, ou reminiscências de algum teórico do movimento. Este livro é como a música dos Ramones: curto, poderoso, e vai direto ao ponto. É uma das autobiografias mais honestas e sem-vergonha que já li. Dee Dee descreve os pais: “Minha mãe era uma bêbada louca [...]; meu pai, um bêbado fraco e egoísta”, Dee Dee descreve os Ramones: “Tommy, Johnny e Joey eram os desajustados óbvios do bairro”, Dee Dee descreve a si mesmo: “Aos doze anos, eu sabia que era um fracassado”. Punks de carteirinha vão babar nas jaquetas com as histórias. Afinal, não é qualquer um que conviveu com Deborah Harry, Phil Spector, Iggy Pop, Richard Hell, Johnny Thunders, Jerry Nolan, Cheetah Chrome, Stiv Bators, e tantos outros. Fãs dos Ramones vão finalmente entender a inspiração por trás de suas letras, e concluir que Dee Dee foi, de fato, um grande documentarista do punk. Ele escrevia sobre sua vida e a de seus amigos. Dee Dee passou a infância brincando nos escombros da Alemanha destruída, e a adolescência vagando pela Nova York

de Taxi Driver, a cidade que Lou Reed celebrou em “Walk On The Wild Side” e que os Ramones descreveram em incontáveis clássicos. Se Dee Dee escrevia sobre a podridão das ruas de Nova York (*53rd And 3rd”), era porque realmente havia experimentado aquilo de perto, tendo sofrido overdose atrás de overdose, vendo amigos morrerem, apanhando de traficantes e bêbados e putas e viciados. Se escreveu sobre heroína (“Chinese Rock”, “Wart Hog”), foi porque esse demônio o assombrou por toda a vida. Dee Dee e os Ramones criaram muitos clichês do punk: o visual, a atitude, o bom humor. No palco, quase não se mexiam. Ficavam parados como estátuas, num contraste com a violência da música. Parecia uma atitude blasé, como se dissessem: “Esse negócio de pular pelo palco é pras crianças; nós deixamos a música falar por nós”, Tomando emprestado o “One, Two, Three, Four” com que os Beatles abriram “I Saw Her Standing There”, eles inventaram seu grito de guerra. Quem não lembra? Quando ainda soava o último acorde de uma música, Dee Dee fazia a contagem, e a banda emendava outra paulada de um minuto e meio. Era a coisa mais linda do mundo.

INTRODUÇÃO Estou em Nova York olhando a neve cair. Acabei de deixar Dee Dee e sua nova mulher, Barbara, para que eles aproveitem o resto do dia de Ação de Graças juntos. Essa história tem um final feliz — com paz e satisfação. Um novo capítulo começou numa vida turbulenta. Dee Dee diz que uma história sobre os Ramones não pode ter final feliz. Talvez ele tenha razão, mas o que você vai ler não é simplesmente uma história sobre os Ramones. É sobre uma vida — a vida de um homem que entre outras coisas também foi membro de uma banda de rock famosa no mundo inteiro, Dee Dee Ramone e eu nos reencontramos, por acaso, no verão deste ano, num vôo para Los Angeles. Já fazia dois anos que eu não o via. Estávamos indo ao último show da história dos Ramones. Na viagem li os três primeiros capítulos deste livro e fiquei encantada. Dee Dee demorou cinco anos para escrever essa história. Ainda era um manuscrito. É um livro sem dúvida honesto que fala da sobrevivência num mundo repleto de falso glamour, traições amargas e quedas. O lado de lá da fama e da fortuna, de onde poucos saem ilesos. Muitos nem sequer sobrevivem. Acho que esta é a hora certa para agradecer a todos que sobreviveram. Obrigada por tanta amizade e tanto amor. Então, boa sorte, Dee Dee — e sei que você não vai se importar se eu agradecer também aos seus companheiros de luta, os Ramones, pelas alegrias que você e eles proporcionaram a tantas vidas.

À CAÇA DA LIBÉLULA Se a vida segue alguma lógica, eu gostaria de saber qual é. Estou novamente no hotel Chelsea, em Nova York. Já tomei muitas drogas neste hotel. E é aqui mesmo que vou me livrar das drogas. Não é estranho? Faltam duas semanas para o meu aniversário. E eu não tomo metadona, a droga mais viciante que existe, há duas semanas. Vai ser o teste mais difícil para mim, tenho certeza. Uma experiência e tanto. Todos os demônios do meu passado estão me atormentando. Dizem que o hotel Chelsea é mal-assombrado. Eu concordo. Neste exato momento há um libélula voando pelo meu quarto. Fêmea. Como Connie, um dos meus antigos demônios. Ela voou para dentro do meu quarto, aqui mesmo neste hotel, dezessete anos atrás. Nem bateu na porta — entrou direto, aos berros, me xingando. Connie estava muito, muito bêbada. Apagou, e o porre acabou passando, mas antes destruiu completamente o lugar. Quebrou uma garrafa de champanhe no aquecedor e tentou me matar cortando meu pescoço com os cacos. Até que ficou exausta e jogou a garrafa quebrada pela janela, o que estilhaçou a vidraça. Era assim que Connie dizia boa noite: “Vá se foder. Acabou. Vá dormir”. Então fui para a cama. Na manhã seguinte agimos como se estivesse tudo normal. Demos um jeito de nos vestir, descemos para a rua e pegamos um táxi para o Lower East Side, saímos e fomos comprar heroína de alguém. Isso foi em 1974 ou 1975. Connie era stripper. Eu dava duro nos Ramones. Nós dois éramos viciados. Agora estamos no começo dos anos 90 e eu estou de saco cheio de tudo isso. Vou contra-atacar. Encaro a libélula com um olhar matador, mas ela finge não ligar. Agora ela está em fúria, voando

na minha direção por trás e depois dando meia-volta e vindo pela frente. Tenta me fazer de otário para que eu olhe para a luz. Nem fodendo. Vou mandar toda e qualquer merda de recordação que eu tenha deste hotel direto para o inferno de onde veio. Coloco fogo no tapete e avanço sobre ela por trás. Ponho fogo na cabeça dela com outro fósforo e fico vendo a chama. Aí me sinto normal de novo. Então começo a relaxar e fico olhando para um ventilador desligado, tentando fazê-lo girar com a força do pensamento. Não me sacaneie. Se você já passou por isso, acho que vai entender.

Parte 1 INFÂNCIA Deutschland Deutschland Ober Alles Hoje acho que desperdicei energia demais me preocupando por nada. Provavelmente porque eu me sentia um nada. Meus pais eram horríveis. A vida deles era um completo caos, e parecia que eles punham toda a culpa em mim. Minha mãe era uma bêbada louca, dada a explosões emocionais. Ela saía rodopiando pelo apartamento, dando socos no ar ou caindo e batendo os punhos no chão para que todo mundo soubesse que era durona e que ninguém podia sacanear com ela. Ela se apresentava como Tony, o que, pensando bem, é tão bobo quanto eu me apresentar como Dee Dee. Além de uma mãe bastante parecida com Connie — minha namorada no tempo em que os Ramones começaram, no início dos anos 70 —, tive um pai bêbado, fraco e egoísta, também um pouco parecido com Connie e com a pessoa que eu me tornei. Eles se conheceram depois da Segunda Guerra Mundial, em Berlim, onde meu pai estava a serviço do exército americano. Eles se apaixonaram e se casaram. Meu pai tinha 38 anos, e minha mãe, na época, tinha somente dezessete aninhos. Quando eu nasci meu pai já era primeiro-sargento, e a cada dois anos, mais ou menos, éramos obrigados a mudar de uma cidade alemã de merda para outra. Já vi fotos do casamento dos meus pais em Berlim. Eles eram um lindo casal. Minha mãe, tenho que admitir, era muito bonita, e meu pai, um boa-pinta. Mas os dois tinham aquele olhar gelado, distante, vazio, Acho que ter passado pela Segunda Guerra Mundial fodeu com a cabeça deles. Minha mãe tinha sobrevivido aos bombardeios que transformaram Berlim numa carapaça demolida. Meu pai tinha lutado na batalha das Ardenas e depois em Hamburger Hill, na Coréia.

Minha mãe nasceu num domingo de 1931, em Berlim, num hospital construído por Frederico, o Grande. Parece que teve uma vida muito limitada, embora Berlim fosse uma cidade grande e cheia de crimes violentos. Ela tinha dois anos de idade quando Hitler subiu ao poder, em 1933. Foi uma época terrível. Comunistas e nazistas brigavam nas ruas e se matavam. A escola não foi fácil para ela. Todo dia minha mãe e seus colegas eram obrigados a fazer juramento à bandeira. Estendiam o braço, fazendo a saudação nazista, e cantavam “Deutschland Deutschland Úber Alles” e “Die Faderland”. O primeiro título significa “Alemanha, Alemanha sobre todas as coisas”. Dizem que a letra foi escrita por Horst Wessel, um cafetão de Berlim que depois se tornou nazista. Em 1936, as Olimpíadas foram organizadas em Berlim e a cidade ficou tão limpa que parecia que tinham passado uma escova de dentes nas ruas. Quando a Segunda Guerra Mundial começou, minha mãe tinha oito anos. Com as batalhas, vieram os cartões de racionamento e as sentinelas. Os judeus eram obrigados a usar uma estrela amarela na roupa. Depois veio a Kristallnacht, a noite em que todos os judeus foram atacados em suas casas e nas ruas. Minha mãe se lembra dos gritos. Ela era uma criança e não tinha nada contra ninguém. Ficou assustada. Depois vieram três anos de bombardeios. Todas as pessoas de catorze a 84 anos de idade receberam ordens para defender Berlim. Minha mãe tinha catorze anos quando a guerra terminou. A cidade estava cheia de cadáveres. Eles entupiram o rio. Minha mãe ajudou a enterrá-los. Com catorze anos, descobri uma piscina coberta numa base militar de Berlim. “Mãe, é legal”, falei pra ela sobre a piscina. “Por que você não vai lá pra nadar comigo e com a Beverly?”, insisti. “Não, Douglas. Eu não conseguiria”.

“Por que não, mãe?” perguntei. “Porque eu me lembro de como essa piscina ficou depois da guerra. Ela estava cheia de sangue dos cadáveres dos cavalos e das pessoas”. Algumas de minhas primeiras lembranças são de quando eu tinha seis anos e morava em Munique, na Alemanha, numa outra base militar. Lembro que, quando estavam bêbados, meus pais quebravam o pau. Uma vez, tarde da noite, acordei com uns barulhos vindos da sala de estar. Saí da cama para ver o que estava acontecendo e fiquei observando tudo do corredor. Eram meus pais que estavam causando aquela confusão. Meu pai estava em cima da minha mãe, dando umas porradas nela. Os dois berravam e acordaram o prédio inteiro. Na manhã seguinte, todo mundo fingiu que nada tinha acontecido. Mas eu achava estranho e não conseguia entender por que minha mãe jogava a louça pela janela do nosso apartamento no quarto andar. Assim como não entendia cada vez que tive que segurar a cabeça da minha mãe na esperança de que meu pai parasse o carro pra ela vomitar no acostamento e não em mim. Meus pais pareciam tão infelizes que dentro de mim eu desejava que meu pai simplesmente saísse da pista com nosso carrinho alemão e matasse a família inteira. Minha mãe me apresentou ao rock'n'roll. Ela era problemática — mas usava roupas legais e tinha um EP do Bill Haley and the Comets e aquele disco I’m Going To Kansas City. Isso foi no fim dos anos 50 — era impossível ignorar aqueles adolescentes de calça chino preta pregueada e brilhantina no cabelo, dançando nos arredores da Escola Americana de Munique, que ficava bem perto do prédio onde eu morava. Tentei frequentar a escola, mas fui reprovado no primeiro ano e fiquei com vergonha de voltar — a não ser na hora do lanche, quando ninguém me via. Eu me escondia nos arbustos e ficava espiando os adolescentes conversando e ouvindo seus rádios

transistores. Era assim que eu conseguia ouvir música. Eu me apaixonei pelo rock'n'roll. Era emocionante e parecia provocador. Eu gostava de tudo que fosse louco. Tipo ver A Múmia, com a minha mãe, ou Os Dez Mandamentos, sozinho. O filme durava seis horas, então faziam um intervalo esquisito e abriam as portas para que todo mundo pudesse sair e fumar um cigarro ou qualquer coisa assim. Eu achava muito louco o contraste entre aquele mundo escuro, seguro e fantasioso dentro do cinema e o brilho do sol lá fora, onde todo mundo se via. Fiquei preocupado em não perder o canhoto do ingresso e poder voltar para a sala. A Múmia era mais pervertido e doentio, mas era estranho ver um filme complexo como Os Dez Mandamentos sozinho. Eu me lembro de como foi emocionante quando a polícia trouxe Little Jimmy Preger, o delinquente da vizinhança, para o prédio onde nós morávamos. Ele tinha desmaiado e os policiais o conduziram pela escada de maca. Jimmy tinha um olhar meio “vá todo mundo se foder por me fazer passar por isso”, tipo James Dean. Ele não ligava mais, tinha dezesseis anos, estava condenado — e sabia disso. Eu tinha sete, e minhas perspectivas também pareciam sombrias. Meus pais continuavam bebendo. Ficavam gritando até não aguentar mais, o que me deixava bastante constrangido. Nunca tínhamos paz ou silêncio. Mesmo às cinco da manhã, continuavam discutindo. Uma vez fui até a sala de estar, de pijama, para ver o que estava acontecendo. Fiquei confuso; minha mãe estava surtando de novo e eu vi quando meu pai a imobilizou e gritou: “Chame a senhorita Preger”. A senhorita Preger era mãe de Jimmy e morava no nosso prédio. Minha mãe gritou para que eu chamasse a polícia. Alguma outra pessoa acabou chamando e os policiais vieram e prenderam minha mãe. Antes que fosse levada, ela me trancou no porão.

Meus pais davam umas festas muito loucas. Uma noite, uns amigos deles pularam da sacada, só pra zoar. Não sei o que aconteceu depois. Meu pai não quis me explicar. Estava ocupado demais enchendo a cara de novo. Minha mãe também. Ela bebia misturas de bourbon Four Roses, Coca-Cola e cubos de gelo redondos. São muito boas, fazem você ficar animado. A coisa chegou a um ponto em que eu tinha que evitar meu pai. Voltar pra casa era assustador demais. Eu passava a maior parte do tempo sozinho, andando à toa, perto da base militar; tinha que viver num absoluto mundo de fantasia. O mundo real era foda demais pra mim. Durante um tempo, no início dos anos 60, minha família e eu voltamos para os Estados Unidos e moramos em Atlanta, na Geórgia. Meu pai foi transferido para lá e então nos mudamos para um pequeno apartamento perto da basemilitar. Minha mãe, chamava o lugar de “Alameda dos Insetos”. Não tinha muitos insetos na Alemanha, mas nosso novo apartamento estava infestado deles. A base de Atlanta tinha uma vida social intensa pras famílias dos soldados, então podíamos sair bastante, o que era divertido. Os soldados e suas mulheres eram jovens — a maioria estava na adolescência ou com vinte e poucos anos — e dava pra ouvir rock’n'roll vindo do bar da cantina deles. Era lá que se podia comprar discos de rock'n'roll, rádios transistores, loção pós-barba Aqua Velvet e meias Gold Cup. Dava pra ouvir rock'n'roll na piscina também. Parecia tão natural quanto o sol, as revistas em quadrinhos e as batatas fritas. Nos fins de semana, rolavam os bailes com as melhores bandas de twist. Minha mãe, minha irmã Beverly e eu estávamos sempre lá. Uma vez, andando por um bazar num subúrbio de Atlanta, meu pai e eu passamos por um trailer com um palco montado ao lado. Tinha uma barraca montada atrás do trailer e garotas de biquíni dançando ao som de uma banda de rhythm and blues ao vivo.

Era bem sensual. Dava pra entrar na barraca e ver as garotas tirando a roupa, mas meu pai e eu simplesmente continuamos andando. Fiquei feliz por isso; meu pai ia acabar dando vexame. Pouco tempo depois, quando eu tinha onze ou doze anos, meu pai foi novamente transferido para a Alemanha. Pirmasens era um lugar bem violento, do tipo vale-tudo. Os moradores trabalhavam nas fábricas, e uma névoa com cheiro de esgoto pairava sobre o lugar. Quem morava lá tinha uma certa vergonha de dizer isso, era muito foda. A população de Pirmasens era uma mistura de soldados americanos loucos, seus entediados dependentes e uma porção de alemães revoltados. Alemães e americanos não se dão muito bem. Eu não tinha muitos amigos. Nunca tive. Perto do meu prédio, os meninos ficavam sentados nos balanços e cuspiam uns nos outros. Se você levasse bolas de gude ou soldados de brinquedo para o playground os outros meninos sempre roubavam. Nós éramos maus e detestáveis e todos tinham os mesmos problemas — pais que bebiam até morrer e batiam nas nossas mães e pais e mães que descontavam em nós. Você tentava fazer o possível. Ser infeliz era normal. Não parecia existir outra saída. Em Pirmasens, tive meu primeiro encontro com a violência. Foi entre mim e um outro garoto chamado Krudd. Como eu, Krudd tinha mãe alemã e o pai estava na base militar a serviço. Era sargento e passava a maior parte do tempo planejando refeições para as tropas; o tempo livre ele passava no clube dos soldados bebendo e jogando nos caça-níqueis. Sua mãe, por outro lado, era uma autêntica hausfrau alemã. Parecia o que os alemães chamam de putzfrau, que é uma bruxa suja e desdentada que fica esfregando escadas e está sempre naquele humor do tipo “cuidado comigo”. Não espanta que Krudd fosse esquisito. Não tinha outro jeito, principalmente crescendo em Pirmasens — seu destino era ser um fracassado.

Na escola, socialmente, Krudd estava também abaixo do chão. Ele não era popular. Era fedorento e obeso, um esquisitão. E era desse jeito que os outros garotos tratavam o cara, Krudd e eu tínhamos alguma coisa em comum, portanto. Éramos dois fracassados sem nenhuma popularidade. Krudd, no entanto, tinha uma coisa positiva: uma guitarra folk Eramus Tobacco Sunburst, que de algum modo se tornava bem rock'n'roll quando ele tocava fazendo uma puta careta. Era o charme de ter uma guitarra. Ninguém sabia muito bem como tocar rock'n'roll numa guitarra, e por isso aguentei com prazer Krudd me mostrando algumas coisas nela, por exemplo, a “The House Of The Rising Sun” com afinação aberta, que tentei praticar. Mas em pouco tempo a novidade me cansou — eu tenho pouca concentração. Era culpa minha, e senti que Krudd estava ficando cada vez mais nervoso comigo. Até que um dia, na escola, pouco antes que a aula começasse, fiz uma brincadeira violenta e ele, do nada, me deu um soco na cara. Caí de bunda no chão. Achei que a briga tivesse acabado ali; o professor estava ficando bastante zangado e queria que todo mundo se sentasse para que ele pudesse começar a aula. Mas, de acordo com o código local, eu tinha que encontrar Krudd mais tarde, depois da escola, para uma revanche. Eu tinha amarrado a corda no meu pescoço, e agora era obrigado a ir ao meu próprio funeral. Me senti mal, mas não tinha nada que eu pudesse fazer. Na saída da escola, entrei no centro de uma roda de espectadores gozadores e antipáticos. Eu sabia que não levava jeito para brigar, mas precisava fazer aquilo. Nem toda a minha teatralidade ou minhas fantasias me ajudariam naquela situação. Era óbvio que Krudd ia me massacrar. Ele era mais violento e maior do que eu, e além disso já tinha meio que batido em mim uma hora antes. Eu não podia deixar que isso acontecesse outra vez, e, como ele era um adversário difícil demais de vencer com chutes e socos, fiz o que devia fazer.

Meti uma navalha nele. Era um canivete com uma lâmina de dez centímetros. Na Alemanha era possível comprar armas livremente, e todo mundo sempre levava uma. Era natural. Isso fez Krudd recuar e pensar nas coisas com mais cuidado. Então consegui controlar a situação de um jeito meio tonto. Escapei dando alguns golpes no ar e fazendo aquela cara de mau que sei fazer. Era sério também — ninguém a não ser meus pais tinha batido em mim antes. Eu estava com medo de Krudd, e foi bom que ele tenha recuado. Não preciso dizer que também perdi a amizade dele, mas e daí? Pirmasens me deu, além disso, meu primeiro contato com a morfina. Um dia encontrei vários daqueles tubos de morfina escondidos no lixo, atrás de uma garagem. Provavelmente algum soldado jovem e pobre estava planejando usá-los — sem dúvida por ter conhecido a heroína em casa, nos Estados Unidos. Foi mais ou menos nessa época que Elvis Presley serviu na Alemanha, e dizem que ele começou a usar drogas para ficar acordado enquanto fazia a guarda naquelas noite de inverno longas e frias. A morfina vinha em tubos de pasta de dente cor de cáqui, com uma agulha grande na ponta. Você enfiava a agulha na coxa e apertava o tubo para a morfina entrar no seu corpo. Naquela época eu não conhecia drogas — era uma coisa doentia demais para um garoto. À primeira vista os tubos podiam parecer um incômodo, por causa do tamanho da agulha, mas um viciado não iria dar bola para aquilo e com certeza faria o trabalho até o fim. As agulhas pareciam perigosas e ameaçadoras, mas eu levei todas ao playground para mostrá-las para uma grupo de meninos. Hoje em dia, se você conseguir alguma coisa parecida, você se torna, na mesma hora, uma pessoa muito popular e os malucos fazem fila na porta da sua casa, mas naquela época ninguém conhecia. A morfina é uma heroína em sua forma mais antiga. Uma via de acesso ao paraíso dos melhores picos. É raro conseguir ampolas ou frascos. Uma vez, no playground, vi uma dessas ampolas

jogada na areia, perto dos balanços, e levei para casa para mostrar ao meu pai. Eu achava que ele ficaria orgulhoso de mim. Quando subi as escadas, ele estava lá. Parecia um animal enjaulado, andando em círculos no pequeno apartamento. Ele devia estar pensando em várias coisas e tentando refrear muita tensão, mas me arrisquei e fui incomodá-lo. “Pai, o que é isso?”, perguntei. “Deixa eu ver”. Ele fez uma careta e tirou as ampolas das minhas mãos. “Onde você achou isso?”, perguntou. “Sei lá”. “Sai daqui!”, disse. Saí. Ele ficou muito nervoso. Meu pai realmente odiava drogas. Mesmo aos doze anos eu sabia, de algum modo, que eu era um fracassado. Não via futuro para mim. Achava que a única coisa que eu poderia esperar era entrar no exército. Mas não consegui aguentar nem uma semana nos escoteiros. Tinha medo de perguntar qualquer coisa sobre qualquer assunto para o meu pai, e mais ainda, para pedir que ele me deixasse ir a um acampamento. Até que ouvi os Beatles pela primeira vez. Arranjei meu primeiro rádio transistor, um penteado beatle e um terno beatle. Hoje parece meio absurdo, mas os Beatles eram do caralho. Eu me identificava com aquelas novas músicas de rock'n'roll que tocavam na rádio Luxembourg, uma rádio pirata que operava no Canal da Mancha. Eles transmitiam comerciais de equipamento para narguilé e tocavam Shearchers, Beatles e Dave Clark Five. Minha irmã Beverly e eu também íamos ver filmes como Feitiço Havaiano, com Elvis Presley, e Operação Cupido, com Hayley Mills. Quando o filme dos Beatles, Os Reis Do Iê-Iê-lê, estreou,

todos os adolescentes no cinema se apaixonaram. Dava para sentir. Todos nós saímos do cinema radiantes. Uma vez, mais ou menos nessa época, eu estava botando o lixo para fora e achei uma caixa de números velhos da Playboy numa lixeira atrás de onde eu morava. Levei as revistas para casa e folheei. Havia um artigo sobre um lutador chamado Gorgeous George que chamou minha atenção. Ele parecia meio maníaco. Por algum motivo minha reação àquele artigo foi minha inspiração para o nome Dee Dee. Ele não se parecia com ninguém. Gostei disso. Antes que os Beatles ficassem famosos, eles tinham se chamado Silver Beatles, em vez de simplesmente Beatles. Acho que todo mundo queria ser glamouroso. Estava na moda, e John Lennon se chamava Johnny Silver. George era George Perkins e Paul era Paul Ramone. Achei meio insultuoso trocar o nome verdadeiro por um inventado, mas gostei da idéia. Eu estava perdido em mais uma fantasia, e mudei de Douglas Colvin para Dee Dee Ramone. Eu achava os rebeldes bem mais cool que os caretas. Meus pais pareciam um tédio contínuo. Eu nunca perdoaria os dois pelo que estava acontecendo em casa. Não sei, mas talvez minha mãe ou meu pai ficassem mais satisfeitos se eu batesse na minha irmã Beverly dia e noite e começasse o dia tomando cerveja no café da manhã, mas naquela época eu não dava bola. Tinha meu próprio estilo. Eu tinha esperanças de que as coisas fossem melhorar quando nós voltássemos para a cidade natal da minha mãe, Berlim, mas não. E daí? Eu não ligava mais. Eu tinha o rock'n'roll, e ele me dava uma noção da minha própria identidade. Tentava não ir para casa o máximo que pudesse e passava o dia com meu amigo Robert fazendo furtos numa grande loja de departamentos, a Ka De We, perto da Wittenberg Platz. Nós tentávamos também

afanar relíquias de guerra dos antiquários perto da Nolendorff Platz para vender para soldados americanos. Robert e eu passávamos horas em velhos prédios bombardeados e terrenos baldios procurando mais relíquias de guerra para vender para os antiquários. Nosso local de caça favorito era na Potzdammer Platz, onde antes ficava o enorme Banhoff e também o bunker de Hitler. Uma vez achei um capacete nazista com uma alça soldada nele. Provavelmente para ser usado para cozinhar batatas depois do fim da guerra. O Muro tinha sido erguido na outra vez em que moramos em Berlim. Antes do Muro, eu me lembro de Beverly, minha mãe e eu pegando o S Bahn para Berlim Oriental para visitar meus avós. Naquela época, em vez de geladeira, eles tinham um armário chamado Koolschrank. Por algum motivo, o leite, na Alemanha, parecia apodrecer menos do que nos Estados Unidos. O apartamento era aquecido a carvão e o pai adotivo de minha mãe tinha um pequeno pátio para armazenar carvão protegido por um pastor alemão chamado Greif. Durante o dia Greif dormia debaixo da mesa da cozinha, mas não dava para brincar com ele porque ele mordia. Depois os americanos foram proibidos de pegar o S Bahn. Robert e eu pegávamos o E Bahn, nos subterrâneos de Berlim Oriental; quando o trem do metrô passava por uma estação da Alemanha Oriental, ele não parava — simplesmente seguia em frente, e Robert e eu colávamos o nariz no vidro da janela para fazer caretas para os Vo Po's, que faziam a vigilância junto com os soldados russos, como em Checkpoint Charlie. Mais tarde, quando nos mudamos para o setor americano de Berlim, perto da Argentinisha Alle, eu levava Kessie, a dachshund da família, para passear de manhã, parava um pouco e acenava para os tanques que passavam pela Argentinisha Alle em direção à Grune A Wald, Depois, às quatro horas, os tanques voltavam para a Argentinisha Alle, para a manutenção. Todos os

garotos do bairro batiam palmas, e depois era hora de voltar para casa e jantar. Ninguém da minha família ficava em casa. Minha mãe normalmente ficava com Beverly na escola de balé onde minha irmã fazia aula de dança. Meu pai desaparecia. Então eu ficava lá sozinho com Kessie, ouvindo rock'n'roll nos programas de rádio das Forças Armadas — coisas como “Dang Me”, de Roger Miller. Ou ia até o bar da cantina dos soldados, onde eu comia um cheeseburguer e tomava um milkshake de chocolate; ficava também no meu quarto, sozinho, lendo sobre grupos como os Monkees, Paul Revere and the Raiders e também Dino, Desi and Billy nas revistas 16 e Hit Parade. Às vezes eu tocava minha guitarra elétrica italiana, comprada na Music Haus Am Zoo, perto da Ausberger Platz. Eu ia até lá todo dia e ficava do lado de fora olhando para as guitarras na vitrine. Eu adorava uma Sunburst Echo verde com três pick-ups brancas e uma alavanca de tremolo. As bandas de Berlim se apresentavam no Liverpool Hoop e na Escola Americana de Berlim. Usavam colunas de PA Selmer e amplificadores Vox e tocavam os sucessos da época, como “Working in a Coal Mine”, “The Midnight Hour” e “Gloria”, dos Shadows of Night. Essas bandas eram impressionantes. As melhores eram os Hound Dogs, o Restless Sect e especialmente os Boots. Nessa altura eu já tinha começado a usar drogas. Tinha um monte de traficantes na área do Braunhoff Am Zoo. Eles enchiam as seringas com morfina líquida tirada de umas garrafas de plástico grandes. A morfina alemã era estranha, mas divertida. Era injetar e sentir um choque elétrico. Depois você ficava completamente dopado. Eu teria usado muito mais, talvez três vezes por mês, mas tinha muito medo do meu pai. Mais tarde, quando me mudei para Nova York, comecei a usar drogas pra valer.

Roupas também eram itens essenciais para mim. As jaquetas da Levi's eram de camurça amarela ou amora. Os Hush Puppies eram de veludo cotelê verde pálido ou azul-bebê. Você tirava as idéias do que vestir das várias bandas que tocavam em Berlim naquela época. Eu achava os Rolling Stones a banda com as roupas mais avançadas. Foi uma grande época para a música; vi os Troggs, os Small Faces, os Hollies, os Beach Boys, os Rolling Stones, o Who e os Walker Brothers. Até que um dia acordei e encontrei Berlim cheia de fotos de Jimi Hendrix. Ele usava um penteado afro, estava com os dentes cerrados e estraçalhava uma Fender Stratocaster enquanto a agitava atrás da cabeça. Era o primeiro show dele em Berlim. Minha mãe, minha irmã e eu fomos para Nova York alguns dias depois, e por isso fui obrigado a perder o show. Meu pai se descontrolava com muita frequência e nós tivemos que fugir para sobreviver.

O verão do ódio Algumas semanas depois de sair de Berlim eu estava morando em Forest Hills, no Queens, em Nova York. Foi uma boa ideia termos saído de Berlim naquele momento. Achei que as coisas iam melhorar sem meu pai, mas elas simplesmente ficaram mais estranhas. Por algum motivo não consegui me identificar com meu novo bairro. Em Berlim pelo menos a gente não precisava ficar em estado de alerta o tempo todo. Forest Hills fica a uma viagem de metrô de Manhattan — mais ou menos vinte minutos no trem F e no G local até o cruzamento da 8th Street com a Sixth Avenue. É um bairro bem cuidado, com vários cupês e Lincolns estacionados na rua. Todos os prédios são da mesma cor vermelho-tijolo e as calçadas da área têm cor de chiclete. Pequenas franjas de grama contornam os prédios e servem de banheiro pros cachorros. De manhã os zeladores queimam o lixo nos incineradores e sai uma fumaça grossa e cinzenta das chaminés. Eu adorava o bairro nesse horário. Assim

que saía para a calçada, eu ficava esperto e observava a confusão da manhã. Nossa cadela, Kessie, que tínhamos trazido de Berlim, fugia pelo saguão do prédio, descia as escadas e ia para a rua, fazendo barulho com as unhas. Eu ficava tomando conta dela. Aí Kessie mudava da posição “pronto” para a posição “ação”, molhava a calçada e entrava de volta no prédio, de onde eu ficava prestando atenção para ver se a polícia não vinha. Eles eram cheios de frescura. Se você fosse pego deixando o cachorro sem coleira, podia receber uma intimação. Os policiais passavam de lambreta, de manhã, procurando confusão — cavaleiros azuis de armadura de plástico. Eles caçavam garotos cabulando aula e passavam o dia multando carros estacionados em local proibido. Comecei a pegar o metrô para o Village em Manhattan. A primeira vez que fui para a cidade, desci na Roosevelt Avenue e tive que perguntar para uma pessoa ao meu lado na plataforma como chegar no Greenwich Village. Me achei um idiota, mas estava indo na direção certa. Era fácil. Eu só precisava pegar o trem F. Era uma época legal em Nova York. Eu tinha lido sobre a cena do Village na revista Hit Parade, e por isso já sabia mais ou menos para onde ir. Fui checar o Night Owl, mas não era mais um clube de rock — eles só vendiam pôsteres em day-glo. Então fui até o Café Wha, que estava totalmente pintado com tinta dayglo. Era lá que você podia ver bandas como os Raves, o Cherry People e o Kangro. Embora estivessem virando uma grande influência para a cultura jovem, as drogas ainda eram mais ou menos misteriosas. No Village a mensagem era “ligue-se, sintonize-se e caia fora”, mas no começo eu não sabia onde conseguir. O Café Wha era o lugar onde Jimi Hendrix tinha iniciado a psicodelia, mas a atmosfera lá dentro era tão acolhedora que, quando havia uma boa banda

tocando, eu me sentia totalmente satisfeito, não precisava de mais nada. Um mês depois de nos mudarmos para Nova York, tomei meu primeiro tablete de ácido. Encontrei meu novo amigo, Egg, no Queens Boulevard e tomamos um Blue Flat cada um. Nossos outros amigos nos perguntaram se já tínhamos tomado aquilo antes, e nós dissemos: “Claro que sim”. Foi uma viagem linda, e no dia seguinte, quando voltei para casa, até minha mãe parecia de bom humor. Mas foi ela que começou. “Douglas, você parece ótimo. Por que está tão alegre hoje? O que você tem?” “Ah, mãe, sei lá”, eu disse. Aí deixei escapar: “Ah, eu só tomei um pouco de LSD ontem à noite com o meu amigo Egg e ainda estou viajando. Eu estou me sentindo maravilhoso. Até o cereal parece lindo. Fico imaginando o que tem nesses flocos de milho.” “Bem”, disse ela, “vamos ouvir o álbum novo do Jimi Hendrix, Are You Experienced?. Então terminei o café da manhã e enrolei um baseado. Não senti vontade de dormir. Eu precisava ir para o Daitch Shopwell - um supermercado na 108th Street onde eu tinha acabado de encontrar um emprego — em algumas horas, e por isso simplesmente fiquei ali, viajando, até minha mãe sair para trabalhar. Eu só queria saber de arranjar um pouco de heroína com meus amigos do trabalho para me acalmar do ácido. LSD era divertido. Tomei centenas de vezes, mas não era realmente o meu negócio. A heroína é que batia. Desde o começo eu senti que o grande problema dos narcóticos é que eles tendem a levar ao crime. Quando você usa heroína, pega o hábito e termina escravo da droga. Mais cedo ou mais tarde começa a viver uma vida dupla e a mentir para conseguir drogas e dinheiro até ser consumido, mais tarde, pela experiência toda e adotar uma nova identidade de criminoso desajustado. Depois que a heroína pega, você acaba fazendo qualquer coisa, legal ou ilegal, para conseguir uma dose.

Eu tenho uma mentalidade tão fraca e delinquente que minha nova identidade de criminoso consistia basicamente em me associar aos bandidos da área, como meu amigo Jeff, que já estava fazendo roubos a mão armada e arrombamentos com um outro cara chamado Ricky e os amigos dele. Jeff era um garoto grande e forte para a idade. Nunca o vi roubar ninguém, mas ele ia ao supermercado e nos mostrava o dinheiro que tinha conseguido. Depois ele escondia umas fatias de carne na jaqueta e simplesmente saía andando. Não dava para discutir com ele, mas era um cara legal. Mais tarde ele encontrou Jesus durante uma viagem de ácido. Depois disso Jeff decidiu que não queria mais roubar, especialmente com a gangue dos amigos de Ricky. Mas Ricky dizia que Jeff estava envolvido demais e que era muito arriscado deixá-lo sair. Aí o que eles fizeram foi levar Jeff para a ponte do Flushing Meadows Park e matá-lo. Bateram nele e o apunhalaram várias vezes, mas por algum motivo ele se recusou a morrer. No fim, todo mundo foi embora, deixando Jeff caído na grama, sangrando até a morte, foi isso. Acho que morrer sozinho foi a única paz que ele teve. Deu a impressão de que ele não merecia morrer daquele jeito. Forest Hills era um bairro moderno, mas só no centro da cidade tinha heroína, então eu ia comprar em Manhattan, nas áreas dos hotéis baratos e às vezes no chafariz do Central Park. Eu comprava meio carregamento do meu fornecedor, no parque, todos os dias, por 24 dólares. Nessa época a heroína vendida nos Estados Unidos vinha da França. A droga chegava nuns envelopes de papel glassine e era malhada com quinino. Sempre achei que a heroína dessa época é que era a boa. Depois ela nunca mais foi a mesma. Aquela era forte, fazia você se coçar e apagar. Meio carregamento equivalia a quinze papelotes de dois dólares cada. Se eu vendesse, ficava com três, mas se eu quisesse poderia conseguir três dólares por cada um no Queens, de modo que eu sempre vendia para os amigos. Quando eu

voltava para Forest Hills, ganhava um dinheiro razoavelmente bom. Já dava para ver os Estados Unidos mudando, mesmo mal tendo chegado. Muita coisa legal acontecia. Tudo estava ficando mais livre. No Central Park, nos fins de semana, começaram a aparecer uns caras empurrando carrinhos de supermercado cheios de latas de cerveja no gelo. Dava para comprar cerveja. Gelada. No meio do parque. Traficada como heroína, Nas lojas de bebidas começaram a vender vinho com gosto de refrigerante, para que as crianças pudessem beber. As coisas começaram a ficar mais perigosas. A gente via gangues de rua, tipo os Savage Nomads, aparecendo nos subúrbios, onde nunca tinham sido vistas. Agora estavam surgindo com força. Um dia os Nomads apareceram no parque para brigar com uma outra gangue, do South Bronx. Os caras eram violentos. Só sabiam falar uma coisa: “Vá se foder”. Numa outra vez, vi alguns deles brigando com um traficante de heroína que estava sentado perto do chafariz em forma de concha. Eles o espancaram feio com uns tacos de bilhar. Como se não bastasse, começaram a bater também no dobermann dele. Naquele verão, vi um cara com uma tatuagem de Jesus no ombro. Eu tinha uns dezesseis ou dezessete anos e nenhuma tatuagem. Em 1969 uma tatuagem como aquela era algo realmente esquisito. Não tinha nada mais fora-da-lei. O máximo do “não enche o meu saco”. Depois eu fiz aquela mesma tatuagem, como modo de dizer que eu estava cheio de ter que me conformar com tudo só porque os Ramones tinham um visual. Quando fui fazer terapia, aquilo quase me fez sair no tapa com o dr. Jagger, meu psiquiatra. Precisei convencê-lo. Que palhaçada! Eu, um adulto crescido, lutando para que ele me deixasse fazer uma coisa idiota como aquela. Acho isso louco até hoje.

Mil novecentos e sessenta e nove foi o ano do verão do ódio. Aquela não foi, para mim, a época de ver o Jefferson Airplane na concha acústica do Central Park e tomar LSD. Eu ficava num banco de parque bebendo vinho e cheirando papelotes de heroína. Fico imaginando se não existia algum plano sistemático de algum país para foder as pessoas nos Estados Unidos. Deixar a heroína entrar no país de propósito para foder otários como eu, que eram vistos como fardos da sociedade. É fato notório que a CIA estava do lado dos barões do ópio, e portanto eles não iriam simplesmente se vender aos chineses e virar comunistas. E também porque é muito lucrativo — droga é dinheiro. E de onde vinham aqueles biscoitos de metadona sabor laranja? Simplesmente faziam parte do acordo? É muito deprimente ter dezesseis anos e já saber que nada vai mudar. Eu achava que os Estados Unidos eram a terra das oportunidades iguais, mas eu não tinha as oportunidades dos outros garotos de Forest Hills. Nós estávamos todos fodidos, mas a minha situação era ainda pior. Eu já tinha largado o colégio, o que era um péssimo sinal em Forest Hills. O segredo da sobrevivência parecia ser a faculdade, mas eu já tinha me diplomado para o meu papel na vida — a de um deslocado social. Eu não podia fazer muita coisa a respeito. Hoje não penso mais nisso, mas naquela época eu queria subir a escada do sucesso. Pelo menos um pouco. Não achava mais que o supermercado merecia o meu talento. Mas também não conseguiria viver com 35 dólares por semana, e por isso, depois de procurar no New York Times por algumas semanas, acabei aceitando um emprego numa seguradora chamada Employers Insurance of Warsaw ou alguma coisa horrível desse tipo. Eu gostava de trabalhar lá, entregando todos os dias a correspondência no escritório.

Parte 2 BLITZKRIEG BOP! Fruto proibido No começo dos anos 70 eu já não estava mais tão interessado em Forest Hills ou nos meus antigos redutos como o Café Wha ou o Fillmore East. À cena tinha se mudado para a midtown Manhattan e o Upper West Side. A disco music estava a toda, e com ela vieram as roupas glitter. A moda da época era aquela coisa dos filmes “super nature”, como Shaft e Superfly. Os clubes legais eram o Sanctuary, o Tamerlane e o Superstar. Eram clubes movidos a Harvey Wallbanger e Quaalude — lugares para ficar até amanhecer. Eu saía à noite e trabalhava naquela portaria durante o dia. Antes de ir trabalhar, tomava um café, comia um pãozinho com manteiga da Chock Full o'Nuts e levava uma cópia do Post e alguns baseados frouxos para vender para os outros caras que trabalhavam na portaria. Às vezes eu injetava heroína puríssima no músculo para aguentar a pressão. Depois comecei a injetar nas veias principais. As marcas viram uma espécie de tatuagem — não importa se você planejou isso ou não. De vez em quando, para sustentar meu viciozinho em heroína, eu esvaziava o compartimento de moedas da máquina de refrigerantes do trabalho para economizar dinheiro, ou pegava metrô em vez de táxi quando ia fazer alguma entrega para a empresa. E também vendia heroína para os meus amigos. Eu me sentia transcendendo e me tornando uma espécie de Jesus negativo. Ninguém mais queria me ver em Forest Hills. Tudo bem. Todo mundo ia acabar me importunando por causa da heroína mais cedo ou mais tarde. À noite, em vez de ficar nos parques da área do Queens, comecei a virar madrugadas andando por Nova York. Lugares perto da 48th com a Lexington ou perto da Central Park West,

como o Forbidden Fruit, uma casa de sucos para jovens delinquentes aberta de madrugada — um lugar moderninho num endereço inesperado. As garotas que iam para lá geralmente trabalhavam em casas de massagens e cuidavam de executivos em horário de almoço ou depois de sair do trabalho às cinco. Essas garotas iam para o Fruit para se divertir com seus cafetões. O clube ficava cheio de garotos hispânicos e italianos dançando o hustle e o bump. Todos os garotos que iam para lá tentavam parecer cool e ficavam sempre procurando encrenca. Nos poucos meses em que existiu, o clube presenciou duas grandes brigas de rua. Quando o clube estava fechando, as pessoas começaram a se aglomerar do lado de fora, na calçada. Os caras quebraram antenas de carro e sacaram suas facas 007 — desde sempre uma das facas prediletas de Nova York. Todo mundo estava usando sapatos plataforma e roupas glitter-disco, tornando tudo meio teatral. A ação foi impressionante de tão rápida. Uma das gangues desceu a rua correndo, atacando os caras do outro lado. Estes revidaram e dispersaram o inimigo. Aconteceu na rua, entre os carros estacionados, não na calçada, e todo mundo estava aglomerado num espaço pequeno. Não dava para prever o que ia acontecer, de tão rápido e cheio de gente. Quando terminou, como sempre, alguém estava caído no asfalto. Numa outra vez, do lado de fora do Pruit, vi um esquisitão grande e tagarela sendo esfaqueado. O cara não deu o menor sinal de que ia lutar ou coisa que o valha. Ele simplesmente apunhalou o sujeito e saiu correndo. O esquisitão ficou ali, gemendo — “Ele me apunhalou quando eu estava saindo!” Era bom quando dava para sair do Pruit na hora em que fechava, passar direto por todos os outros tipos esquisitos e entrar em algum carro fúnebre estacionado por ali. Aí dava para deitar no caixão, fechar a tampa e pegar uma carona para algum outro lugar. Era melhor do que tentar ir a pé para a ponte da 59th Street e pegar o ônibus para o Rego Park com uma garota

qualquer do Flushing que acabou de tirar os sapatos e jogá-los fora. Ela está realmente doida de Quaaludes e não consegue andar direito. É muito para mim. Ela é simplesmente pesada demais para mim, e também não estou na minha melhor forma. Então, quando o público do Fruit vai embora, eu também vou. Ao sair, viro para ver o que ela está fazendo, e ela coloca o dedo em riste e faz uma careta de “vá se foder, mané!”. Ela não vai fazer nada, e concluo que é melhor deixá-la sozinha. Volto para o Queens, e isso não é fácil depois de uma noite de sexta-feira no Fruit. “Graças a Deus é sábado”, penso. Ao passar pela Jumping Jack Flash, mostro o dedo do meio. Aquilo me deixa puto, porque é a loja onde comprei meus sapatos plataforma brancos de salto baixo — mas eles estão me matando. Quero voltar para casa. O ônibus me deixa no Queens Boulevard, perto do Rego Park, o que é uma bosta. Não quero nem pensar na caminhada do ponto de ônibus até o apartamento da minha mãe, Ela mora na 66th Road, perto da Hermits House. É uma longa caminhada, e eu estou de sapatos, calça de cetim e camisa com glitter. Meus pés estão doendo e estou cansado. Só mais um esquisito nesta cidade enfumaçada tentando reconhecer o novo dia. O sol não aquece. Não é um sol inocente como o do interior do estado de Nova York, no campo, numa manhã de sábado. Em vez disso o sol vem opaco, tentando não ser visto. Eu me sinto mais confortável no escuro, escondido perto dos metrôs, embaixo dos prédios que se erguem sobre Manhattan. Ele me dá uma sensação confusa, que é como eu me sinto em relação à tecnologia moderna. Tenho uma longa caminhada sem ter para onde olhar. Tudo bem. Não me irrito. Pessoas como eu supostamente não vão para lugar nenhum. Quando existe uma certa paranóia no ar, tudo bem. Como poderia não ser assim? Não quero exatamente ir para casa. Não quando estou desprevenido — sem heroína, sem dinheiro e entrando em abstinência.

Então, assim que entro no apartamento, minha mãe começa a gritar comigo, e eu estou tremendo de frio, mesmo sendo verão, passando mal por precisar de heroína e sem a menor disposição para ouvir merda de ninguém, muito menos dela. Minha mãe não parece ter consciência de que a coisa pode ficar preta. Ela está tão acostumada com isso que sempre reage do mesmo jeito: pega uma panela de espaguete velho do forno e a atira em direção à minha cabeça, manchando a parede de molho de carne apodrecido. “Para com isso, retardada!” gritei. “Isso aí na parede poderia ser o meu cérebro em vez do espaguete”. Era a desculpa de que ela precisava para alucinar completamente. “Canalha! Voltando para casa drogado! Eu vou te matar!”. Minha mão pegou minha guitarra Echo de estimação pelo braço, a ergueu acima da cabeça e começou a destruir a casa inteira, quebrando os móveis e tudo — as lâmpadas, os discos, a vitrola. Durante todo o tempo que durou a demolição do apartamento, ela ficou berrando: “Eu te odeio! Eu te odeio! Eu vou te matar!”. Depois começou a gritar: “Você é igualzinho ao seu pai!”. Aquilo me deixou muito puto. Mas eu não tinha mais medo dela, especialmente porque meu pai ainda estava em Berlim. Resolvi, por isso, atacá-la como faria meu pai, e pela primeira vez gritei com ela e devolvi o xingamento. “Sua bruxa velha alemã! Sai daqui, sua puta, sua vagabunda!”. Achei que ela ia se cagar inteira. Pareceu muito assustada e saiu. Foi direto para a porta. Eu nunca tinha visto minha mãe tomar uma decisão tão rápido. Nunca. Mesmo sendo o apartamento dela, por um momento achei que ela tinha feito a

coisa certa. Eu não aguentava aqueles berros e ofensas, e por isso fiz com que ela provasse do próprio remédio. Eu não era mais uma criança inocente e indefesa, e portanto ela realmente corria risco. Nunca lhe pedi nada, ela era louca demais. À essa altura eu era um inútil viciado e cheio de ódio. Acho que minha mãe percebeu isso e saiu correndo de medo. Eu queria ter dado um soco na cara dela. Em vez disso, peguei a Echo e detonei o resto do apartamento. Depois joguei a guitarra quebrada pela janela da sala de estar, abri a porta — com tanta força que ela desmontou — e fui embora. O que mais eu podia fazer? Levar minha mãe para a ponte do Flushing Meadow Park? Mas quando eu me enfurecia com alguém, pulava no pescoço. Achava aquilo normal. Como você acha que entrei nos Ramones, a tal coluna de ódio branco?

O garoto encontra Johnny Quem entra numa banda como os Ramones não vem de um passado estável, porque essa não é uma forma de arte muito civilizada. O punk rock é feito por garotos furiosos querendo ser criativos. Acho que é por isso que os caras dos Ramones eram conhecidos por jogar, de apartamentos, TV's nas pessoas que estavam andando na rua. Nós odiávamos especialmente velhinhas voltando do supermercado e empurrando carrinhos cheios de alimentos. Em Forest Hills você encontrava TVs usadas na calçada todo dia, quando os zeladores da área colocavam o lixo para fora, na rua, para ser levado na manhã seguinte. Era ótimo. Quando atingiam a rua os tubos catódicos explodiam no concreto e faziam as pessoas cagar de susto. Era uma coisa para fazer. Quando você tem dezesseis anos e está furioso e entediado, é preciso muita criatividade para se animar. Como aquelas árvores de natal velhas e secas que os zeladores deixavam nos porões depois das festas de fim do ano. Os garotos do meu bairro entravam lá e

botavam fogo nelas. Depois corriam de volta para a rua e ficavam dando risada. Nessa época eu tinha me tornado um maníaco-depressivo. Estava sem esperanças. Só conseguia rir às custas dos outros e me alimentar de negatividade. Hoje vejo que era inteiramente natural que eu gravitasse em direção a Tommy, Joey e Johnny Ramone. Eles eram os desajustados óbvios do bairro. Todos os amigos deles tinham que ser desajustados. Ninguém jamais apostaria em qualquer um de nós como candidato a qualquer tipo de sucesso na vida. Mas é assim que as coisas são. Os Ramones eram a elite da classe rebelde do Queens no fim dos anos 60 e começo dos 70. Definitivamente não eram aquele tipo de aluno de colégio que vai cursar a universidade. Em vez de ir para a escola e fazer o dever de casa, nós gostávamos de zoar e de inventar histórias. Éramos um bando de criaturas do submundo mal-comportadas. Nós achávamos os deficientes físicos divertidos, porque dava para zoar com eles — dava sorte, por exemplo, passar a mão em cabeça de anão, especialmente se o anão fosse careca. Eu era excêntrico o bastante para ver alguma lógica em superstições desse tipo. Se eu fosse andar com alguém em Forest Hills tinha que ser com um tipo excêntrico ou coisa pior. Conheci Johnny Ramone na parte alta da 66th Road, perto da Hermits House, John estava entregando roupa limpa da lavanderia onde trabalhava. Era seu trampo em tempo integral. Depois ele trabalhou como pedreiro no número 1633 da Broadway, mesmo prédio onde eu cuidava da correspondência. O cabelo de John era bastante comprido naquela época, Descia até a cintura, como o de Mark Farner, do Grand Funk Railroad. Usava calça jeans tingida, faixa tingida na testa e os mesmos Keds baratos que continuou usando depois que a banda ficou famosa e nós ganhamos dinheiro. John sempre foi muito simpático comigo, e nós falávamos sobre guitarras, amplificadores e coisas desse tipo. Contei para ele

uma história fantástica sobre o equipamento que eu tinha, provavelmente como a que Bill Wyman deve ter contado para Mick Jagger e Keith Richards para entrar nos Rolling Stones. Eu disse que tinha um stack twin da Sound City e um amplificador com revestimento e gabinete de 36 polegadas. Na verdade eu tocava meu baixo “Beatle” Hoflner no amplificador de um amigo meu. Era um Ampeg muito velho, com alto-falante de dezoito polegadas. É difícil descrever aquele amplificador. Era meio embaraçoso. Ninguém sabia dizer o quanto o som era bom, de tão estranha que era a aparência. Estourei meu Vox Pacefinder, ou Escort, ou sei lá qual era o nome — um amplificador de dez watts com um alto-falante de oito polegadas. Eu guardava o Vox no apartamento da minha mãe, mas estava detonado de tanto que eu usava o efeito boss para deixar o som mais sujo. O Who tinha acabado de tocar no Central Park, e John e eu gostávamos deles na época. Pete Townshend tinha destruído todos os seus amplificadores Sound City. Mais tarde, Townshend passou a usar aqueles amplificadores legais da Sunn, como os dos Stooges. John é uma pessoa de grande força de vontade. Foi um dos primeiros amigos que fiz quando me mudei para os Estados Unidos, e nossa amizade era baseada na música. Da primeira vez que disse para John que os Stooges eram meu grupo favorito, ele respondeu que também gostava dos caras. Não acreditei. Tinha alguém em Forest Hills que gostava dos Stooges além de mim. Um milagre. Para mim os Stooges eram a banda de rock'n'roll| mais original que existia. Eram os melhores. A banda original, com Iggy, Ron e Scott Asheton e Dave Alexander. Eles eram muito, muito esquisitos. Esquisitos é a melhor descrição. Eram os reis da esquisitice. John sempre esteve muito à frente do seu tempo. Ele não tinha preconceitos musicais e experimentava de tudo. Mas tinha os gostos dele. Gostava de rock provocante, barulhento e grosseiro. Era mais velho do que nós e parecia também saber de muitas

outras coisas. Ele nos contava histórias podres, tentando nos deixar mais espertos, mas nós não entendíamos. Contava coisas como a vez em que viu os Yardbids no Anderson Theater e o primeiro show dos Rolling Stones na Academy of Music. Tinha jogado pedras nos Beatles quando eles tocaram no Shea Stadium, John gostava também de Ted Nugent, do MC5 e do Black Sabbath. Ele tinha visto o primeiro show do Black Sabbath em Nova York, no Steve Paul Scene. Nós dois adorávamos Jimi Hendrix. John o tinha visto tocar no Café Wha em 1966 ou 1967. Disse que tinha sido uma experiência incrível. Aparentemente Jimi tocou uma guitarra completamente quebrada numa das extremidades, o que não o incomodou nem um pouco. Quando uma das cordas arrebentou ele não parou de tocar. É difícil trocar as cordas de uma Stratocaster em qualquer situação, mas Hendrix conseguiu colocar uma corda nova na guitarra enquanto estava tocando. No fim, jogou a Strat, por cima da cabeça, num twin Fender, e ela se partiu em duas. Aí ele sussurrou no microfone que todo mundo tinha que ir vê-lo tocar no Central Park no dia seguinte. Ele ia abrir para os Young Rascals, e disse que ia fazer o show para poder comprar uma guitarra nova. Johnny Ramone nunca quebrou uma guitarra. Nem pensaria nisso. Descobriu uma de que gostava e continuou tocando sempre a mesma. Uma Mosrite, como a dos Stooges. Exceto pelos afinadores Strobe, Johnny nunca se deixou estragar. Aproveitava o máximo do que tinha. Era isso que eu admirava nele naquela época. Ainda assim é meio estranho tocar música podre numa Mosrite, que deveria ser, na verdade, uma guitarra de surf music. Por algum motivo essas guitarras são boas de tocar com efeitos fuzz e coisa e tal. Elas também combinam bastante com cortes de cabelo tigelinha. John sempre fazia as coisas do jeito dele. Tinha um alto-falante grande no amplificador da guitarra e um gravador pequeno da Sony, e por algum motivo aquele era o aparelho de som dele.

Richie Stern e ele tinham muitas fitas — eles conseguiam entrar com gravadores nos shows e faziam fitas das bandas. Pirateavam algumas coisas para nós, como o MC5 ou os Stooges tocando. Richie morava em Lefrak City. Era uma pessoa muito especial, grande fã dos Stooges — um balconista de supermercado muito louco e viciado em heroína, Tocava fitas dos Stooges para nós e fazia imitações de Iggy à luz de uma TV ligada. Depois cantava umas coisas para a fita. Eu ficava sentado no chão, observando, admirado. Richie era um esquisitão, no começo queríamos que ele fosse o baixista dos Ramones. Fizemos um ensaio com ele, mas o cara se recusou a entrar na banda porque tinha começado a trabalhar na OTB. Em sete meses tinha 3 mil e quinhentos dólares na conta bancária. Nada mau para um desajustado de dezoito anos de Lefrak City.

Minha casa é o inferno Deparar-se com Joey Ramone, naquela época, em Forest Hills, era uma estranha visão. Joey era muito alto e usava um penteado afro vermelho inspirado em Jimi Hendrix. Era chamado de Explosion e era o tipo de penteado que você podia fazer no Paul McGregor's, no East Village. Joey parecia um drogado. Em geral ele podia ser visto usando uma jaqueta amarela de camurça com franjas da Paul Sargent's, calça de veludo cotelê da Naked Grape, mocassins em vez de tênis e aqueles bizarros óculos redondos coloridos que sempre usou. Joey era meu colega de bebedeira. Nós comprávamos uma garrafa de vinho, colocávamos num saco de papel e sentávamos numa varanda para beber. Minha mãe gostava muito dele, o que é estranho. Ela ficava toda animada sempre que ele aparecia para ver se eu estava em casa. Sempre me dizia: “Ah, o Joey passou por aqui” — coisa que eu jamais saberia se fosse uma outra pessoa. E sempre me fazia perguntas sobre ele. Eu dizia

que não sabia. Depois fiquei surpreso quando ele se mudou para um apartamento só dele na Union Turnpike. Eu não entendia como ele tinha conseguido. Havia também Ira Negel, um dos nossos amigos de Forest Hills. Ira era baixista e tinha uma jaqueta perfecto marrom de motoqueiro. Era um sujeito grande, tipo monstro-de-bomcoração. Tinha uma cara gorda e vivia reclamando. No fim ele não pôde entrar na banda — a mãe dele não deixou. Mas na verdade a mãe de Ira era legal, então, tudo bem. Ela não ligava quando a molecada inteira ficava no apartamento dela fumando maconha em vez de ir para a escola. Havia também o misterioso Tommy Ramone. Naquela época ele se chamava Scotty. Scotty era um nome inventado, como Dee Dee. Tommy tinha muita imaginação. Talvez o fato de ele ter vindo da Hungria o tenha feito dar valor às coisas simples — ele certamente tinha mais gratidão do que a maioria das pessoas. Eu era mais autodestrutivo. Não conseguia ver um motivo para fazer uma coisa funcionar se eu pudesse quebrá-la. Durante um tempo, morei com Tommy no apartamento de Debbie Harry. Era impossível não admirar o modo como Tommy dava importância à necessidade de sobreviver de maneira decente, humana e racional, ao contrário de todos os outros do nosso grupo de amigos. Ele ia para o supermercado, comprava carne para hambúrguer e batatas e cozinhava, tentando fazer uma refeição, enquanto eu ficava deitado num colchão, com meio pint de licor de amora silvestre, vendo Tommy cozinhar. Eu simplesmente não conseguia me imaginar fazendo aquilo — esqueça. Mas era bom que um colega de quarto fosse daquele jeito, e não igual a mim. Aos dezessete anos Tommy, já tinha passado por várias tragédias. Dizem que uma gangue de garotos de Forest Hills tinha submetido Tommy (Scotty) a alguma experiência humilhante, e que depois disso ele se tornou muito nervoso. Uma vez ele insistiu para que nós nos levantássemos da mesa e

saíssemos de uma casa de panquecas, em Long Island, sem terminar de comer. Ninguém entendeu o motivo. Ele tinha uma namorada chamada Claudia, e os dois fumavam muito. Ninguém queria que eles fumassem na van. Depois de um tempo, Tommy já não aguentava mais passar dez horas na van sem um cigarro, mas a gente não queria ceder. Um dia ele simplesmente disse: “Esqueça esses caras. Sai fora. Vou fumar onde eu quiser”, Forest Hills começou a me deixar nervoso também. Chegou ao ponto de eu ter que tomar uns copos de vinho tinto e beber um pint de Gallo antes de descer a 108th Street e ir para o apartamento dos pais de Richie, em Lefrak City. Eu me satisfazia completamente cheirando um tubo de cola ou uma garrafa de Carbona — ficava doidão. Quando dava o barato eu ligava para certos números de telefone para ouvir o “bip bip bip”. O som ficava parecendo “buzz buzz buzz buzz”. Às vezes alguém voltava do supermercado trazendo latas de chantilly roubadas. Nós cheirávamos o gás das latas de chantilly para aumentar o efeito da Carbona e da cola. Até que um dia os Stooges vieram para Nova York. Saiu um anúncio no Village Voice dizendo que eles viriam. Fizeram um show no Electric Circus, que ficava onde hoje acontecem as reuniões dos Narcóticos Anônimos da St. Mark's Place. Fui ao show dos Stooges com minha namorada, Linda, meu amigo Egg e a namorada dele, Bennie. Iggy parecia não gostar de Nova York. O cara deu um esporro em todo mundo. Entrou com muito atraso, porque ficou injetando heroína atrás do palco e não conseguia encontrar uma veia para o pico. Iggy era famoso pela coleira de cachorro, pelas luvas prateadas até o cotovelo e pela calça vermelha, mas, quando finalmente entrou no palco, estava só de cueca. Derramou uma lata de tinta prateada na cabeça e começou a rolar no chão,

sobre uma poça de glitter, Depois, vomitou no palco e ficou deitado em cima, se esfregando no vômito. Scott Asheton, o baterista dos Stooges, usava uma jaqueta de motoqueiro com um símbolo nazista grande pintado nas costas. Eles eram barulhentos e furiosos. Era uma grande idéia. Naquela noite, eles tocaram a mesma música durante vinte minutos. De vez em quando paravam. Então Iggy gritava “segura essa!” e eles começavam de novo. A música tinha apenas dois acordes e as únicas palavras da letra eram “I want your name, I want your number”. Aí alguém gritou: “É o fantasma do Mick Jagger!” Iggy deve ter ficado ofendido com o comentário e saiu do palco. Os Stooges não voltaram para Nova York por um bom tempo. Meu primeiro carro foi um Fusca. Eu ainda morava em Forest Hills e economizei o dinheiro trabalhando na portaria de um prédio. Richie Stern, Johnny Ramone e eu trabalhávamos. Nós batalhávamos para economizar dinheiro. Era a nossa pequena vingança da sociedade. Minha mãe ficou feliz quando soube que eu queria um carro. Deve ter pensado que eu a levaria para Rockaway Beach no verão ou qualquer coisa assim e sugeriu que eu escrevesse uma carta para o meu pai pedindo o dinheiro. Escrevi, e ele me respondeu com uma carta do tipo “vá se foder”. Aquilo foi o fim entre mim e ele. Ele era um filho da puta inútil e eu o odiava, mas não sei o que tinha na cabeça quando pedi a ele para comprar um carro para mim. Meu Deus, que coisa idiota. Minha mãe foi idiota de sugerir isso. Eu estava sozinho, como sempre; fui até uma banca de jornais na 66th Road, perto do cinema Trylon, e comprei um exemplar do Buy Lines. Procurei pelos carros importados na Seção de Veículos. Egg tinha me aconselhado a comprar um Dodge Dart ou um Chevy Nova, mas nem dei atenção. Eu ia fazer as coisas do meu jeito, mas não entendia nada de carros. Tinha carteira de

motorista, mas ainda não sabia dirigir. Não sabia encher o tanque do carro, trocar pneu ou abrir o porta-malas ou o capô. Nada. No meu exame de habilitação a policial ficou com tanta pena de mim que nem exigiu que eu fizesse o exame. Ela me aprovou e me dispensou dizendo: “Tenha um bom dia, garoto”. Anos depois eu a encontrei. Estávamos os dois meio altos. Foi num bar. Começamos a conversar e ela confessou que só tinha me aprovado por esperança de que eu morresse num acidente de carro e desse um fim àquela minha vida infeliz um pouco mais cedo. “Cara, que pena que você ainda está vivo!”, acrescentou. “Eu sei. A vida tem sido difícil, tanto para mim quanto para você”, respondi, e depois saí do McCann's Bar & Grill e peguei o trem e na Lexington Avenue para voltar para o Queens. De vez em quando seria bom pegar um táxi em vez do metrô, para não falar em ter um carro. Que vida dura. Hoje eu sei que devia ter ouvido meu amigo Egg e comprado um Chevy Nova ou um Dodge Dart, mas comprei um Volkswagen. Ele já estava todo fodido quando o comprei, de um cara de Elmhurst. Ao voltar para Forest Hills descobri que tinha entrado numa fria quando tentei dar a partida de novo e o filho-da-puta não quis me obedecer. Fui direto para o telefone e liguei para Tommy, porque ele era especialista em tudo. Um pouco depois, Tommy estacionou seu Dodge Dart na frente do meu Volkswagen. Aí acabou recarregando minha bateria. Quando ele foi embora, fui até um lava-rápido no Woodhaven Boulevard. Parei na entrada e dei o dinheiro para o cara. Eu não sabia o que fazer; o atendente não falava inglês e não conseguiu me explicar. Então entrei direto no túnel com o carro. Estava completamente escuro e eu bati de frente contra as escovas giratórias, o que fez o carro sair da esteira e quebrou o pára-brisa. Todos os jatos de sabão esguicharam dentro do carro. Foi uma coisa meio séria. Eu tinha acabado de fumar maconha

Mowwie Wowwie e estava chapado. O Volkswagen rolou túnel adentro, girando para fora da esteira, e eu acabei batendo a cabeça e perdendo a consciência. Não sei como, mas de algum modo consegui que eles tirassem a espuma de sabão com um aspirador e trocassem o pára-brisa quebrado por outro, de um Volkswagen velho. Ainda assim ficou frouxo, mas eles também recarregaram a bateria para eu dirigir o Fusca de volta para Forest Hills, onde estacionei na frente da Hermits House. De vez em quando Tommy, John e eu íamos com Jeff Salem, um amigo de Tommy, a alguns clubes de Long Island e a um bar chamado Nobodies, na Bleecker Street, no West Village. Às vezes, íamos no Chevy Nova de Tommy, mas, como eu tinha um carro, todo mundo queria ir nele; então, numa noite de sextafeira, eles se encontraram comigo na frente da Hermits House. Eu não sabia, mas Tommy estava chapado. Depois de alguns quarteirões todo mundo me fez encostar o carro. Discutiram alguma coisa rapidamente. Tommy saiu do Volkswagen, deu uma volta em torno do carro e assumiu o volante. Foi como uma descida de montanha-russa pelo Queens Boulevard. Todo mundo estava chapado e gritando. Johnny Ramone tinha colocado o Live At The Electric Circus dos Stooges a todo volume no tocafitas. Depois, na altura da ponte da 59th Street, Tommy ficou com o rosto vermelho. Estava exaltado. “Dá para vocês abaixarem a música?”, disse Tommy. “Eu estou tendo uma viagem de LSD. Essas músicas dos Stooges estão me deixando pirado. Assim eu vou acabar saindo da pista com o carro”. Foi como um sinal para que as coisas piorassem. “Que foi, Tommy? Você não gosta dos Stooges?”. Ho, ho, ho. Acendi um baseado de Chiba Chiba Colombian Gold. Eu estava me divertindo — até que senti um cheiro de borracha queimada. Era o carro, e não a maconha. O carro estava pegando fogo. A parte elétrica tinha queimado e estava saindo

fumaça do motor, que, nos Fuscas, é na parte de trás. Todo mundo começou a gritar de alegria. Dois minutos depois o carro parou completamente. Como o resto da ponte da 59th Street é uma descida, conseguimos chegar em Manhattan. Deixamos o carro na calçada, onde ele havia acabado de arrebentar uma das janelas da Bloomingdale's da 59th com a Third, esmagando fatalmente os manequins na vitrine da loja. Continuamos a viagem pegando o trem F, na 53rd com a Lexington, até a 8th Street com Sixth Avenue. Depois me mudei para Manhattan, porque é muito chato ficar indo e voltando do Queens à cidade. Consegui um pequeno apartamento num prédio sem elevador na 85th Street com a Second Avenue e arranjei uma nova cadela dachshund, que batizei de Glenda. Quando comecei a usar drogas minha disposição alucinada para manias passou de tiques nervosos, bater em mesas com lápis e fazer sons esquisitos de passarinho para inspirações musicais. Eu me dispunha a usar LSD, speed e fumo, se necessário. De qualquer maneira, minha cabeça era como uma bomba-relógio. Prestes a explodir e com demônios à espreita pelos cantos para me proteger da realidade. Durante toda a minha préadolescência e início da adolescência eu compus assim. Ficava imaginando o wah wah pesado, os feedbacks penetrantes, as melodias vocais e todos os arranjos de bateria de centenas de músicas escritas na minha cabeça. Era tudo mental. Eu arquivava tudo aquilo na cabeça, juntando as partes para formar as primeiras músicas que fiz. Eram músicas de power rock. Minhas habilidades musicais eram limitadas demais, naquela época, para que eu compusesse de outra maneira. Era tudo na minha imaginação. Nenhuma dessas músicas jamais vai ter interesse, mas era um bom modo de fugir, pelo sonho, da prisão do dia-a-dia. Uma das músicas que eu compus nessa época, talvez a primeira, se chamava “I Can't Do It”:

I can't do it I can't do it I can't do it I can't change tomorrow At the stairs to hell I can't change tomorrow I can't do it I can't do it I can't do it I can't hold on to my hand. Tradução Eu não consigo Eu não consigo Eu não consigo Eu não consigo mudar o amanhã! Na escada para o inferno! Eu não consigo mudar o amanhã Eu não consigo Eu não consigo Eu não consigo Eu não consigo segurar minha própria mão Tinha uma outra música assim: Home is where the hell is Home is where the hell is Home is where the hell is And now I am home I am with my friends Having a good time Have a tube of glue

Take a tab of sunshine Home is where the hell is Home is where the hell is Everything's so bright Everything's this way Everything's this way It's going to be alright It's going to be alright Tonight Tonight Tonight! Tradução Minha casa é o inferno Minha casa é o inferno Minha casa é o inferno E agora eu estou em casa Com os meus amigos Me divertindo Cheire um tubo de cola Tome um tablete de sunshine Minha casa é o inferno Minha casa é o inferno Está tudo tão brilhante Está tudo assim Está tudo assim Tudo vai ficar bem Tudo vai ficar bem Hoje à noite Hoje à noite Hoje à noite

Um colapso nervoso sério me inspirou a escrever “Questioningly”, que compus numa guitarra folk e insisti em tocar para minha mãe depois de terminar. “Mãe, mãe”, gritei do corredor para ela, que estava na sala de estar, no apartamento em Forest Hills. “Posso tocar uma coisa para você?” Ela me ouviu tocando; nós estávamos sentados em frente à TV. Percebi que ela ficou muito surpresa por eu ter conseguido compor uma música. “Como você fez isso?”, perguntou ela. “Sei lá”, respondi. Depois escrevi minha primeira música punk, na minha guitarra. Era uma velha K, comprada numa daquelas lojas de penhores da 8th ou 9th Avenue. Eu levava a guitarra comigo para onde quer que fosse - do Brooklyn a uptown Manhattan, de Forest Hills ao Queens. A música se chamava “I Don't Wanna Get Involved With You”. Depois, durante mais ou menos um ano, fiz experiências com alguns projetos musicais variados e comecei também a compor mais músicas. Em pouco tempo fiz “53rd And 3rd”, “Loudmouth”, “I Don't Wanna Go Down to the Basement”, “Now I Wanna Sniff Some Glue” e “I Don't Wanna Walk Around With You”. Elas simplesmente foram saindo. Às vezes eu voltava para Forest Hills para ver Johnny Ramone e Joey. Tentei montar minha própria banda na cidade, mas não funcionou e então respondi a um anúncio publicado na revista de Andy Warhol, Interview, procurando um guitarrista para os Neon Boys, uma banda com Tom Verlaine e Richard Hell - mas não era o que eu queria. Mais tarde, quando Richard Lloyd entrou na banda, formando o Television, eles ficaram muito bons. Quando os New York Dolls começaram a tocar em Manhattan, foi como uma nova beatlemania. Todo maluco da cidade montou sua banda de rock'n'roll. Fiquei muito feliz de ver os New York Dolls

tocando. Eles despertaram uma espécie de intuição rock’n’roll em mim. Achávamos que Johnny Ramone era um bom guitarrista. Ninguém mais achava isso na época. Tommy era muito exigente com relação a esse tipo de coisa e não gostava nem um pouco de Johnny Thunders por causa do estilo dele como guitarrista. Mas eu gostava de Johnny Thunders como guitarrista e compositor. Mas o que mais me impressionava eram as harmonias vocais. Como aquelas harmonias tipo Minnie Mouse em “Chatterbox” — sempre gostei daquilo. Mas acho que só percebi realmente o quanto ele era bom quando surgiram os Heartbreakers. Acho que a imagem dele era tão incrível nos Dolls que eu me esqueci do quanto ele era bom. Antes do fim dos New York Dolls, em 1973 ou 1974, Malcolm McLaren veio para Nova York para tentar salvá-los. Ele fez com que os caras usassem roupas de verniz vermelho e conseguiu que se apresentassem-no Hippodrome, um clube em midtown Manhattan. Num certo sentido, foi o show mais profissional deles, mas não deu em nada — a bebida, as garotas e a falta de sorte já tinham acabado com eles. Depois que os Dolls se separaram, a ceninha rock'n'roll de Manhattan morreu um pouco, e ficou difícil encontrar lugares para tocar. Lenny Kaye, Buzzy Linhart e Patti Smith tocavam no Max's Kansas City, mas era só. Depois surgiu o Television, que preparou o caminho para os Ramones e o Blondie.

Segura essa! Johnny Ramone e eu não tínhamos nenhuma intenção de voltar a tocar em uma banda. Tínhamos passado por experiências amargas nos outros grupos em que tocamos antes dos Ramones. Estávamos satisfeitos simplesmente de pegar o metrô para trabalhar todo dia e ir ao Chock Full o'Nuts e ao Metropole para almoçar, ver as dançarinas e tomar uma cerveja.

Joey tinha uma banda chamada Sniper. Ele estava tentando se destacar no circuito glam nova-iorquino que existia na época — grupos como os Harlots of 42nd Street, o Fast, o Teenage Lust e o Kiss. Tommy (Scotty), Jeff Salem e Monte Melnick tinham também um grupo, chamado Butch, com o baterista do Dorian Zero. O visual glitter exigia um bocado de manutenção, e o equipamento era caro. Nós comprávamos botas de pele de cobra sob medida importadas da Inglaterra pela Granny Takes a Trip de Nova York. Johnny Thunders e Tommy Ramone foram para Londres para comprar as coisas certas e ser os caras mais chamativos da cidade. Johnny Ramone tinha uma réplica exata da roupa de James Williamson, com o mesmo colarinho de pele de leopardo que James usava na fase Raw Power dos Stooges. John tinha também uma calça prateada de lamê da Granny Takes a Trip e a usou nos primeiros shows dos Ramones. Joey e eu íamos de vez em quando para um buraco horrível no Queens Boulevard chamado Gildeas. Toda vez eu ficava muito bêbado. Não sei como Joey me levava para casa. “Casa” significava dormir no chão da galeria de arte da mãe dele, no Queens Boulevard, perto do cinema Trylon. O Sniper, a banda de Joey, ensaiava no porão de um supermercado, Certa vez, Joey comprou frutas e verduras no supermercado e usou para fazer uma pintura. Bateu tudo no liquidificador e pintou — você podia olhar para a pintura ou comê-la. Ele era um tipo bem artístico. Gostava também de gravar trovões num gravador de rolo. Uma vez, fui ver um show do Sniper, quando eles tocaram com o Suicide em algum lugar de Manhattan, Foi uma noite estranha. Eles tocaram um cover de “Let's Spend The Night Together”, dos Rolling Stones. Joey se chamava Jeff Starship naquela época. Peço desculpas por não me lembrar exatamente. Será que era Jeffry Starman? Bom, já faz muito tempo. De qualquer maneira, ele estava usando uma calça de verniz cor-de-rosa, um top de lamê prateado, um boá de plumas cor-de-rosa e botas plataforma

sob medida da Granny Takes a Trip, e cantou ao microfone como se sempre tivesse feito aquilo. Foi muito impressionante. Na primeira vez em que vi Alan Vega e o Suicide, puxei minha faca 007 e a escondi no punho. Para ser sincero, fiquei um pouco preocupado. Se Iggy tinha criado algum Frankenstein, era Alan Vega. Quando Alan se jogou no meio da esparsa platéia, foi um pouco demais para mim. Eu não sabia o que ia acontecer. Ele é um artista muito sério. Depois Joey e eu fomos ao Max's Kansas City para conferir o trabalho do Suicide mais uma vez. Não havia ninguém lá naquela noite a não ser Joey, eu e uma loira bonita com uma roupa sadomasoquista. Seis ou sete minutos depois de começar o show do Suicide ela foi até o lado direito do palco, ao lado de uns alto-falantes enormes, e ficou ali, congelada. O barulho e a atmosfera eram muito tensos. Havia zumbidos e faíscas. Aí a garota resolveu bater a cabeça nas caixas de som, abrindo uma ferida. Começou a sair sangue, mas ela continuou batendo a cabeça, várias vezes, com muita força. Depois, parou e simplesmente ficou ali, com o sangue escorrendo pelo rosto, ouvindo o Suicide. Até que os Stooges voltaram a Nova York para tocar. Agendaram um show no Max's Kansas City, mas foram obrigados a cancelar, porque Iggy, insatisfeito com o modo como as coisas estavam, se jogou pela escada e se cortou feio com uma garrafa quebrada. Nessa época o Ramones estava começando a engatinhar. Como muitos grupos de Nova York, tiramos nossa inspiração vendo os New York Dolls na sala Oscar Wilde do Mercer Arts Center e no hotel Diplomat, na Times Square. Depois que os Dolls se separaram, ainda sobrou um bando de esquisitos que precisava de uma cena. Acho que era natural que Joey, Johnny, Tommy e eu formássemos uma banda. Não fomos exatamente recebidos de braços abertos pela comunidade musical de Forest Hills.

Disseram que nós não sabíamos tocar. Alguns anos depois Johnny Ramone e eu dávamos risada de Doug Scott, um guitarrista do Queens que sabia tocar “Dazed and Confused”, do Led Zeppelin, com dezesseis anos e mesmo assim nunca deu em nada. Eu não sabia sequer tocar “No Fun”, dos Stooges, e conquistei fama e fortuna no mundo da música. Nessa época até Johnny Ramone ficou impressionado por estar acontecendo alguma coisa em Nova York. Um dia, em vez de almoçar no Metropole, fomos até o Manny's Guitar Store, na 48th Street, para ver as guitarras. Quando estávamos descendo a rua, John e eu encontramos Mickey Zone, do Fast. Dissemos a ele que estávamos entrando de cabeça. Acabamos levando um baixo Dan Electro para mim e uma Mosrite azul-bebê para ele. John enganou o pessoal da Manny's como fazia com as garçonetes do Chock Full o'Nuts. Levamos os instrumentos para o Queens — Johnny levou a Mosrite dele espremida numa sacola da Granny Takes a Trip — e foi com eles que nós iniciamos a banda. Tommy e Monte Melnick conseguiram marcar um ensaio para nós nos estúdios Performance, perto do Max's, em Manhattan. Tentamos tirar músicas de outros discos, mas não deu em nada. Até hoje não entendo como nós conseguimos. Eu não fazia idéia de como afinar ou tocar um baixo. Depois Johnny acabou me mostrando as linhas de baixo das minhas próprias músicas, porque eu não fazia a menor idéia de como tocá-las no baixo. Eu só conhecia a nota mi. A formação inicial da banda era eu no baixo, John na guitarra e Joey na bateria. Na primeira vez em que tentamos tocar ficamos esperando Joey se preparar por um bom tempo. Aí simplesmente começamos a tocar. Eu estava tão bêbado que caí para trás, em cima do meu amplificador, que começou a emitir um chiado e depois parou de funcionar. Fizemos nosso primeiro show com o

Fast nos estúdios Performance. Ninguém voltou para o segundo show. Monte ficou de saco cheio porque nós éramos desorganizados demais, mas ele nos deixava voltar uma vez por semana para ensaiar. Depois ele se tornou nosso técnico de som, e, por fim, empresário de turnê — ele não gostava de ser chamado de empresário de estrada. Nosso primeiro empresário, Danny Fields, foi quem deu a Monte o emprego de empresário de turnê depois de nosso primeiro grande show fora da cidade, no Tomorrow Theater, em Youngstown, Ohio, em junho de 1976. Conhecemos Stiv Bators e os Dead Boys naquela noite. Foi uma noite ruim — havia umas dez pessoas no lugar. Danny disse que, se Monte nos desse o dinheiro — 750 dólares, ele poderia ser nosso empresário de turnê. E nós fomos pagos. Joey tinha escrito algumas músicas, como “I Don't Care”, “What's Your Game” e “Here Today, Gone Tomorrow”, e acabou sendo o vocalista principal por saber as letras. Então pedimos a Harry, o baterista do Dorian Zero, para entrar na banda, mas ele não queria tocar com a gente. Os Ramones tinham um buraco, mas nem ligamos. Tommy começou a tocar bateria porque ninguém mais queria fazer aquilo para nós. Foi uma última e desesperada tentativa de salvar uma carreira musical até então fracassada. Tommy completou a formação original. Depois de um dos nossos primeiros ensaios, Tommy e eu fomos conversar no escritório do estúdio. “Que nome você acha que a banda deve ter?”, ele perguntou, “Que tal Ramones?”, respondi. Eu não estava falando muito sério, mas o nome ficou. Aí todo mundo no grupo adotou Ramone como sobrenome e nós nos tornamos os Ramones. O show seguinte foi com o Blondie, que naquela época se chamava Angel and the Snake, e com os Savage Voodoo Nuns. Foi a primeira vez que tocamos no CBGB's, e nós não estávamos muito preparados. Tommy que agendou um show nosso lá. Foi deprimente. Não parecia tão glamouroso quanto o Max's ou o Mercer Arts Center. Quando fomos fazer a passagem

de som, tivemos que tomar cuidado para não pisar na merda de rato e cachorro que havia no chão. Era uma desgraça. Especialmente Hilly Kristal, um cara grande e gordo que era dono do lugar e aparentemente nunca tomava banho. A mulher dele, Karen Kristal, administrava o CBGB's e odiava os Ramones mais do que o próprio CBGB's. Era muito irritante e hostil, Assim que você entrava, o cheiro de cerveja fermentando era tão forte que dava vontade de sair andando de costas. Não havia banheiros, e o público mijava onde estivesse. O primeiro show que nós fizemos foi Ok. O lugar estava cheio de drag queens que não tinham conseguido entrar no Bowery Lane Theater. Elas foram ótimas conosco e nos ajudaram durante o show, fazendo de conta que eram fãs e criando um clima bem de cabaré. O público vaiava, assobiava e batia palmas dramaticamente em todas as apresentações. Deve ter sido muito divertido ter estado lá naquela noite. Os Ramones eram um grupo muito teatral nessa época — como uma peça ao som de uma música barulhenta e podre. Nós tínhamos dois amplificadores Mike Matthews, da Electro Harmonics, instalados em cima de umas cadeiras. Tinham quatro controles e eram bem envenenados. Quando subimos no palco, pluguei meu baixo e tentei enxergar através da névoa macabra e fedorenta do CBGB's. Numa das paredes, perto do palco, vi um pôster feio de Marlene Dietrich em tamanho natural. O público parecia um monte de lanternas de abóboras numa cerca de cemitério no dia das bruxas. Tocamos durante uns quinze minutos; foi um sucesso. Tentávamos emendar uma música na outra. Depois de algum erro, alguém gritava “segura essa!”, eu contava “um, dois, três, quatro” e nós começávamos alguma outra música. No fim do show joguei meu Dan Electro para cima e ele rodopiou algumas vezes e quebrou. Achei aquilo o máximo do glamour.

Connie

Fiquei bêbado depois do nosso show no CBGB's, e, quando estava saindo do clube, às quatro horas da manhã, perto da Bowery, notei uma garota, sentada em cima do capô de um carro velho, lixando as unhas. Gostei dela imediatamente. Ela estava usando um vestido de noite preto e sapatos de salto agulha e tinha uma garrafa de Blackberry Brandy na bolsa. Parecia uma antiga condessa vampira. Seu nome era Connie e sua missão, capturar minha alma. Ela capturou. Passei os anos seguinte dependendo dela, enquanto os Ramones iam ficando famosos sem ganhar nenhum dinheiro. Éramos bem parecidos — totalmente loucos. Ela era tão louca quanto eu. Fomos expulsos de todos os lugares onde moramos, por causa de nossas discussões violentas. Connie tinha um apartamento no primeiro andar de um prédio de tijolinhos na 16th Street. Ela era um pouco mais velha e experiente do que eu e tentava cuidar de mim, mas eu era difícil. Não dava para confiar em mim; tinha que ficar de olho. Deve ter sido exaustivo ser minha namorada. Connie foi obrigada a aguentar muita coisa, mas ela também era uma baita encrenqueira. Vivia provocando brigas. Não muito tempo depois de eu ter conhecido Connie, ela provocou uma das minhas ex-namoradas no CBGB's. O Blondie estava tocando e tinha sido uma noite divertida, mas Connie tinha que arruiná-la. Ela e a outra garota acabaram brigando e se xingando de coisas horríveis. Eu odeio escândalos, e por isso saí rapidamente pela porta dos fundos, levando comigo uma de minhas outras namoradas, Elaine. Elaine estava acostumada a brigar com Connie. Tinham brigado durante dois anos por causa de Kane, que tinha sido baixista dos New York Dolls antes que eu conhecesse qualquer uma das duas. Uma vez as duas se pegaram na 11th Street, onde Connie me viu com Elaine. Eram duas garotas duronas, e parecia que aquela já ser mais do que uma discussão.

Elaine morava com a mãe num quarteirão bonito da 11th Street, perto do St. Vincent's Hospital. De vez em quando elas me deixavam dormir lá, mas já estavam perdendo a paciência comigo. E eu sabia por quê. Eu bebia muita cerveja e elas já não aguentavam mais me ver invadindo o armário de bebidas. A mãe de Elaine não aguentou e acabou se enchendo de mim. Dava para pressentir uma encrenca, e então Elaine me levou para andar até a Smiler's, uma delicatessen na 13th Street, para comprar Colt, que era a cerveja mais forte que você podia encontrar nos Estados Unidos. Quando estávamos saindo da delicatessen, Connie apareceu do nada. Começou a rodopiar a bolsa em volta da cabeça, como Bruce Lee. Para aumentar o peso, ela tinha colocado um tijolo dentro da bolsa. Ela não estava para brincadeiras. Connie e Elaine se pegaram e ficaram gritando e tentando derrubar a outra no chão. Isso foi no fim da época glitter de Nova York. Eram seis e meia da manhã, e nós estávamos totalmente montados. Eu tinha ido ao clube Eighty Twho, no East Village, e discutido a noite toda. Foi bem dramático. Então, de repente, Connie e Elaine se viraram para mim e Elaine me agarrou pela gola, dizendo: “Dee Dee, você prefere eu ou a Connie?” Então, sem esperar pela resposta, me deu um murro bem forte no rosto. Aquilo me derrubou, e eu quebrei o queixo ao cair na calçada. Connie achou tudo muito engraçado, e, com a sede de sangue satisfeita, mas ainda ligeiramente irritada, me levou para casa. Não demorou muito para que nos expulsassem do nosso apartamento na 16th Street; fomos morar num lugar chamado Village Plaza. As paredes eram pintadas de um verde-limão sinistro, como o dos hospícios e delegacias. Tinha cheiro de spray verde e era muito mais horrível do que o hotel Chelsea. Nem os meus amigos do submundo, em sua maior parte, morariam lá. Eles ficariam no Earl, onde Connie e eu já estávamos queimados.

Piorávamos a nossa vida muito mais do que o necessário. Connie dançava no Metropole, um bar de strip-tease na 48th Street. Minha função era arranjar heroína para nós. Quando dava, gastávamos cem dólares por dia em heroína, Eu ia comprar perto da Rivington, da Suffolk e da Norfolk Street, ruas laterais perto da Houston, no East Village, em direção à Delancy Street. Às vezes Jerry Nolan, ex-baterista dos New York Dolls, e eu iamos comprar juntos. De vez em quando Jerry conseguia heroína com um esquisitão chamado Dorian Zero, que morava em midtown, perto de onde eu morava, nas imediações da Third Avenue, entre a 80th e a 90th. Ele sempre tinha um estoque de Dioxin, um speed que você podia injetar e comprar com receita médica. Você colocava o Dioxin numa garrafinha de vidro com água e fechava a tampa, depois colocava em água fervente por um minuto e deixava esquentar. Aí ficava pronto para injetar na veia. Dorian era capaz de bater nos pais para conseguir dinheiro; de vez em quando nós pegávamos um táxi com ele até a 48th Street para ir ao restaurante do pai dele. Era aí que começava a loucura. Depois, ainda com o taxímetro ligado, fomos direto para Nova Jersey, terminar o negócio. Acabávamos parando na frente da casa dos pais de Dorian, em Cherry Hill. Os pais dele eram ricos e bem relacionados. Era uma casa cara, com sete acres de jardim bem cuidado em volta. Mas não tinha nenhuma placa de boas-vindas na entrada, o que me deixava nervoso. A história toda me deixava nervoso. Dorian largava a gente do lado de fora e entrava na casa para discutir com a mãe dele. Dava para ouvir o cara gritando coisas terríveis para ela. Aquilo me lembrava das minhas brigas com minha mãe, com a diferença de que eu não conseguia dinheiro dela. Durante um tempo, a heroína era chamada de Chinese Rock em Nova York. Quando você andava pelo Lower East Side as pessoas ficavam sorrindo cinicamente umas para as outras na

calçada e sinalizando por gestos se tinham ou não as Chinese Rocks. A “Rock”. Dizia-se que era um sinal de sorte quando alguém tinha uma pedra. Acho que eu tinha muita sorte. Jerry Nolan e Johnny Thunders ligavam para mim com muita frequência. Jerry ia até minha casa para me pegar e nós saíamos para comprar heroína. Os Heartbreakers estavam só se formando, com John, Jerry e Richard Hell. Acho que todos esses caras eram viciados naquela época. Não era fácil arranjar heroína. Não era confiável, era importuno e havia fraudes. As pessoas se enturmavam e saíam para comprar. Quando você saía para comprar para alguém, tinha o direito de “conferir” o papelote, Richard Hell me disse que ia escrever uma música melhor do que “Heroin”, do Lou Reed; então aproveitei a idéia dele e naquela noite compus “Chinese Rocks” no apartamento de Deborah Harry. A música era sobre Jerry me ligando para ir até a casa dele e sair para comprar. O verso “My girlfriend's crying in the shower stall” falava da Connie, e o chuveiro era o do loft de Arturo Vega. A introdução da música era o mesmo tipo de coisa que eu tinha feito em músicas como “Commando” e no refrão de “53rd And 3rd”. Compus essas músicas antes de “Chinese Rocks”, e os Ramones já tinham tocado ao vivo e gravado. Na época em que terminei de fazer a música eu estava morando na 10th Street. Jerry Nolan aparecia por lá, como sempre. Era perfeito, porque a boca de heroína tinha mudado para a 10th Street com a Avenue D, e então meu apartamento se tornou um ponto de encontro, de tão perto que eu estava do centro do agito. Um dia, quando Jerry estava na minha casa, tomamos um pouco de heroína; depois toquei minha música para ele, que a levou para um ensaio dos Heartbreakers. Quando Leee Childers começou a empresariá-los e conseguiu um contrato para eles, “Chinese Rocks” foi o primeiro compacto do LAMPF. Leee era originalmente fotógrafo e tinha tirado todas as fotos que ficavam

na parede do Max's Kansas City. Ele empresariava também Wayne County. A música fez sucesso também, o que ajudou os Heartbreakers a começar a carreira. Ela era dedicada aos garotos da Norfolk Street, o que aceitei, mas os créditos eram falsos. Johnny Thunders encheu meu saco durante catorze anos tentando argumentar que a música era dele. Que joguinho escroto, o desses caras! Mas nessa época, na verdade, eu estava fodido demais para me importar. O pior de tudo era o vício em heroína. Nunca teve a menor graça. Ela dá à pessoa todas as razões possíveis para ser infeliz, e portanto todas as desculpas possíveis para usar heroína de novo. Connie só aumentava minha infelicidade, e eu comecei a ficar feliz quando ela saía de casa para trabalhar, dançando no Metropole. Um dos meus amigos na época era Black Randy, um dos punks mais odiados da Califórnia. Randy ficava entre Los Angeles e Nova York, indo e voltando de avião, usando um terno de três peças da Brooks Brothers. Ele roubava umas pessoas para conseguir dinheiro para a heroína, e aliás fazia isso muito bem. Era um maluco, um viciado e um trapaceiro. Aquela imagem Wall Street era só fachada. Eu sempre arranjava heroína para Randy quando ele me visitava. Por ser gordo, Randy tinha dificuldade de encontrar uma veia para injetar, era uma situação complicada, e eu sempre ficava infeliz quando ele aparecia. Certa vez, Randy apareceu no Village Plaza com um maço grande de dinheiro. Peguei minha moto e fui para a Rivington Street comprar para ele. Os traficantes porto-riquenhos estavam todos sentados nos degraus de entrada de um prédio e ficaram me medindo. Eu era cliente, e por isso me deixaram em paz. Eu me sentia à vontade na Rivington e na Norfolk Street, mas não era o meu bairro e parecia arriscado ficar ali. Mas era onde estava a heroína.

Os pontos de venda eram vitrines de lojas que os traficantes tinham transformado em clubes sociais. Tinham sido pintadas de vermelho-sangue e tons de laranja e verde day-glo. Alguém tinha pintado cabeças de demônios nas paredes com day-glo. Elas fuzilavam você com os olhos sob as lâmpadas negras. Por algum motivo esses lugares me lembravam o Café Wha. Aquilo tornava o comércio de heroína um negócio meio estranho. A heroína meio que fazia parte da decoração. Vinha malhada com procaína. Rolava um boato de que vinha do México. Eram pedras marrons. Chinese Rocks. Mas diziam que eram da América do Sul. Legal, mas besteira. Era só uma ilusão para tornar mais fácil vender nos Estados Unidos a heroína vinda da Tailândia ou sei lá de onde. Não era tão refinada quanto a antiga. Eu queria que quem quer que estivesse fabricando aquilo deixasse a heroína um pouco mais suave. Mas nós tínhamos que comprar o que aparecia ou então passar mal, e por isso comprávamos. Injetar heroína com procaína é como injetar heroína quando você está chapado de cola. Eu sabia que isso iria acontecer, mas mesmo assim comprei dois pacotes. Um para Randy e outro para mim. Depois voltei para o Village Plaza. Pouco depois Randy e eu ficamos muito chapados. Então Randy pareceu ter uma overdose. Eu estava totalmente fodido, chapado de heroína e procaína. Randy podia ter morrido. Eu deveria ter chamado a polícia, mas em vez disso joguei água nele, usando como balde uma lata de lixo que ficava embaixo da pia. Funcionou, graças a Deus, e em pouco tempo ele começou a se recompor — mas a sala estava toda inundada, o que seria a morte para Connie. Quando Randy acordou, estava bastante confuso. A primeira coisa que ele disse foi: “Você tem heroína aí, Dee Dee?”. Era assim. Mais tarde, quando voltou para casa depois de dançar no Metropole da Broadway, Connie ficou puta.

“Dee Dee, o que vocês estavam fazendo? Nem precisa dizer, seu filho da puta de merda. Você estava usando heroína sem mim! A sala está toda inundada! O que aconteceu aqui?” Ela não esperou pela minha resposta. Irritada, pegou uma garrafa de vinho, quebrou a garrafa no aquecedor e me cortou. Foi uma ferida profunda. Havia sangue por toda parte. Coloquei uma toalha sobre o corte e fui até o St. Vincent's, não sei como, para dar ponto. Depois tirei os pontos sozinho. Algumas semanas depois levei uma navalhada no peito. Eu estava tentando escapar de dois caras, mas eles me empurraram para dentro de um prédio. Comecei a fugir o mais rápido possível, tentando ficar calmo, mas eles me alcançaram. “Polícia! Entorpecentes!”, gritaram para mim. Aquilo me abalou um pouco, mas reagi com cautela e disse: “Mostrem as credenciais”. “Quem é você, folgado?”, acusou um deles. Aí eles me empurraram para o saguão de um prédio abandonado. Os dois estavam com navalhas alemãs. Um deles perguntou: “Posso furar esse cara?” O maluco que estava com ele respondeu: “Pode!” Não tinha nada que eu pudesse fazer, na verdade. Só fiquei feliz por não ter sido morto. Um amigo meu tinha um loft no número 6 da East 2nd Street, no quarteirão do CBGB's, muito conveniente para os Ramones. Principalmente para Joey e para mim. O prédio tinha três lofts e uma fábrica no primeiro andar. No último andar morava um pintor maluco chamado Jimmy. Abaixo, um loft com seis drag queens de San Francisco. E, mais embaixo ainda, morava Arturo Vega. Arturo jogava tantos tijolos pela janela por causa de prejuízo com heroína e brigas de amor loucas que é incrível que ninguém tenha tomado um na cabeça. Atrás do prédio ficava um cemitério que tinha sido escavado pela prefeitura. Alguns cadáveres tinham sido enterrados de pé no muro. Uma vez desci até lá para pegar um tijolo solto e saiu a mão de uma pessoa morta do buraco onde tinha caído o tijolo.

Era só osso, mas ainda tinha um anel de ouro e diamante obstinadamente preso ao dedo. Era um velho anel de noivado que algum otário deve ter comprado para a garota. O diamante devia ter pelo menos dois quilates e meio, e o dinheiro que consegui com ele no penhor pagou minha heroína e bolinhos Hostess durante meses. Bem melhor do que as moedinhas que eu consegui vinte anos depois pelo meu anel de casamento, na 10th Street, depois de sair dos Ramones. Está na cara que eu não estava muito bem de dinheiro quando os Ramones começaram. Tocamos inúmeras vezes no CBGB's para sobreviver. Dizíamos que não íamos voltar mais, mas não tinha jeito. Para reduzir meus gastos com heroína, tentei seguir o programa de metadona da Flower com a Fifth - um programa de vinte e quatro dias em Nova York. Todos os meus amigos do submundo autografaram o quadro de avisos de cortiça da equipe. Depois de um tempo todo mundo estava naquele programa. Johnny Thunders, Sid Vicious, Nancy Spungen, eu... Hoje a maioria dessas pessoas está morta. Não quero começar a contar nem a pensar nisso. Não sei como ainda estou vivo depois de todas as drogas que usei. Fico feliz que o programa existisse naquela época. No mínimo estar nele tornou a minha vida de merda um pouquinho melhor. Mas esse tipo de vida é um lixo. Nancy Spungen fazia strip-tease e era groupie dos Heartbreakers. Todo mundo dormia com Nancy uma vez e depois a dispensava. Aí, ninguém mais a queria por perto. Ela sabia realmente incomodar uma pessoa. Uma vez Connie tentou me fazer ficar com Sable Star, a namorada de Johnny Thunders, enquanto ela estava dançando em Boston. Mas acabei ficando com uma outra stripper que conheci num show do Neon Leon no Max's. Sable não era tão gostosa. Eu não me lembro se conheci Nancy muito bem. Tudo aconteceu tão rápido. Connie a conheceu primeiro, porque Nancy tinha sido

groupie dos Dolls e era mais rodada do que qualquer outra. Todo mundo adorava drogas, pecado e violência. Quanto mais podre, melhor - como num dia em que fomos comprar heroína, como sempre fazíamos, mas terminamos roubados. Estávamos totalmente montados, chamava atenção demais. Eu estava usando um modelito completo dos Bay City Rollers, e Connie estava de hot pants, botas plataforma e um top frente-única. Quase começamos um tumulto na 10th Street. Fiquei feliz por ter trocado os meus sapatos plataforma por tênis Keds alguns meses antes. Era impossível correr com botas gigantes como as que o Slade, os Dolls e os Wombles usavam. Connie era tão profissional que não tinha o menor problema com plataformas — que para ela podiam ser aproveitadas também como armas. Fomos parar na Gem Spa, na St. Mark's Place, ofegando, sem fôlego. Enquanto nos recuperávamos, Nancy Spungen veio até nós. Parecia muito triste e começou a tentar nos enrolar e conquistar nossa simpatia. Que piada! Todo mundo começou a gritar, e pouco depois saímos em direção ao Chelsea, Nancy tinha um apartamento na 23rd com a Ninth Avenue. Ficava no primeiro andar. Talvez tenha sido emprestado por algum cliente dela, não sei direito. Um pouco mais tarde, estávamos todos chapados. Aí, Nancy deu dinheiro a Connie, e Connie pegou um táxi para a Ist Street com a Avenue C. Fiquei com Nancy para encaixotar as coisas do apartamento ou qualquer coisa assim e almoçar de graça. Quando Connie voltou com a heroína, ficamos chapados de novo e terminamos na cama, tentando fazer umas coisas pesadas. Mas acho que acabou não sendo muito especial — não tenho muitas lembranças. Além disso, Connie roubou a coleção de moedas de prata de Nancy. Connie era uma viciada esperta; vivia bolando algum jeito de conseguir dinheiro na base da malandragem. Nancy era mais nova e estava só aprendendo. Tinha o maior tesão por Jerry Nolan, mas Jerry a ignorava totalmente. Ele deixava Nancy

comprar uns papelotes de heroína para ele, mas era só. Ela era chata demais. E sair com Nancy deixava você com má reputação. Na parede do banheiro do CBGB's tinha umas merdas horríveis sobre ela escritas pelas outras garotas; todas odiavam Nancy. Mais ou menos nessa época, fugi de Connie com uma garota que morava no loft acima do de Arturo Vega. Nós queríamos sair da 2nd Street e encontrar um apartamento para alugar nos classificados do Village Voice. Escolhi um. Ficava na 10th Street, bem no meio da área de heroína. Mesmo saindo juntos e morando juntos, eu não sabia muita coisa sobre ela. Ela arranjou um “emprego” qualquer, ia todos os dias. Era estranho, mas por mim tudo bem. Jerry Nolan começou a aparecer para tomar heroína enquanto ela trabalhava, e depois começou a trazer Johnny Thunders com ele. Um dia minha namorada ficou em casa. Tudo bem — ela era grande fã de Johnny Thunders e ficou emocionada quando John e Jerry apareceram. O problema é que ela teve uma overdose na nossa frente. Tivemos que tirar a roupa dela e colocá-la numa banheira cheia de água gelada. Pouco depois, nós praticamente nos esquecemos dela. Mais tarde, quando ela se recuperou, os dois já tinham ido. “O que aconteceu?” balbuciou ela, confusa. “Ah, eu coloquei você na banheira”, respondi. “Você não fez isso na frente do Johnny Thunders, fez?” “Fiz”, gritei. Depois, quando estávamos na cama, ela tentou me abraçar. Pulei para fora do colchão, por reflexo, e foi o fim. Ela ficou louca e começou a gritar: “Vá se foder, Dee Dee! Vá se foder! Vá se foder, Dee Dee! Você nunca me deixa beijar você! Você só se interessa por heroína!” Ela tinha razão. Terminamos pouco tempo depois e eu voltei para o loft da 2nd Street. Arturo me hospedou.

Fiquei muito feliz por voltar para o loft. Aquela agitação toda na 10th Street já tinha me cansado. Arturo Vega era uma espécie de madrasta dos Ramones. Era uma drag queen latina que tentava se fazer passar por francesa. Embora fosse, na verdade, amigo de Johnny, inicialmente ele deixou Joey e eu dormirmos no seu loft, que se tornou meio que nossa casa por um tempo. Joey tinha um caderno onde anotava idéias para músicas como “Christmas in the Crypt”. Ele escreveu também “Succubus”. Durante o ensaio eu e John olhamos um para o outro com cara de “que língua é essa?”. Só vinte anos depois eu descobri que aquilo significava uma espécie de mulher-monstro. De qualquer maneira, acho que Joey compunha como eu. Na verdade ele não sabia nada sobre acordes de guitarra ou sobre estrofe, refrão e introdução. Ele simplesmente improvisava aquelas músicas em duas cordas de um violão Yamaha e Johnny Ramone fazia o possível para interpretá-las. Johnny me mostrava as linhas de baixo das minhas próprias músicas, porque eu não fazia idéia de como tocá-las no baixo. Mas, quando tocávamos todos juntos, ficava bem forte, e acho que sabíamos que todos nós tínhamos limitações e por isso John e Tommy não poderiam ceder a mim e a Joey todos os créditos pela autoria das músicas. Mas Tommy Ramone compôs “I Wanna Be Your Boyfriend” e nós poderíamos ter ganho um milhão de dólares com ela, porque os Bay City Rollers queriam gravá-la. Mas essa é uma outra história. Eu me lembro que, quando mostrei “Listen to My Heart” para todo mundo e nós concordamos em gravá-la, Tommy disse: “Ah, mas está faltando um miolo na música”. Então simplesmente compus o miolo ali na hora. Tommy não acreditou que eu fosse capaz de fazer aquilo. De qualquer maneira, era fácil me achar no loft de Arturo. Eu sabia que Connie iria até lá procurar por mim oferecendo heroína como proposta de paz. Eu dormia num colchão que Arturo tinha deixado para mim num canto, atrás de uma bandeira dos

Ramones que o cara tinha pendurado para dividir o loft e poder ter um pouco de privacidade isolando-se de Connie, de Joey e de mim. Arturo acabava ficando com Joey e comigo vinte e quatro horas por dia. Aguentou muita loucura, mas era louco também. Acho que ele acabou criando contra mim um ressentimento permanente — e que dura até hoje. Nunca mais vamos nos cumprimentar, ser amigos, nada. Mas naquela época ele tentava suportar aquilo em nome da arte. Sim, da arte. Ele era uma espécie de artista louco, mas muito talentoso. E muito cool também. Ele via o punk como uma espécie de tela em branco onde ele poderia pintar. Arturo se tornou diretor de iluminação, designer de camisetas e artista gráfico dos Ramones e viajou com a banda em turnês durante um longo tempo. Meu amigo Egg passou por ali uma vez, quando eu tinha saído; estava se mudando de Nova York para Cleveland. Ele foi se despedir, mas eu não estava lá e ele deixou ao lado da cama uma vela que tinha feito. Que legal, pensei, quando vi. Egg me deixou um presente. Uau! Eu estava de ótimo humor. Lembro-me de que tinha uma torazina muito, muito forte que meu conselheiro no programa de metadona da Flower com a Fifth tinha me dado em troca de um presente ultra-especial. Connie tinha me aconselhado a não tomar e estava me vigiando, e por isso escondi a torazina até ela sair. Nesta noite eu estou decidido, pensei. Vou pegar minha vela e minha pílula. Isso é ótimo. Acendi a vela, peguei a pílula e engoli com um pequeno pint de vinho do porto Gallo. Fazia algum tempo que eu não me sentia tão feliz, mas minha felicidade não durou. Não sei o que tinha de errado com aquela vela. Não sei — maldição, feitiço, sei lá. Mas era negativo, não era cool, era uma merda. Percebi que a minha outra namorada, Elaine, estava ali comigo. Eu me sentia estranho demais para ser romântico ou beijar e estava simplesmente contente demais para ficar ali deitado e chapado. Pouco depois Elaine me falou que Connie tinha chegado. Ela estava lá também, e parecia adorável.

Não vou acreditar nela, pensei. A torazina tinha me neutralizado, e eu estava indefeso. Era barra, e não havia nada que eu pudesse fazer. Eu me sentia sufocado e sorri como faço quando as coisas não estão indo muito bem. Depois piorou. Elaine e Connie ficaram putas comigo e não prestaram atenção na vela, que tinha derretido e estava queimando o chão. Quando percebemos, o fogo estava começando a se propagar pelo loft. Connie ficou fora de si de alegria e começou a jogar latas de tinta pela casa para alimentar o fogo. Jogou uma lata de tinta em mim e depois numa das pinturas de Arturo. “Todo mundo se pintando!”, gritou. “Nós vamos todos morrer”. Ela estava vibrando. Acho que depois vi Elaine atrás de Connie tentando empurrá-la para o canto do loft, que estava totalmente em chamas e com um buraco no chão. Mas Connie foi rápida demais para ela, Foi horrível. “Por que eu?”, comecei a pensar. Aquele maluco que tinha me dado a vela, Egg, tinha se mudado para Cleveland. Às vezes a loucura parecia não ter fim, e eu ficava preso lá, tentando resolver um problema atrás do outro. Como Jimmy, a drag queen demente do andar de baixo. Que filho da puta. É incrível que o prédio não tenha se incendiado um milhão de vezes por causa dos tipinhos do submundo que ele levava para o seu loft no andar de cima. Às vezes ele atirava uns tijolos pela janela também, como Arturo. Era estranho — mas era ousado, era empolgante, era legal. Além de drag queen, Jimmy era também artista. E ainda mais louco do que Arturo Vega. Bebia muito e era um cara — ou uma mulher; para ele dava na mesma — realmente podre. Um dia a mulher dele voltou para casa e o encontrou vestido de drag. O filho da puta estava deitado no sofá, caído de bêbado e chapado. Estava usando um vestido de noiva, maquiagem nos olhos, ruge, batom vermelho e peruca loira bufante. Era muito repulsivo. A

gritaria começou na hora. Dava para ouvir do loft de Arturo e da rua, onde as pessoas começaram a se aglomerar para ouvir. “Veado filho da puta!” “Vá se foder, Mary!” “Vá você!” “Some daqui, minha filha!” Ela acabou indo embora e nós nunca mais a vimos. Todo mundo na rua vibrou. Então Jimmy foi até a janela e prometeu dar uma grande festa para comemorar a sorte. Depois que a mulher dele foi embora, Jimmy cumpriu a promessa e deu uma festa, como tinha dito. Convidou todos os vagabundos do Bowery. A festa se tornou uma cena de drogas e bebedeira pesada. Aí ele tomou torazina e perdeu a cabeça completamente. Passou a responsabilidade pela casa para uma anta chamada Margo, uma drag queen muitíssimo temida e durona, especializada em roubar marinheiros no Bowery e assaltar viciados no bairro. Daquele momento em diante, tudo se deteriorou na 2nd Street. Ter Margo como vizinha era uma maldição. Ela era realmente horrível, e tão barulhenta e assustadora que eu comecei a achar que a vida não valia a pena. O predinho onde eu morava estava se transformando num inferno. Eu estava ficando paranóico. Lá se foi minha segurança, pensei. Isso não pode durar muito, Eles podem nos botar na rua a qualquer minuto. Arturo estava um caco. Connie disse que, se tivesse que brigar com Margo, ia ser um pega pra capar, o que quer que isso significasse. Era assustador, e as coisas no nosso prédio estavam indiscutivelmente piorando. Houve um assassinato. Dois, na verdade — esfaqueamento. Sei com certeza que estavam matando gatos no andar de cima, porque as carcaças eram jogadas pela janela, comidas pela metade. Era nojento.

Aí Jimmy ficou sem dinheiro. Ficou preso lá, sem dinheiro e sem aquecimento no prédio, porque a prefeitura tinha cortado o gás e a eletricidade por falta de pagamento. Todos os amigos esquisitos dele começaram a ficar com raiva. Os hóspedes de Jimmy eram uns alcoólatras e pervertidos, todos na merda. Ninguém dava a mínima. Eles começaram a cortar os móveis para usar como lenha e a acender fogueiras no chão para se aquecer e cozinhar ratos depois que acabaram os gatos. Era uma loucura. No fim Jimmy convenceu todo mundo de que ele tinha muito dinheiro escondido atrás de um dos tijolos da parede. Aí todo mundo começou a abrir buracos em todas as paredes. Depois começaram obstinadamente a procurar o dinheiro no porão. Algum tempo depois, Margo desceu até lá para ver o que estava acontecendo. Eu não fui investigar. Tudo o que eu sei é que nunca mais vi os caras de novo. Não perguntei a Jimmy porque ele estava ocupado demais bebendo, e não perguntei a Margo porque eu sempre procurava evitá-la, apesar de ela gostar de mim. Melhor ficar na minha, pensei. Até que Connie deu um ultimato. Um dia antes ela tinha me ameaçado com um facão de açougueiro. De algum jeito estendi o braço por reflexo, peguei um cabo de vassoura e consegui varrer a faca da mão esquerda de Connie. Não sei como. “Connie, meu amor, escute uma coisa, querida, por favor, fique calma. Deixe as facas na cozinha. Chega de espetáculo por hoje, ok? Eu estou esgotado. Não aguento mais. Estou muito cansado”. Connie olhou para mim com seus olhos amarelos, brilhando e cheios de ódio. Um olhar que paralisaria um policial. “Dee Dee, seu veado filho da puta”, gritou ela. “Que foi, Connie?” respondi, gritando.

“O que você acha, Dee Dee, seu animal idiota? É aquela bicha daquela Margo lá em cima. Eu não aguento. Foda-se todo mundo! Eu preciso de heroína agora mesmo para suportar. Eu odeio isso! Faça alguma coisa, rápido!” Eu sabia que precisava enfrentar Connie ou enfrentar Margo. Que situação! Em momentos como esse eu simplesmente perco todos os meus sentimentos. Saí do apartamento e fui até a escada. Eu estava usando botas de cano alto pesadas e com um chute quebrei um dos pinos do corrimão para usar como taco. Aí entrei no loft de Jimmy — sem bater nem nada — e expulsei Margo e os malucos. Mas a experiência me deixou exausto e, no dia seguinte, quando Connie jogou uma garrafa de cerveja em Mark Mendosa, o baixista dos Dictators, no CBGB's, voltei para o Queens para descansar e me esconder por uma semana. A vida ia ficando mais insana a cada dia. Foi bom para mim que os Ramones tivessem começado a fazer turnês. Quase toda noite fazíamos shows em pequenas cidades do nordeste americano. Aquilo era uma chance de evitar o East Village por um tempo. Ficou difícil demais manter o vício em heroína, e então mudei para a bebida. Com isso eu só precisava me preocupar com minhas ressacas, e não em conseguir ir e voltar da Norfolk Street sem ser apunhalado, roubado ou preso. Eu estava me transformando num junkie, basicamente. Acho que os Ramones realmente me salvaram, me tiraram da rua. Todo músico daquela época que eu conheço diz a mesma coisa: “Eu fiquei muito feliz quando começamos a fazer turnês, porque passei a ter um lugar para morar, ficando todo dia num hotel”. Mas, quando paramos, não havia para onde ir. E nada para comer. Os Ramones eram como minha família e minha segurança. Com eles eu conseguia comida, lugar para morar e lugar para tocar, e aquilo era bom.

Minha relação com os outros Ramones sempre foi tensa, desde o começo — acho que porque que eles não conseguiam me entender. Eu provavelmente punha em risco a segurança da banda, com meu temperamento instável. Não me conformava com nada. Tudo perdia imediatamente o valor para mim. Não vejo como poderia ter sido diferente. Não havia ninguém para me mostrar outro caminho. Eu nunca tive infância. Não conseguia ter uma banda. Precisava de um lugar para morar. Ficava tentando estabelecer um padrão inatingível para mim mesmo, e acho que o que me distanciou de John, Joey e Tommy é que eles pareciam ter alguma coisa que eu não tinha. Eu não sei muito bem quais eram as situações familiares deles, mas eu me sentia um estranho, porque no fim do dia eu não tinha realmente para onde ir e eles tinham. Tommy nem sequer deixava alguém entrar em seu apartamento. Não queria ninguém lá. Atendia à porta e ficava espreitando você por trás dela. Você tinha que ficar do lado de fora. Os pais de John sempre eram muito simpáticos comigo. Eu me dava muito bem com eles, que gostavam de mim de verdade. Mas eu sempre achava que os outros caras tinham uma segurança que eu não tinha. Eu não tinha um lugar para onde eu pudesse ir e crescer. Acho que é por isso que eu precisava ter uma vida secreta, só minha. Fiquei magoado com eles. Eu pensava que não deveria andar com aqueles caras, mas nós estávamos unidos. E quem sempre tornava tudo pior era Johnny Ramone. Mas eu sei que eu causava muito problema, muita tristeza. As pessoas me causavam muita tristeza. Não existe um culpado. Nenhuma banda se entende.

Parte 3 OS RAMONES SAEM DE CASA Uma viagem à Inglaterra Os Ramones tinham começado a ficar conhecidos em Nova York e estavam tocando regularmente no CBGB's, no Max's Kansas City e em outros espaços underground. Assinamos com a gravadora Sire, de Seymour Stein, por 6 mil dólares. Seymour era um cara muito inteligente. Foi ele que inventou a teoria de como vender música alternativa e fundar selos alternativos nos Estados Unidos. Começou comprando direitos autorais e lançando bandas como o Fleetwood Mac e a Climax Blues Band. O dinheiro que ganhava com isso, ele usava para investir em bandas como os Ramones e os Talking Heads — e, mais tarde, Soft Cell e Madonna. O primeiro álbum demorou apenas alguns dias para ser gravado, em fevereiro de 1976, no Plaza Sound do Radio City Music Hall. Foi lançado em abril. As críticas foram boas, mas as vendas do primeiro LP não foram exatamente espetaculares, e muitos promotores de shows ainda relutavam em trabalhar conosco por causa da nossa reputação. Tivemos um impacto muito maior na Inglaterra, onde o álbum chegou rapidamente ao primeiro lugar da parada de importados graças à execução regular no programa noturno de John Peel na Radio 1. Houve até um crítico britânico que nos chamou de salvadores do rock'n'roll. Acho que no Reino Unido o ambiente estava muito mais propício a uma banda como os Ramones. O movimento punk britânico, centralizado nos Sex Pistols, estava prestes a decolar.

Nós fomos para a Inglaterra em julho de 1976, no fim de semana do bicentenário dos Estados Unidos, para fazer dois shows com os Flamin' Groovies. O primeiro foi no Dingwalls; depois, no dia da Independência, 4 de julho de 1976, tocamos para 2 mil fãs exaltados no Roundhouse de Londres, nosso maior público até então. Eu me lembro de que naquele ano o verão foi bastante quente na Inglaterra. Danny Fields, nosso primeiro co-empresário, nos mostrou a cidade. Danny era fotógrafo e membro do círculo de Warhol, e tinha sido empresário também dos Stooges e de Jonathan Richman. Ele se dava bem com Linda Stein, mulher de Seymour Stein, dono da Sire Records, e também co-empresária da banda. Nosso primeiro passeio por Londres se resumiu a andar em torno do Hyde Park às quatro da manhã. Uma coisa bem pobre. Foi assim que Danny nos mostrou a cidade. Depois ele nos deixou livres. Fui para o Camden Market, onde comprei todos os compactos do Doctor Feelgood e do Eddie and the Hot Rods. Comprei também “Keys to Your Heart”, dos 101’ers. Foi muito emocionante para mim comprar aqueles discos. Eram de gravadoras estranhas, de que eu nunca tinha ouvido falar, e as capas eram legais. Tudo ainda bem próximo do rock'n'roll autêntico. O estande da Rock On tinha um ar meio Teddy Boy. Ver aquela cena de rock'n'roll cinquentista e depois abrir para os Flamin' Groovies, que se vestiam como os Beatles da cabeça aos pés, foi como voltar no tempo. Foi no primeiro show no Dingwalls, um clube pequeno no meio do Camden Market, que eu fui apresentado pela primeira vez aos punks ingleses. Na passagem de som, conheci Mick Jones e Paul Simenon, do Clash. Paul usava sapatos manchados de tinta. Era artístico, estilo grafiteiro. Todos usavam cabelo curto, mas não pareciam mods. Johnny Rotten e Sid Vicious também estavam lá naquela noite. Aquele não foi, para mim, o melhor show que já fizemos na Inglaterra, mas foi um bom começo.

Na noite seguinte tocamos no Roundhouse, com os Stranglers e os Flamin' Groovies. Quando estávamos no carro, indo fazer a passagem de som no Roundhouse, alguém disse: “E o Sid Vicious!”. Apesar da névoa alcoólica permanente em que eu vivia, consegui ver Sid de pé na calçada, sozinho, com um ar meio desligado. Por algum motivo fiquei feliz por vê-lo. O próprio Sid já era um espetáculo — ali de pé, na entrada do Roundhouse, usando uma calça boca-de-sino vermelha, um top arrastão, maquiagem nos olhos, esmalte preto nas unhas e cabelo preto azulado mas ainda não espetado. Eu o conheci mais tarde, naquela noite, e nós nos demos bem imediatamente. Sid gostava dos Ramones e começou a andar atrás de mim. Depois, quando entrou nos Sex Pistols, adotou uns jeans rasgados, como Joey, e uma jaqueta de couro estilo Ramones. Os Ramones tocaram tantas vezes na Inglaterra que é difícil lembrar tudo com precisão. Mas acho que nossa viagem seguinte para lá foi em 1977. Eu me lembro de ter ido a Brighton, num dia de folga, para ver o Clash. Foi uma das primeiras vezes que ouvi reggae. Lembro-me de uma cena estranha: uns mil punks na pista de dança, no intervalo entre dois shows, dançando ao som do reggae que o DJ estava tocando. Eu nunca tinha visto nada parecido. Eu estava me divertindo — até dar de cara com Nancy Spungen no balcão do teatro. Ela começou a gritar toda entusiasmada na minha orelha — “Sid isso, Sid aquilo”. Disse que Sid era a estrela dos Sex Pistols. Que Sid era o novo namorado dela. Eu simplesmente não consegui ouvir o Clash porque Nancy ficou gritando coisas sobre Sid na minha orelha. Era demais para mim. Aquele entusiasmo todo me deixou exausto. Comecei a cogitar a idéia de empurrar Nancy do balcão. Ela acabou me subornando com uma garrafa de conhaque. Na noite seguinte houve uma festa no Country Cousin, na King's Road. Era um lugar quente e sem ar condicionado. Por mais vinho e cerveja quente e barata que distribuíssem aos

convidados, todos continuavam com sede. Todo muito bebeu até cair. Era bem decadente. Logo que entrei, vi o baixista do Damned, Captain Sensible. Ele estava sentado num piano luxuoso e caro e ameaçava tocar para nós. Estava usando um tutu de bailarina e um velho coturno Doc Marten's pintado de branco com spray. Todo mundo estava lá, de Gaye Advert a Marc Bolan. Mas não encontrei heroína — até que um cavalheiro alemão que conheci na festa me passou vinte gramas de speed. Num primeiro momento eu fiquei sem saber o que fazer. Depois fui ao banheiro para conferir, e Sid me seguiu. Havia vômito por toda parte. No chão, na pia e transbordando das privadas. “Que coisa nojenta”, pensei. Sid e eu imediatamente vomitamos também. Mas eu ainda não tinha visto nada. Sid tirou do bolso uma seringa horrível, com sangue endurecido na agulha. Dei a ele um pouco do speed e ele botou na seringa. Aí colocou a seringa na privada e puxou água para dissolver o speed a frio. A água estava cheia de vômito, mijo e ranho. Sid parecia não ver absolutamente nada de anormal naquilo. Parecia que sua principal preocupação era se injetar e que estava disposto a aguentar qualquer merda por aquele pico. “Agora já vi de tudo”, pensei. Quando Sid estava terminando de se injetar, John Cale entrou no banheiro. O cara fedia a álcool, mas percebeu imediatamente o que estava acontecendo. Tentou se fazer de inocente. “O que é que você tem aí, Dee Dee?”, perguntou num tom amistoso e desinteressado. “Sei lá”, respondi, mentindo na maior cara-de-pau. “Pergunte para o Sid. Ele tem”. Quando percebi, Sid estava no chão, tendo convulsões. Uma espuma verde saía da boca dele. Os olhos estavam quase pulando para fora da cabeça. Foi horrível; corri até o bar para pedir ajuda, mas não vi o que aconteceu depois. Na confusão, escorreguei, caí pela escada de emergência, bati a cabeça e

perdi a consciência. Depois fui levado para o hotel numa ambulância. No dia seguinte encontrei Sid. Os Sex Pistols estavam tocando perto de Londres, num teatro deprimente em alguma faculdade ou universidade. Sid e eu ficamos conversando no balcão, perto do camarim, olhando para a platéia. “Sid”, eu disse a ele, “vocês não têm iluminação nem sistema de P.A.”. “Legal, né?”, ele respondeu. “É, legal”, eu disse. Havia alguns milhares de pessoas no lugar. Como alguém conseguiria ver ou ouvir os Pistols quando eles entrassem? O público parecia bem animado e o clima era de festa, mas o backstage estava meio deprimente. Sid me perguntou se eu queria uma cerveja e entrou no camarim — de onde ele tinha sido expulso — para pegar uma. Voltou com a cerveja, que já estava aberta. Desconfiei, porque os Ramones sempre punham algumas gotas de mijo em tudo o que ofereciam para beber aos convidados depois do show, de brincadeira, para dar risada. Achei que os Sex Pistols fariam a mesma coisa e recusei a generosidade de Sid. Quando ninguém estava olhando, derramei a bebida no copo do empresário deles; ele bebeu tudo em um gole. “Eu sei que o Malcolm não gosta de mim, Sid. Já vou indo”, disse — e fugi. Tinha acontecido a mesma coisa no ano anterior, quando Johnny Rotten entrou no camarim do Roundhouse para nos ver. Johnny Ramone foi simpático com ele, apertou-lhe a mão, deu-lhe um tapinha nas costas e lhe perguntou se queria uma cerveja. Johnny Rotten aceitou e bebeu tudo em um gole, enquanto John sorria maliciosamente, Perdi a respiração. Isso é inacreditável,

pensei. Quando Johnny Rotten saiu, nós não conseguíamos acreditar que ele tinha vindo nos ver. Mesmo tendo boa aceitação na Europa e na Inglaterra, a vida na estrada com os Ramones não era fácil. Eu gostava da Europa, mas os Ramones não conseguiam se acostumar e começaram a odiar ir para lá, principalmente porque o público da Inglaterra gostava de cuspir em nós. Ainda assim continuamos voltando para fazer turnês, mas não tinha mais graça nenhuma. Havia muita tensão entre os membros da banda. Johnny Ramone gritava com todo mundo quando saíamos do palco. Ao retornar para os Estados Unidos, nós voltávamos a tocar em lugares do mesmo nível do CBGB's. As coisas não estavam dando certo. Às vezes parecia que as pessoas iam ao show só para nos detestar e arrumar briga. Os Sex Pistols estavam vendendo mais discos e ficando mais famosos, e os Ramones pareciam não conseguir se estabelecer. A imprensa britânica nos tratava como palhaços. No começo ficávamos na defensiva e nos fazíamos de durões. Depois paramos de nos preocupar. A decadência já tinha começado. Depois de uma turnê desastrosa pelos Estados Unidos, os Sex Pistols acabaram. Aí Tommy saiu dos Ramones. Eu tinha observado ele se deteriorar na estrada. Tommy não era muito resistente — na verdade ele não tinha aquela fibra de rock star. Fui a um ensaio da banda em Nova York e Marc Bell estava lá, John e Joey tinham pedido a ele para entrar na banda. Nós nunca conseguimos recapturar aquele som punk clássico depois da saída de Tommy, mas, com Marc na banda, tínhamos um baterista incansável. Marc tinha sido meu companheiro de bebedeiras antes de entrar nos Ramones, e eu adorava sair com ele. Seguimos juntos o caminho da ruína. Éramos um problema, mas para mim ele era mais divertido do que John ou Joey, e fiquei feliz por ele estar na banda.

Por algum motivo os Ramones não conseguiam aceitá-lo, e Marc percebia isso. Paramos de sair e beber juntos por causa da tensão. Naquela época os Ramones tinham uma política de proibir bebidas alcoólicas, mas eu não obedecia, e Marc também não. Comecei a brigar com Johnny Ramone por achar que a banda estava me culpando por todos os nossos fracassos. Eu era o mais fodido e o mais fraco da banda e estava começando a odiar os outros. John e Joey riam do comportamento de Marc e achavam muito divertido tentar fazer com que a hostilidade dele se voltasse contra mim. Começaram a contar mentiras inocentes para ele, como a de que era minha a decisão de não dividir com ele o dinheiro que nós ganhávamos com a venda de camisetas. Esse tipo de coisa me deixava muito puto. John tinha talvez o pior papel na banda, o de autoridade — mas alguém precisava assumir esse lado. Deve ter sido isso que o deixou tão desagradável. Ou talvez ele estivesse simplesmente fazendo o trabalho sujo de todos os outros. No mundo da música isso realmente acontece: você só chega a algum lugar gritando, ameaçando, brigando, esse tipo de comportamento. Você precisa brigar por tudo. Tudo. Todo e qualquer aspecto da vida diária — fazer o show, cair na estrada, fazer todo mundo assumir sua posição, conseguir o dinheiro, encerrar, ir embora, transportar o equipamento. Alguém precisa fazer isso. E John teve que fazer muito isso, o que consumiu anos da vida dele. O cara aprontava muito e, por isso, ninguém gostava dele. Mas ele foi até o fim, com todas as forças — eu não percebia isso. Eu via aquilo tudo como as regras de Johnny Ramone e as justificativas de Johnny Ramone — não as minhas. Uma das regras era a nossa roupa. Adotávamos um uniforme — jeans rasgados, cabelo tigelinha, jaquetas de couro e tênis. Tudo isso fazia parte de ser um Ramone. Uma vez, quando voltamos de amsterdã depois de uma longa turnê pela Europa, fiz o oposto do que todo mundo achava que eu iria fazer. Fiquei sóbrio durante o vôo para os Estados Unidos e observei atentamente o

que estava acontecendo. Marc estava bêbado como um gambá e se fazendo de louco. John, Joey e suas namoradas, Roxy e Linda, estavam me tratando muito mal. Depois que fomos liberados pela alfândega, no aeroporto Kennedy, comecei a xingar John. Eu achava que não queria mais ser um Ramone. Aquilo era uma babaquice para mim. Eu não precisava deles me dizendo o tempo todo o que fazer e depois me insultando. Já tinha feito muito por eles. Dava minha vida para a banda, mas eles nunca estavam satisfeitos. Acabaram criando um inimigo dentro da própria banda — eu. Aquilo era idiota demais. Especialmente por ter que aguentar Roxy e Linda me provocando. Eu estava cansado. Estava cansado dos Ramones — e daquele corte de cabelo também. Quando cheguei em casa, fui direto para o banheiro e cortei o cabelo no estilo Sid Vicious. Eles não vão gostar, pensei — e fiz uma careta de Sid para o espelho.

Fim do século À primeira vez que encontrei Phil Spector foi num clube chamado Whiskey A Go Go, no Sunset Boulevard, em Hollywood, Califórnia. Phil estava lá para ver o Blondie, que ia tocar naquela noite. Não sei como, mas tive a sorte de ter um dia de folga no meio da turnê e pude estar em Los Angeles. O Blondie e Deborah Harry eram meus amigos e estavam começando a fazer algum sucesso com uma música chamada “Denis”, produzida por Richard Gottehrer. Mas Phil se acreditava capaz de fazer melhor, e acho que ele estava obcecado com a idéia de tirar Deborah Harry do Blondie, produzir um disco para ela e transformá-la numa grande estrela. Talvez ele estivesse apaixonado e quisesse secretamente casar com ela — quem pode saber? O Blondie estava ótimo naquela noite, e eu me diverti bastante. Deborah Harry detonou; estava usando uma de suas minissaias

mais curtas. Todos os caras ficaram amontoados na frente do palco tentando ver a calcinha branca de Deborah por baixo da minissaia. Foi tudo muito divertido, e eu estava me divertindo mais ainda pagando uma rodada atrás da outra para todos os patronos do clube. Quando cheguei no Whiskey eu estava tão bêbado que, na hora em que o Blondie entrou no palco, já não tinha muita idéia do que estava fazendo. Por maior que fosse a animação em Los Angeles, por Deborah Harry e o Blondie finalmente estarem tocando na cidade, senti que havia algum infeliz na platéia que não estava gostando daquilo. Depois, ao tentar entrar no camarim e ver a banda, descobri que minha intuição mediúnica tinha sido exata. Eu estava muito alto e fedendo a rum. Mesmo assim, não foi muito difícil subir a escada que dava para o camarim do Whiskey A Go Go, de tantas vezes que eu já tinha estado lá. Mas, enquanto eu subia, fui interrompido por um homem segurando as cortinas de veludo vermelho que ficavam no topo da escada para não me deixar passar. Era um cara que eu só poderia descrever como o conde Drácula em pessoa. Estava com uma capa tipo asa de morcego, uma barba preta com um bigode que o deixava com uma aparência demoníaca e uns óculos escuros de piloto de avião que lhe davam uma aura ameaçadora e misteriosa. Depois descobri que aquele homem era o príncipe coroado das trevas em pessoa — o sr. Phil Spector. “Aonde você pensa que vai?”, perguntou. “Estou indo ver a Debbie”, respondi. “De jeito nenhum”, disse ele. Mas, no momento ideal, Jimmy Destri, bêbado e chapado, abriu a porta do camarim e todo mundo entrou, passando por Phil e nos arrastando para dentro. Ele não pôde fazer nada. Ficou furioso, porque Deborah Harry estava sentada no camarim, toda suada e só de calcinha e sutiã — ela ainda não tinha conseguido se trocar. Não sei se Phil já tinha visto Debbie naquele estado, mas

percebi que ele não queria que ninguém mais visse. Por isso, ficou muito puto e, quando entrou no camarim e viu Debbie retocando o batom e sendo gentil comigo, criou uma amarga antipatia por mim antes mesmo de me conhecer. Voltei a ouvir o nome Phil Spector pouco depois que retornei para Nova York. Danny Fields me informou que Seymour Stein tinha decidido que seria bom se o álbum seguinte dos Ramones fosse produzido por Phil Spector. Foi mais ou menos na época em que os Ramones estavam envolvidos com o filme Rock'n'Roll High School, em 1978 ou 79. Acho que a idéia original de trabalhar com Phil era a de que ele produzisse a música “Rock'n'Roll High School” para a trilha sonora do filme. Talvez a gravadora achasse possível transformar o punk rock num sucesso nos Estados Unidos se Phil Spector nos produzisse. Acho que é por isso que havia uma aura de perigo implícita. Talvez minha imaginação tenha sido estimulada pelos boatos sobre armas, guarda-costas e técnicas de caratê. Acabei gravando “Come On, Let's Go”; por incrível que pareça, apesar das condições de gravação e do ambiente em torno de mim, a música ficou bem alegre. Mais tarde, saímos, com Monte, do laboratório de Phil nos estúdios Gold Star e fomos nos encontrar com ele. Ed Stasium, co-produtor de End Of The Century, nos levou para um estúdio de ensaios em algum lugar em Hollywood. Afinamos a guitarra e o baixo e começamos, com dificuldade, a tocar “Rock'n'Roll High School”. O palco ficava na extremidade de uma sala grande e comprida, com um piso muito bem polido. Quando estávamos no meio da música, Phil apareceu e caminhou confiante até o centro da sala vazia, abriu sua pasta de executivo e, como não tinha nenhuma cadeira, agachou-se e ficou olhando para nós por trás da pasta. Não preciso dizer que aquele tinha sido um dia longo, e que eu estava perdendo meu senso de humor e realmente precisava dormir. Não sei o que Phil estava fazendo atrás da pasta, mas alguma coisa me parecia muito suspeita. Quando

terminamos de tocar, Phil veio até nós e nos elogiou, dizendo o quanto a música parecia boa, mas eu continuei bastante apreensivo. Acho que tudo aquilo foi apenas uma das maneiras de Phil nos testar antes de concordar em nos produzir. Acho que o passo seguinte, para Phil, foi ver se ele gostava ou não da nossa companhia. Afinal de contas, ficaríamos juntos durante muito tempo, porque Phil demora bastante para finalizar um álbum. Parecíamos todos esgotados, provavelmente por ter caído na farra a noite toda; educadamente, pedimos licença para ir embora e encontrá-lo no dia seguinte, em sua mansão em Beverly Hills. A estrada que dava para a casa dele era uma subida íngreme. Quando chegamos, encontramos uma mansão altamente fortificada; tivemos que apertar um botão, esperar pela autorização da segurança e passar pelas sentinelas entre o portão e a casa. À propriedade estava meio velha e não muito bem conservada. Talvez porque ele fosse solteiro e morasse ali sozinho, com um são-bernardo enorme e dois guarda-costas. Pelo que entendi, parece que o único amigo dele na época era o disc jockey Rodney Bingenheimer. Nós conhecíamos Rodney porque ele tinha recebido os Ramones em seu primeiro programa para a KROQ de Los Angeles, em 1976. Quando entramos, Phil nos levou para conhecer a casa, Sou grande fã da música de Phil Spector e sabia, por mais que eu estivesse alheio a tudo na época, que estava diante de uma grande lenda do rock'n'roll - mas ele realmente me deixava nervoso. Depois do passeio pela mansão, ele largou John, Marky e eu no térreo, na sala do piano, e levou Joey para o andar de cima para uma conversa em particular. Cerca de três horas depois, comecei a ficar inquieto — sentado naquela sala, sem nada para fazer exceto olhar para John e Marc. Até que me levantei do sofá e tentei encontrar Phil e Joey para saber o que estava acontecendo. Phil deve ter me achado um intrometido. Na

verdade, não sei o que o irritou, mas me lembro de que Phil apareceu no topo da escada gritando e segurando uma pistola. Depois ele praticamente desmontou a arma em dois segundos exatos e montou de novo em mais dois. Ele conhecia todas as técnicas de atirador. Era como Jimi Hendrix, mas com uma pistola em vez de uma guitarra. “Não acredito”, pensei. “Estou morrendo de tédio, preciso ir embora desta porra”. “Phil”, provoquei, “não sei o que você tem para ficar mostrando essa pistola e coisa e tal e tentando roubar o Joey dos Ramones. Para mim chega. Vou voltar para o Tropicana” — que era o hotel onde nós estávamos, no Santa Monica Boulevard. “Você não vai a lugar nenhum, Dee Dee”, respondeu Phil. Ele apontou a pistola para o meu coração e fez um gesto mandando eu e o resto da banda voltarmos para a sala do piano. Todo mundo se sentou no sofá e tomou mais uma cerveja. A essa altura estávamos muito bêbados; eu estava de saco cheio, confuso e com fome. Phil era um anfitrião cruel. Só guardou a pistola quando se sentiu seguro de que os guarda-costas poderiam controlar as coisas. Aí, foi até o piano de concerto preto e nos obrigou a ouvilo tocar e cantar “Baby I Love You” até bem depois das quatro e meia da manhã. Às cinco eu estava a ponto de perder a cabeça completamente. Duas semanas depois, Johnny Ramone, Marky Ramone, Joey, eu, Ed Stasium e Phil Spector estávamos num estúdio, num outro endereço secreto de Hollywood. Vínhamos trabalhando pelo menos catorze ou quinze horas por dia, durante treze dias seguidos, e ainda não tínhamos gravado uma nota de música. Não faço idéia do motivo; só sei que eu estava ficando impaciente. Phil ficava na sala de controle, com os fones de ouvido, escutando Marky tocar uma nota na bateria durante horas e horas. Aquilo me fazia lembrar da época em que eu ficava um tempão brincando com uma bola de basquete no

apartamento da mãe de Joey Ramone, no Birchwood Towers, em Forest Hills, enquanto Joey gravava o som numa fita. Alguns dias depois, durante um intervalo para almoço, perguntei a Ed onde estava Johnny, e Ed respondeu: “Ah, faz cinco horas que o Johnny foi embora. Voltou para Nova York”. “Isso é loucura”, eu disse, “nós ainda nem começamos a gravar o álbum”. “O que eu posso fazer?”, disse Ed. “Acho que ele ficou muito ansioso”. Ao voltar, encontrei Marky perto da máquina de refrigerantes e da área de descanso. “Marky”, eu disse, “John foi embora. Voltou para Nova York. O que você acha que a gente deve fazer?”. “Vamos para casa”, disse Marky. Não sei como, mas de algum jeito Marky e eu conseguimos lugares num vôo para Nova York naquela noite, às sete horas. Na manhã seguinte, estávamos no aeroporto JFK. Até hoje eu não faço idéia de como foi feito o álbum End Of The Century, nem de quem tocou baixo nele.

Chicken beak boy Quando não estava em turnê com os Ramones, eu ficava em casa, no meu apartamentinho de subsolo em Whitestone, um bairro chato de classe média. Morei lá durante dez anos, mas nunca me acostumei. O dono morava acima de mim, e não era exatamente o tipo de pessoa que gosta de rock'n'roll. Eu tinha medo de ligar meu aparelho de som ou de tocar meu baixo no amplificador. Todo mundo no bairro gostava de fazer outras coisas, como plantar uns girassóis sem graça em casa. Mas eu sou um tipo

mais vampiro. Aquele não era o meu ambiente. Até que um dia o filho do meu senhorio tocou a campainha. Alucinei completamente quando vi aquele garotinho ali fora. Me senti muito desconfortável — o apartamento cheirava a maconha. Disse para ele voltar mais tarde. Um pouco depois ele apareceu na minha porta de novo e falou um tanto vagamente, num inglês tosco, que se interessava por guitarras e tal. Peguei uma das minhas guitarras elétricas e dei para ele. “Leve isso”, eu disse. Eu estava tentando fazer uma coisa que meu pai nunca tinha feito por mim. Não sabia como era ter um filho. Nunca tinha tido um. O que me incomodava, mas hoje não incomoda mais. Minha vida era uma merda tão grande que era realmente melhor eu não pensar em ter uma família. Mesmo sendo um bom bairro de famílias de classe média. Whitestone é também cheio de drogas. Eu conseguia cocaína em domicílio como se fosse pizza. Mas naquela época o que eu mais usava era maconha. Eu estava fumando uns trinta gramas por dia. Isso me dava muito ansiedade. Uma das coisas de que eu gostava ao visitar lugares como Amsterdã era poder conseguir legalmente todas aquelas coisas proibidas nos Estados Unidos. Na Holanda você pode comprar cannabis legalmente. Nos cafés o menu de maconha é escrito numa lousa, que informa o que há disponível no dia. Minha favorita era a Zero Zero, um haxixe opiáceo que me deixava realmente chapado. Quando fomos tocar no Paradiso, em Amsterdã, a loja de haxixe do clube abria depois da passagem de som. Eu tentava comprar o máximo de haxixe que eles pudessem me vender, explicando por gestos e sinais. Eu fazia dois zeros com os polegares e indicadores e dizia “Zero Zero” para os balconistas, devagar e cuidadosamente. Aí eu fazia uns sons para sugerir o ato de

fumar e depois saía correndo com a Zero Zero para fumar no hotel. Para um maconheiro, sair de um lugar como esse e voltar para Whitestone era meio deprimente. Eu tentava compensar aquela vidinha banal de Whitestone começando meu dia com seis ou sete baseados de Buddha Thai. Quando ficava muito frustrado, ia até o McDonald's do Francis Lewis Boulevard para comprar um pouco de cocaína de meu amigo Tony Blow, o traficante da área. Durante um tempo tive uma namorada na Inglaterra, a Jill. Quando nos conhecemos ela estava usando um suéter de mohair vermelho e preto e uma calça preta de couro envernizado. Eu a achava bastante cool e bonita, mas por algum motivo eu sempre acabava correndo assustado de volta para Whitestone — para ficar sozinho de novo. Não entendo por quê. As drogas e a bebida estavam me prejudicando. Tudo estava pior por causa delas. Meu cérebro parecia feito de lama. Tudo o que eu sabia fazer era tocar baixo numa banda e cair na estrada. Eu precisava das turnês para pagar as contas. Na época em que saiu o álbum Pleasant Dreams, em 1981, percebi que eu já não aguentava mais. Entendi que ficar chapado não estava me levando a lugar nenhum. Até que comecei a frequentar a Odyssey House, no East Village, como paciente externo. Era uma chance de melhorar de vida. Eu me esforcei bastante. Percebi que estava fora de forma, e assim que tive um tempo de descanso da estrada comecei a frequentar uma academia em College Point para puxar ferro. Nenhum frequentador daquela academia precisava realmente daquilo — só eu. Eu tenho um tipo fraco, de quarenta quilos; eles eram todos fortes, com tipo de pedreiro. Eu estava perturbando a atmosfera do lugar. Um dia alguém começou a falar mal de mim e eu fiquei puto. Fui até o cara e dei-lhe um soco no estômago. Ele era grande demais para que eu o acertasse em qualquer outra parte do corpo. O cara ficou alucinado. Todo mundo ficou.

Houve um silêncio total. Depois começaram a rir. Eles não acreditavam no que tinham visto. Por algum motivo, não tentaram me matar, e eu fui embora com humildade e um aviso: “Nunca mais apareça aqui, animal!” Fiquei grato por aquilo, mas percebi que eu estava ficando meio maluco. Ao sair, entrei no carro novo em folha que havia comprado a prestação. Era um Camaro azul metalico com rodas cromadas, pneus com faixa branca e teto com painéis removíveis. A maioria dos carros na área de College Point tinham o preto padrão como cor básica e pneus invocados. Meu carro era meio espalhafatoso para o Point, e eu estava me sentindo meio paranóico e nervoso de tanto fumar maconha. Depois do incidente na academia resolvi que frequentar uma reunião dos AA era melhor do que me arriscar indo para casa e interrompendo minha sobriedade. Então, com toda aquela agitação mental na cabeça, dei a partida e assim que tirei o carro da vaga vi uma mulher empurrando um carrinho de bebê em direção ao Camaro. Era inacreditável. Tudo ficou turvo, e quando tentei frear, errei e pisei no acelerador. O Camaro se descontrolou e bateu na van do vizinho. Saí para ver o estrago. Meu carro estava fodido, mas amarrei o capô com uma corda que encontrei no lixo e ele ficou firme. Olhei em torno para ver o que tinha acontecido com a mulher e o bebê — tive a impressão de não tê-la atropelado —, voltei para o carro e saí dali, não sei como. Depois segui para o Bayside Boulevard até a reunião dos AA, que estava acontecendo numa igreja da área. Fazia tanto frio que quando eu estacionei, em frente ao local de reunião, as portas do carro não queriam fechar por causa do gelo. No fim consegui fechar o carro, mas a chave ficou presa na fechadura da porta. A essa altura eu estava realmente de saco cheio e pensando em simplesmente entrar num supermercado e comprar uma garrafa de conhaque, mas me contive. Foda-se, pensei. Nada vai me perturbar. Fazia muitos anos que eu não dirigia um carro e estava decidido a me divertir. Eu estava meio constrangido, como

sempre fico quando vou a uma reunião e fumo, mas de algum modo me sentia sóbrio. Assim que entrei na reunião, senti que todo mundo estava contra mim. Só me criticavam. Até que me levantei da mesa e comecei a contar minha história: “Oi, meu nome é Dee Dee e eu estou sóbrio há 86 dias”. Eles começaram a se encolher. Pô, ninguém acredita em mim. Eu ia dizer mais alguma coisa, mas em vez disso corri até a cozinha para comer alguns cookies, porque a larica estava muito forte. O barato do baseado que eu tinha fumado antes da reunião acabou passando, e quando fui embora do lugar descobri que as fechaduras do meu carro tinham congelado de novo. Depois de vários chutes e gritos, consegui entrar no carro. Mas a porta não queria fechar. Pisei com raiva no acelerador e, quando saí e virei a esquina, a porta abriu de novo. Um outro carro vinha vindo na minha direção, e eu desviei para não bater; mas mesmo assim a porta esquerda do meu Camaro foi completamente arrancada e eu arranhei a pintura de todos os carros estacionados à direita. A polícia levou meu carro embora. Devem ter achado que eu estava descontrolado demais para dirigir. Comprei um sobretudo três-quartos, só de maldade. Como eu era um Ramone, só podia usar jaquetas de couro de motoqueiro. Acho que eu deveria ter saído da banda naquela época, mas estava muito irritado e por isso pintei meu cabelo de preto azulado e comecei a usar óculos Ray Ban como anteparo entre mim e o resto do mundo. Aqueles óculos bloqueavam tudo, como a heroína. Passei a usar também um jeans preto comum que comprei na Trash and Vaudeville, no Village. Nos Ramones eu só podia usar jeans azul rasgado. Na minha cabeça aquilo pelo menos faria com que os garotos da platéia parassem de ficar na beira do palco agarrando minha calça e puxando o rasgão para baixo até o tornozelo. Eu odiava aquilo.

Mas John e Joey resolveram deixar passar — pelo menos eu estava me esforçando para não beber e raramente cheirava cocaína. Mas, assim que a tensão entre John, Joey e eu começou a se desfazer, foi a vez de Marc Bell. Tínhamos parado com as turnês para começar a trabalhar no álbum Subterrancan Jungle, em Nova York. Estávamos ensaiando no Daily Planet, um estúdio na West 30th Street de que eu gostava muito. Mas as coisas não estavam dando certo. As preparações para o Subterranean Jungle foram foda. Marc estava pirando. Seus anos de farra começavam a pesar para ele. Ele tinha aquela atitude “passagem só de ida para o trem da loucura”. A última parada é sempre longe demais. E você não consegue voltar. Marc aparecia nos ensaios completamente chapado e furioso. Pode ser estranho, mas ele parecia feliz daquele jeito. Era inútil reclamar. Ele dizia que tinha acabado de ir ao médico e que todos os seus problemas estavam relacionados à banda. Dizia que as sessões eram muito dolorosas e que o médico o dopava. Aí ele corria para fora do estúdio, ria até se acalmar, voltava e ficava mais um pouco. Era preciso tomar muito cuidado com Marc, porque ele tinha um gênio violento e perigoso. Ninguém se metia com ele. Mas era engraçado quando o cara dava umas risadinhas e fazia uns barulhos estranhos de soluço depois de uma briga com a gente. Às vezes as coisas ficavam tão ruins que nós não conseguíamos ensaiar — Marc abaixava a calça até o tornozelo, empinava a bunda e começava a rebolar. Abria os braços em forma de asas e começava a balançá-los para cima e para baixo, como se estivesse tentando voar para nós. Depois ficava bicando com o nariz e começava a correr pela sala, em delírio, gritando “chicken beak boy! chicken beak boy!”. Foi durante as gravações em Long Island que Marc pirou completamente. Cheguei no estúdio e John e Joey estavam na porta, esperando por mim.

“Dee Dee, não entre”, disseram. “Tudo bem. O que aconteceu?”. “Pode ir para casa”, disseram. “É o Marc. Ele pirou de vez. Ele está aí dentro fazendo aquela dança do chicken beak boy. Ele realmente perdeu o controle. Parece grave, Dee Dee”. Tirei folga naquela noite. Fui para Whitestone e fiquei preocupado com tudo. No dia seguinte, quando voltei, o estúdio estava em ruínas. Todos os móveis tinham sido revirados. As janelas da cabine de controle estavam quebradas e cheirando a vodka e vinho barato. Os faxineiros estavam tentando limpar o estúdio. Johnny e Joey estavam lá mostrando a Billy Rogers, um baterista de estúdio de Nova York, uma música que queriam gravar. Marc não tinha aparecido. Nunca descobri o que realmente aconteceu, Perguntei para Johnny Ramone. Ele ficou olhando para mim com ódio, e eu percebi que havia alguma coisa errada. “Vamos trabalhar, Dee Dee”, respondeu, como se isso fosse uma explicação de onde estava Marc. Eu estava na lista negra de John. “Merda”, pensei. No dia seguinte fui a Manhattan, com Monte, para buscar Joey e levá-lo ao estúdio. Quando Monte saiu da van e tocou a campainha de Joey, fugi. Desci a 10th Street e a First Avenue para comprar pó. Encontrei uma traficante chamada Baby e peguei um pouco de cocaína. Não achei que ia me fazer mal, porque eu estava sem beber. Mas eu estava errado. Aquilo me transformou num esquizofrênico paranóico. Ficou impossível conviver comigo. Ninguém podia confiar em mim. Eu mentia para tentar me livrar de qualquer situação. Numa tentativa de mudar, fui procurar ajuda na Odyssey House. Fui também a um psiquiatra particular. Parecia que nada adiantava. Eu estava acabado demais. Hoje

dizem que eu fui a pessoa mais impopular que já frequentou a Odyssey House. Todo mundo ficou de saco cheio das minhas mentiras e dos meus vícios. Minha justificativa era que eu tinha me transformado naquilo por culpa deles.

Parte 4 ESTRADA PARA A RUÍNA Sob pressão Em meados da década de 80, os Ramones assinaram um contrato de três álbuns com a Beggars Banquet na Inglaterra. Tínhamos acabado de lançar o álbum Too Tough To Die e a gravadora estava fazendo o possível para promover a banda. Martin Mills, presidente da Beggars Banquet, contratou também o Cult. Queria que nós lançássemos “Bonzo Goes to Bitburg”. Johnny Ramone não gostava do título da música. E isso causou vários problemas. No álbum Animal Boy a música se chamou “My Brain Is Hanging Upside Down”, para agradar a Johnny Ramone, grande fã de Ronald Reagan. Pelo menos para o lançamento em compacto, Joey e eu lutamos pelo título original. E dessa vez ganhamos. Mas para esse álbum a Beggars Banquet fez todo o possível por uma música que compus com Dave Stewart, dos Eurythmics, chamada “Howling At The Moon”. Era sobre maconha. A Beggars Banquet entrou em contato com a Overland, o escritório que nos empresariava, e pediu para Joey e eu irmos a Londres promover o disco para a imprensa. Parecia ótimo — um bom modo de me livrar de Johnny e Marc por um tempo. Mas nós sabíamos que Monte teria que ir junto para cuidar da gente e garantir que iríamos cumprir nossa função. Quanto a isso não podíamos fazer nada. Monte precisava ir junto. Ele ia e ponto final. Monte tinha um lado sinistro. Nós o apelidamos de “O Detetive”, porque ele era muito intrometido. Não aceitava que alguém o enganasse. Era realmente um saco. O cara era uma massa de frustrações autopiedosas e uma companhia muito chata. Marc Bell apelidou Monte de “Carneirinho”. Nosso meigo Carneirinho. De propósito, para deixar Monte furioso. Marc ia à loucura dentro da van; ficava fazendo sons de carneiro até deixar Monte

descontrolado. Então o Carneiro ameaçava sair da pista e pisava no acelerador. Ficava com um olhar louco de ovelha e com a cara cor de beterraba e começava a gritar: “Agora nós vamos todos morrer, seus retardados de merda. Nós vamos morrer, todos nós, só porque você não cala a boca, Marc. Você é que é o Carneiro, Marc! Você! Você! Você!". E ficava pior. A partir dos 145 quilômetros por hora é que a emoção e a gritaria começavam de verdade. Os sons de carneiro no máximo da excitação. Eu não tinha apelidos carinhosos para Monte. Joey o chamava de “babaca” simplesmente. Para Joey todo mundo era babaca. Joey fazia Monte aguentar muita coisa. Talvez ele precise de um tratamento psicológico depois de se aposentar da estrada. Ele deve ter muita coisa para desabafar; em geral rock stars são pessoas difíceis. A gente fica ressentido. Eu encarei a viagem à Inglaterra exclusivamente como um meio de experimentar a boa vida. Esperava que todos nós fôssemos ficar unidos e deixar todo mundo com inveja ao voltar para Nova York. É irônico que eu precisasse fugir de uma banda de rock'n'roll popular para realizar minhas fantasias, mas eu era um amontoado de frustrações, e a essa altura estava muito desesperado. Dessa vez eu não estava brincando. Para cooperar com eles, exigi minhas drogas, minhas bebidas e uma femme fatale. Estava decidido. Nenhum empresário cretino ia sabotar minha diversão. Eu ia me divertir, me divertir e me divertir. Ninguém ia me dizer o que fazer. Pela cara de saco cheio de Joey, percebi que ele estava pensando o mesmo que eu. Por que não admitir simplesmente que nós precisávamos de farra? Quando nos arrastamos para o aeroporto. Monte já estava bancando o empresário preocupado. Eu, particularmente, achava que merecia me divertir um pouco. Eu estava fazendo todo aquele trabalho extra pelos Ramones — viajando para a Inglaterra, em fevereiro, para ser entrevistado pela pavorosa imprensa inglesa.

São os maiores babacas do mundo. Nós os chamávamos de intelectualóides. O que havia de errado em precisar relaxar? Meu Deus, que mal havia em tomar uns drinques e cheirar umas carreirinhas no banheiro antes de um vôo de seis horas? Monte veio até mim antes de embarcarmos no avião e disse para eu ter cuidado, porque provavelmente era um alcoólatra. “O que eles querem que eu faça?”, pensei. É por isso que eu sempre acabava agindo como moleque. Todo mundo ficava pegando no meu pé em vez de cuidar da própria vida. No avião mandei Monte se foder. Disse que eu estava puto, que estava quase ficando louco. Disse para ele se ligar. Que eu só tinha bebido um drinque naquela manhã — um Bailey's Irish Cream duplo misturado com uma dose de rum. Só bebi um bloody mary duplo durante as seis horas da viagem até Londres. Jurei um dia me vingar de tudo o que eles estavam me obrigando a sofrer. Sempre estragavam minha festa. Depois fui até o banheiro do avião e fiquei lá por vinte minutos. Monte com certeza ia pensar que eu tinha tido uma overdose no banheiro ou qualquer coisa assim. Funcionou. Pouco depois Monte estava batendo educadamente na porta do banheiro, como eu tinha previsto. “Tudo bem aí, Dee Dee?” Abri a porta com força e reclamei: “Ah, claro, tudo ótimo. Não consigo nem dar uma cagada em paz. Entendeu agora? Você é um babaca. Eu odeio você. E por causa de babacas como você que eu sou alcoólatra. E se eu sou, foi você quem me transformou. Ninguém liga para mim. Vou sair da banda. Assim que nós voltarmos para Nova York, eu vou consultar um advogado, e vou processar os Ramones e todo mundo, e quero que vá todo mundo se foder”. Monte não ficou nem um pouco nervoso. Simplesmente se aproximou e fez um som de carneiro na minha cara. Eu queria ser capaz de reproduzir aquele som para você — era alguma coisa como “bécéecéé hi hei hehei hii ha ha ha”. Horrível. Monte

fez o “ha ha ha” bem na minha orelha, o que me perturbou um pouco. A 13 mil pés de altitude os ouvidos ficam com o dobro da sensibilidade — ou seja, ele foi escroto. Voltei obediente para a minha poltrona. Quando o avião aterrissou no aeroporto Gatwick, o fiscal da alfândega deu a Joey o tratamento de sempre. Depois foi minha vez. Foi o limite, Aí reclamei: “Por que vocês não vão atrás dos bandidos de verdade?”. “Que?”. “Sabe, vocês são um bando de babacas — devolvam o meu passaporte, seus filhos da puta”. Acho que eu pus os caras no devido lugar, ou talvez eles simplesmente estivessem cansados e quisessem voltar para casa ou qualquer coisa assim. Não sei, não sou psiquiatra. Mas eles carimbaram “Privilégio Especial” no meu passaporte e disseram: “Bem-vindo à Inglaterra, sr. Colvin”. “Posso ir?”, respondi. “Sim, senhor”. “Ok, então. Até mais”, e fui em frente. Está vendo como as coisas podem ser fáceis quando você sabe se virar? Um motorista esperava por nós e por nossa bagagem para nos levar ao Kensington Hilton, onde nos hospedaríamos. Nessa época, sempre ficávamos lá, porque os pubs fechavam às três horas da tarde. O Kensington Hilton tinha um bar internacional para turistas e nós poderíamos beber direto, 24 horas por dia. Podíamos também pedir hambúrgueres e milkshakes a qualquer hora — mas nessa época, em vez do McDonald's, havia o Wimpy's, ou seja, era uma merda. Nós, como americanos, achávamos importante manter certos padrões no Reino Unido. Os quartos do Kensington Hotel de Londres eram uma verdadeira tentação — tinham uma máquina de vender bebidas

de onde saíam umas garrafinhas como as que servem nos aviões. Assim que entrei no quarto larguei minhas malas e me servi de uma dose de bourban, um scotch e depois outro bourbon, que misturei com um pouco de Coca-Cola quente. Aí apaguei por quarenta e cinco minutos. Quem me acordou foi uma sorridente Glorya Robinson, da Red Eye, que empresariava os Ramones na Inglaterra. Glorya havia sido minha namorada quando eu tinha dezesseis anos, em Forest Hills, e estava casada com um inglês e morando na Inglaterra. Glorya não era nenhuma santa, mas mesmo uma pessoa experiente como ela tinha receio de lidar comigo. Ela era durona e estava preparada para mim. “Dee Dee, seu merda. Levante. Levante imediatamente. É sério. Querem entrevistar você. Levante, seu preguiçoso! Eu odeio você!”. “Pô, que jeito de começar o dia”, pensei. “Ok, Glorya”, disse, “estou quase pronto. Tem um baseado ai?”. Ela sabia que eu ia pedir. Mas não tinha. Naquela época parecia que ninguém na Inglaterra tinha fumo. Talvez algum haxixe preto sinistro, mas fumo, não. Todo mundo tinha que se contentar com cerveja, speed e uísque barato. Glorya só tinha um pint de bebida pela metade na bolsa para se virar pela tarde inteira, e por isso não insisti. Isso é a Inglaterra, pensei. Um saco. Depois rolei para fora da cama, porque os entrevistadores estavam começando a bater na porta. Só deixei os caras entrarem na esperança de que tivessem um baseado. Mas eram simplesmente dois típicos jornalistas bêbados de cerveja. Daquele tipo que acha que sabe tudo — esnobes do punk que odeiam em dobro os americanos porque são melhores nisso do que os Limeys. E nós sabemos disso, e eles se ressentem muito conosco. A garota que preparou o gravador era a esnobe. O cara

que estava com ela parecia um estudante “pobre” de uma família rica britânica. Quebrei o gelo dizendo “e aí, vocês têm algum?”. Parece que funcionou. Eles tinham mesmo. “Temos, Dee Dee. E é de primeira”. “Speed?”. “E, do melhor”. Aí eles bateram algumas carreiras para mim e pouco depois eu estava sentindo muita pena de mim mesmo, mas também feliz por ter uma desculpa para dar um escândalo. Mas primeiro eu precisava dar a entrevista. “Dee Dee, como os Ramones influenciaram os Sex Pistols?”. “Sei lá. Quem se importa? Por que criar problema me fazendo esse tipo de pergunta logo de saída? Vocês me dão medo. Vão embora. Vão embora já”. Aí foram para a pergunta seguinte. “Dee Dee, o que você achava das bandas punk britânicas?”. Deu um branco. Fiquei tão confuso e me sentindo tão desonesto que comecei a ficar realmente irritado. “Vão embora. Vão embora já”, protestei. “Ok, o Johnny Moped era legal”, foi o que saiu da minha boca. “Eu gosto dele e do Damned. E o X-Ray Spex também é legal”. “Então, qual é sua banda britânica favorita, Dee Dee?”, interrompeu a esnobe. “Eddie and the Hot Rods. Agora vá se foder, colega. Vão embora. Vão embora já. Eu estou cansado disso tudo: “Mas e os Bay City Rollers, Dee Dee?”. “Ah, peraí. Agora você está falando comigo. 'Saturday Night é a melhor música da new wave, colega. Agora vá se foder”.

“Quer mais speed?”. O quarto pareceu adquirir um tom verde-limão, enquanto a curta tarde inglesa começou a se transformar numa sombria noite inglesa. Speed. Maldito speed. Deixa a gente louco. A esnobe e o estudante saíram depois de algum tempo. Muitos outros entrevistadores entravam e saiam do quarto. Esvaziamos o minibar três vezes em três horas e chamamos o serviço de quarto para pedir cerveja e Coca-Cola. Eu estava em perfeita forma, mas um tanto quanto detonado. “Alguééém teeem um baseaaado aííí...?”. Alguém prometeu arranjar um. “Eu quero. Eu quero agora. Aaaah...”. Depois me enchi e sugeri que fôssemos encontrar Martin Mills e os amigos dele no restaurante coreano do lobby e escapar dos jornalistas. Dei uma desculpa e, quando abriram um espaço, Glorya e eu nos enfiamos no elevador e descemos até o lobby. Nem perdemos tempo de expulsar todo mundo do quarto. “Martin está pagando”, disse Glorya. “Não se preocupe, Dee Dee. Esses jornalistas são só uns intelectualóides. Ninguém pode fazer nada por eles. Mas use os jornalistas.”. O pessoal da imprensa estava esperando no lobby quando chegamos. De algum modo, eles tinham sido mais rápidos. Nem tentamos ser educados. Era tarde demais. A guerra já tinha começado, e nós simplesmente ignoramos todo mundo e fomos para o restaurante onde Martin e os amigos dele nos esperavam. Não me lembro de nada do jantar — apaguei imediatamente em cima do meu bife ao alho. Ninguém queria falar comigo de tanto que eu estava fedendo, tinha dormido com a cara no alho picado. Não tinha nada para fumar. Eu estava infeliz. Queria voltar para Whitestone, fumar uma Thai e ouvir a rádio LIR. Foda-se isso, pensei.

Fiquei paranóico com toda aquela bebida e speed, mas o Kensington Hilton sempre tinha um bom café da manhã, que aguardei ansiosamente. Na minha condição, eu me senti andando por um campo minado e pisando em bombas de baixa auto-estima que explodiam a culpa na minha cabeça. Em poucas palavras, eu estava me matando. Fui tomar o café da manhã, de algum jeito. Não sei como consegui. Mal parava em pé. Saia pus dos meus olhos e sangue do meu nariz. Voltei para o quarto envergonhado, esperando que ninguém fosse me ver, mas o hotel tinha uma daquelas malditas fechaduras a cartão magnético. Acabei fazendo tanto barulho ao tentar entrar no quarto que acordei Monte. Eram mais ou menos sete e meia. Monte tinha acabado de ir para a cama. Mas ficou feliz de me ver. “Dee Dee”, ele disse, “graças a Deus você está aqui. Eu não me lembro muito bem da noite de ontem. Mas fiquei preocupado. Você sabe como as coisas podem ser e... e... e…”. Ele estava com um abajur na cabeça e um rabo de coelho felpudo grudado na cueca. Ainda estava fedendo a bebida e as narinas estavam cobertas com um pó branco que eu só posso concluir que era alguma droga. Ouvi uma voz jovem e feminina chamando Monte de volta para o quarto. Parecia francesa. “Monti, Monti, querridô..”. Monte pediu desculpas, como um cavalheiro, e bateu a porta na minha cara. Que hipócrita, pensei. Imagino qual será a desculpa. Serei eu? Tá bom. E o comportamento secreto de Monte, atrás da porta, na privacidade de um quarto de hotel? Bem, eu vou parar agora mesmo. Não quero ser o bebê chorão dos Ramones, e por isso não vou dedurá-lo. Só pensava em me livrar de Monte e dormir algumas horas até poder ligar para a portaria e pedir para encherem de novo a máquina de bebidas do meu quarto. Pouco depois já eram onze horas e Glorya entrou no meu quarto tropeçando. Estava tentando manter o profissionalismo, ser

delicada. Não fazia diferença. Eu ainda estava de pé. Sou profissional. BBC, Melody Maker, New Musical Express, Sounds. Muita coisa. Glorya estava com a paranóia de que eu não ia conseguir. E eu estava acabado. Depois, quando vi Monte e Joey, notei que eles estavam acabados também. Estávamos todos muito fodidos. “Nós somos uns fracassados”, eu disse. “Olhem para nós. Estamos ridículos. Joey, vá se olhar no espelho, você ainda está fedendo de bêbado. É meio-dia ainda. Monte, parece que você apagou tudo de novo. Quer que eu ajude a lembrar o que você aprontou ontem à noite? E... e... e...”. Eu tremia tanto que era difícil continuar. “Cara, eu preciso de uma cerveja. E vocês também”. Todo mundo concordou categoricamente. Monte foi até a máquina e tirou umas Cocas e scotch. Ele estava tremendo também. Eu sabia que precisava me controlar, e por isso chamei o serviço de quarto e pedi cerveja e café. “Vai dar tudo certo”, eu disse. Glorya assinou a conta em nome de “Martin Mills, Beggars Banquet”. Era uma conta meio pesada. Mas eu sabia que no fim era eu quem teria que pagar tudo. Todo mundo sabe. Passa rápido. É assim. Todo mundo conhece a história. Nós já tínhamos experiência suficiente para saber aproveitar o quanto pudéssemos antes que fosse tarde. Simplesmente dê essas entrevistas o mais rápido que puder, cancelando quantas forem possíveis. O disco não vai vender mesmo. Vamos nos divertir. Demos as entrevistas rapidamente e voltamos para o restaurante coreano. Aquela noite era de festa. Hip, hip, hurra! É isso aí! Festa, festa, festa! Noite do Embassy. “Glorya”, eu disse. “Primeiro cancele todos os fanzines, Ok?”. Eu simplesmente não aguento entrevistas. Acho uma merda. E sempre uma situação conflitante, me coloco na defensiva. Aí, eu

termino pirando e gritando: “Vão embora! Vão embora!”. Uma vez, vi Jeffrey Lee Pierce, do Gun Club, pirar numa noite em que tocamos com eles numa pequena cidade em algum lugar do sul da França. Ele estava sendo entrevistado por uns intelectualóides franceses e de repente pirou. Pegou sua Fender Strat branca pelo braço, ergueu-a acima da cabeça e começou a gritar: “Vão embora! Vão embora, seus franceses filhos da puta, e não voltem nunca mais!”. Isso me lembra muito uma vez em que Johnny Ramone ficou erguendo sua Mosrite acima da cabeça, e gritando “vai embora! vai embora!” para Malcolm McLaren no camarim do Whiskey A Go Go. E várias outras histórias parecidas. Mas dizem que, no restaurante coreano, eu abaixei a calça, subi em cima da mesa de jantar e tentei fazer a dança do chicken beak boy como tinha visto Marc Bell fazer tantas vezes. Eram sete da manhã. Subi até meu quarto e tive uma festa de cinco horas regada a speed para ficar no clima para o Embassy. O Embassy nem era tão especial. Lá era difícil conseguir as garotas, você voltava para casa sozinho. E chapado. O legal do Embassy era o horário: ficava aberto até tão tarde que você não precisava ir para casa. Era divertido, mas não de verdade. A diversão era o bar e ficar chapado no banheiro. Você imagina como é tentar me colocar num táxi e me levar para casa depois de uma noite fora? Às vezes era muito, muito complicado. É fácil ficar preso num lugar em Londres. Os táxis não param para você. Especialmente se você é americano e está muito bêbado. Os motoristas perto do Hilton são razoáveis. Eles até podem levar você, mas correm e falam demais. Acho que eles pegam muitos músicos naquele hotel. É bom quando eles estão perto do Embassy às seis da manhã, mas eles nunca estão. Eu já sabia como era e estava de saco cheio. Esses caras não vão tornar a minha vida mais difícil sem pagar por isso. De jeito nenhum. Mas uma coisa simples como pegar um táxi pode

ser um pesadelo para alguém como eu, e por isso é sempre bom ter umas garrafas de cerveja em Londres, tarde da noite, para jogar nos táxis. Eles se tornam inimigos. Eu poderia me divertir, mas não sabia como. Talvez sair para comprar roupas no Kensington Market, mas nunca fiz isso enquanto estive na banda. Poderia ter tentado conhecer uma garota, mas eu estava fodido demais para isso. A maior parte do tempo eu ficava no hotel, deprimido. É do que mais me lembro — das ressacas no quarto. Mal-estar. Nada para fazer. A parte chata. Eu me odiava e odiava o mundo estreito em que estava vivendo. Não tinha como sair. Nenhum lugar era tão seguro quanto o que me destruía. Minha vida parecia tão vazia quanto o rastro de latas de cerveja que eu deixava onde quer que fosse. Às coisas estavam ficando pretas. Eu estava à beira de um colapso. Não sei como alguém conseguia me aguentar. Todo mundo estava se tornando meu inimigo. Eu estava puto com todo mundo. Todo mundo me odiava de morte. Eu odiava turnês. Era uma vida tão tediosa que qualquer novidade — como simplesmente me livrar dos outros caras durante alguns dias — era um grande barato. Aquilo estava me enlouquecendo. Um certo pânico do tipo “você não vai sair dessa vivo” começou a me dominar. Voltando para o hotel, de manhã cedo, percebi que estava encrencado. Era óbvio demais, como o céu em chamas sobre Berlim depois de um bombardeio na Segunda Guerra Mundial. Eu sabia que alguma coisa horrível estava para acontecer, como ver Kessie, a dachshund da família, se afogando no Wansee de Berlim enquanto meu pai, bêbado, simplesmente ficou olhando. Eu sabia que estava encrencado. Não era uma sensação boa. Voltei para o meu quarto para fazer as malas e me aprontar para o vôo de volta a Nova York. Estava com muita pena de mim mesmo, arrependido dos meus pecados. Com pena de Kessie,

minha dachshund, por tê-la decepcionado. Era uma culpa terrível. Tentei fortalecer meus nervos completando com bourbon uma lata de Coca-Cola pela metade. Faz bem, pensei; é como remédio para tosse. No táxi até o aeroporto de Heathrow, preparei mais um drinque, para conseguir entrar no avião, ir para minha poltrona e esperar o bar abrir. Depois que decolamos, chamei a aeromoça. Pedi quatro garrafinhas de rum e duas latas de Coca. Ela me atendeu bem, mas riu ao colocar as bebidas sobre a minha mesinha. “O senhor não vai dar trabalho, vai?”, ela perguntou. “Não, não”, respondi. “Só vou tomar esses drinques e apagar. Me acorde em Nova York, tudo bem?”. Tenho certeza de que ela pensou: “Ah, tá legal, ianque, acho que está tudo beleza”. Ela saiu rebolando pelo corredor em direção à parte traseira do avião e eu virei a cabeça para dar uma olhadinha para a bunda dela. Aí, bem rápido, para não chamar a atenção, abri uma das garrafas de rum e bebi inteira em um gole. Depois abri a outra garrafa e virei também. Despejei os outros dois runs numa lata de Coca que eu tinha aberto e tomei metade. Quando estava terminando a outra metade da lata com o rum, realmente apaguei por quatro horas. Quando acordei, sabia que precisava de um drinque. “Aeromoça, por favor, eu preciso beber alguma coisa”. “Desculpe, mas o bar está fechado. Vamos aterrissar em meia hora”. “Como assim? Me dá alguma coisa, eu bebo rápido. Tem algum problema? Eu te dou quinhentos dólares, sério! Aqui, pega o

dinheiro!”, eu disse, empurrando um bolo de notas de dólares. Mas ela recuou. “Aperte o cinto”, ela disse, olhando para mim e andando de costas em direção à traseira do avião. O avião simplesmente começou a dar uns pinotes doidos. Ela caiu e acabou rolando pelo corredor como uma bola de boliche, derrubando as outras três aeromoças em cima das poltronas dos passageiros. Uma delas foi parar no banheiro, arrombando a porta e revelando Monte Melnick, que estava ali dentro dando um cagão. Ele estava fedendo de bêbado. Não fazia idéia do que estava acontecendo. Fiquei feliz com aquele caos todo e pensei em aproveitar que estava todo mundo distraído para roubar umas bebidas do carrinho. Por algum motivo, a avião balançou violentamente e deu uns dois ou três pinotes bem fortes. Na terceira vez o carrinho escorregou pelo corredor — e por mim poderia ter arrombado a saída de emergência, voado pelo céu frio e escuro e caído a três mil pés no oceano gelado. Então abandonei qualquer esperança de conseguir uma bebida. Meu cérebro estava zumbindo como se eu estivesse com vespas dentro da cabeça. Eu ia ter um delirium tremens se não bebesse. Precisava desesperadamente de uma bebida, mas sabia que não ia conseguir. Meu corpo começou a se preparar para sair de controle. A anunciaram: “Atenção, nós vamos voar em círculos sobre o JFK durante três horas devido ao excesso de tráfego de inverno nesta noite;ainda não temos permissão para aterrissar”, Foi nessa hora que alucinei na minha poltrona. Tive um colapso. Não acreditei no que tinha ouvido. Eu realmente precisava de torazina. Depois de uma hora eu estava em péssimo estado. O avião estava balançando para cima e para baixo, batendo em massas de ar, caindo e depois subindo em noventa graus para evitar um desastre. Ficou voando em círculos. Pensei em suicídio. Pensei

em saltar pela saída de emergência com um pára-quedas. Fiquei tentando esconder meu colapso dos outros passageiros e das aeromoças, mas acho que eles perceberam. Tudo estava desmoronando. “Nããããããão!!!!!”, eu gritava sem parar em pensamento, quando anunciaram que íamos voar até o aeroporto de Hartford, em Connecticut, para aterrissar, reabastecer e esperar uma permissão para voltar e aterrissar no JFK. “Nããããããão!!!!! Nããããããão!!!!! Por que eu?? Por Favor!! Isso não pode estar acontecendo comigo!!”. “Senhoras e senhores”, anunciaram depois, “estamos agora nos dirigindo a Hartford. Queiram apertar os cintos de segurança”. “Nããããããão!!!!!’ Por que eu???”. Eu já tinha vasculhado as almofadas da minha poltrona e o encosto da poltrona da frente, que são os lugares onde as pessoas normalmente deixam as garrafas de bebida vazias nos vôos transatlânticos. Tentei encontrar uma garrafa que ainda tivesse umas últimas gotas de bebida sobrando. Só encontrei um anel de alumínio de uma das latas de Coca. Fiquei brincando com aquele anel entre o indicador e o polegar. Parecia afiado. Fiquei pensando se daria para ir até o banheiro e usar aquele anel como navalha para cortar os pulsos e acabar de uma vez por todas com a minha vida desgraçada. Comecei a sonhar que, se aterrissássemos logo, eu poderia ir até um daqueles mercados coreanos da Third Avenue e comprar uma embalagem de seis latas de cerveja, mas logo deixei a idéia de lado. Conseguir alguma coisa para beber não parecia mais ser possível. O importante era não perder a sanidade. Comecei a ensaiar minhas explicações e desculpas para o caso de pirar.

Psicoterapia

Quando voltei para casa, em Whitestone — o avião acabou aterrissando no aeroporto de Newark, em Nova Jersey, e não no JFK —, eu estava realmente mal. Tive a certeza de estar ouvindo música clássica. Liguei e desliguei o aparelho de som. Não, não vinha do aparelho de som. Chequei o telefone. Não, não vinha do telefone. Da TV? Não, nenhum som da TV. Chequei tudo. Na minha loucura chequei o buraco da tomada para ver se “eles” estavam transmitindo. Não consegui descobrir de onde vinha a música. O volume estava ficando cada vez mais alto. Decidi tomar um banho quente para me acalmar. Quando me sentei dentro d'água, comecei a tremer muito. Era estranho — como se eu estivesse sentado não numa banheira, mas no mar. Fechei as portas de vidro do boxe para concentrar o vapor. Então, de repente, as portas estouraram e o vidro se quebrou em centenas de pedacinhos pontiagudos. Era assustador. Qualquer que fosse a força que quebrou a porta do boxe, não era uma força sutil. O estouro foi feio, mas nenhum pedaço de vidro entrou em mim ou me cortou, não sei como. Mas ainda assim entendi o que aquilo significava. O vidro cobriu o fundo da banheira como areia num balde. Pulei para fora. Eu sabia que era uma mensagem do submundo para mim — uma saudação do inferno. A essa altura eu estava realmente paranóico. Vinte minutos depois, eu fiz uma ligação. “Alô, aqui é Dee Dee Ramone. Eu estou ficando louco. Mandem uma ambulância. Estou enlouquecendo, não vai ter volta. Estou falando sério! Louco incurável, entendeu? Furioso! Completamente insano!”. Mas, depois de ligar para o serviço de emergência, falei com Tony Blow, meu fornecedor de cocaína. “Alô, Tony? É o Dee Dee. Dá para entregar agora? É urgente”. Ele veio, eu comprei a coca e cheirei. Cheirei com uma rapidez impressionante, de tanto que estava acostumado a fazer aquilo e sair correndo depois. Aí, do

nada, a polícia e os paramédicos entraram na minha sala de estar. Meu Deus, eu vou para a cadeia, pensei. Mas o detetive estava sorrindo. Fiquei pasmo. “Dee Dee, meu amigo”, disse ele, “está querendo ir para o centro da cidade?”. Era mais ou menos a quinta vez que eu seria levado. Eu não sabia o que pensar, mas, quando consegui completar um raciocínio, percebi que aquilo poderia ser um jeito de sair de Wihitestone. Precisava ir para o centro e arranjar mais cocaína. Estava desmoronando. Só conseguia pensar em mais coca, mais coca, mais coca... “Detetive”, eu disse, tentando parecer alegre, “será que nós poderíamos dar uma passadinha no East Village?”. “Por que não, Dee Dee?”, respondeu o detetive. “Ótima idéia”. E um milagre, pensei. “Já estou pronto. Vamos", eu disse a ele, e fomos para o camburão. Comecei a bolar um plano. Quando estivéssemos na altura da 10th Street, no East Village, eu pularia para fora do camburão e fugiria. Calcule que eu conseguiria sumir de vista até ele encostar e correr atrás de mim. Planejei encontrar Baby, comprar o pó e cheirar tudo de uma vez para que a polícia não o tirasse de mim. Eu já sabia que eles iam me pegar de novo em pouco tempo, mas o que eu poderia fazer? Era minha melhor opção. Mas o policial me enganou. Ele foi mais rápido do que o normal. Na verdade ele estava me raptando. Ir até o East Village, a 10th Street e tudo o mais era só uma tática de distração que ela tinha armado para me acalmar. Na verdade o detetive ficou tentando ser todo bonzinho e me levar até o hospital para que eu não pirasse completamente. Ele já tinha avisado a um grupo na

Gracie Square que estava me levando, e todo mundo ficou na rua esperando por mim. Em geral consigo me virar em Manhattan, mas dessa vez eu estava tão chapado que não sabia me localizar. Eu estava pirando. lá tinha tomado praticamente tudo o que conseguia aguentar. Entrei em pânico, e na minha confusão escancarei a porta do meu lado do camburão e saí correndo pela calçada como um louco. O problema é que eu não estava no centro, mas bem em frente à Gracie Square, e o dr. Finkel — para quem eu tinha sido transferido pelo dr. Hench, da Odyssey House — estava lá, aguardando que me trouxessem. Ele me viu na hora. Obviamente esperava que eu desse trabalho e seus assistentes do hospital estavam em posições estratégicas no quarteirão. Fui pego com facilidade — estava muito fora de forma e perto de um colapso total. Puseram uma camisa-de-força em mim e me deram uma dose pesada de torazina para me acalmar. Depois de me forçarem a entrar no prédio e no elevador, o dr. Finkel pegou um estetoscópio, um bloco de notas e me examinou. Em três minutos, o tempo mínimo de observação exigido por lei, ele me declarou totalmente insano e me colocou no quarto silencioso para que eu passasse a noite. Não me lembro do que aconteceu depois; só sei que acordei no dia seguinte no quarto de borracha da Gracie Square, uma instituição famosa em Nova York. Era mais ou menos como aquele lugar que aparece no vídeo de “Psycho Therapy”, dos Ramones. Era muito assustador. Eu estou habituado ao pior, mas aquilo era o absoluto fundo do poço. Estar cercado por um bando de maníacos era demais para mim. Comecei a me sentir muito confuso e com pena de mim mesmo. Não fazia idéia de onde estava — se em Manhattan, no Queens ou mesmo na Califórnia. Só sabia que estava preso, mas não na cadeia. Estava numa espécie de névoa profunda.

A sala de borracha. Era insano. No começo fiquei alucinado, mas depois caí num vale de depressão sem saída e não senti mais nada. Todo mundo usava uma camisola verde e uns chinelos com aquela carinha amarela sorridente. Imagino que, quando você está entorpecido de torazina e a sua cabeça começa a cair, a idéia é olhar para aquela carinha e se animar. Eu estava com a mesma expressão vazia de todo mundo, e nós ficávamos nos olhando. Quando havia algum problema, geralmente era porque alguém olhava para o outro do jeito errado. Até hoje, fico louco quando alguém olha para mim do jeito errado. Depois comecei a melhorar e me colocaram entre os pacientes comuns. Fui dividir um quarto com um negro. Ele era calmo e bem comportado. Só ficava deitado na cama, dormindo de olhos abertos, enquanto eu me sentava na beira da janela e ficava olhando para uma lâmpada. Eu já estava me acostumando quando puseram no nosso quarto um latino viciado em crack e com os pulmões destruídos. Ele ficava se contorcendo a noite inteira. Os dentes dele rangiam e os pulmões chiavam. Depois ele apagava durante uma hora e começava a roncar. O barulho era tão assustador e incômodo que o dr. Finkel decidiu me pôr num quarto com uns caras em melhores condições e mais acostumados ao hospital. A idéia era que eu seria capaz de me recompor e de acalmar os nervos. Puseram-me com um negro enorme chamado Tree Top e uma drag queen latina afetada e obesa. Tree Top era forte como um carvalho, mas boa gente e nada violento. A drag queen me deixava em fúria. Ficava o dia inteiro falando sobre a mãe ninfomaníaca, sobre a infância no Bronx e sobre um lugar que frequentava chamado Indian Rock. Eu era o mais velho, o único viciado em heroína e o único que nunca tinha usado crack. Eu não conseguia conviver com aquele nova safra de viciados. Era sinistro. Dá para imaginar o quanto Tree Top e a drag queen me davam nos nervos? Eles estavam

de ótimo humor e encantados por eu estar ali. Ficavam planejando nosso futuro juntos e tinham decidido que íamos nos encontrar quando nos deixassem sair. A drag queen queria me levar para um parque qualquer do Bronx e me mostrar o Indian Rock. Eu estava pirando. Não tinha dormido nada por cinco dias. Fui obrigado a frequentar aulas e reuniões dos AA o dia inteiro, e depois me puseram num grupo de terapia. Eu precisava fazer alguma coisa, e então comecei a me esconder num espaço entre minha cama e à parede para que ninguém me encontrasse e eu não precisasse ir a lugar nenhum. Mas Tree Top era meio idiota e não queria sair do quarto se eu não fosse com ele. Depois resolvi simplesmente me enfiar no vão entre minha cama e a parede. Aí Tree Top começou a perder o controle. O olhar dele foi ficando cada vez mais demente e paranóico. Qualquer um saberia dizer onde eu estava escondido, de tanto que ele deixou claro que tinha alguma coisa ali. Quando o dr. Finkel entrou no quarto para ver o que estava acontecendo, ele gritou: “Cadê o Douglas, Tree Top?” — e Tree Top apontava para o meu esconderijo e dizia: “Ali”. Foi foda. E me obrigaram também a jogar vôlei. Um pesadelo. O ronco de Tree Top e o blá-blá-blá da drag queen acabaram me fazendo perder a cabeça. Foi no quinto dia, às quatro da manhã, que eu finalmente fiquei louco. Esvaziei uma lata de lixo e comecei a bater nela com uma lata de Coca-Cola. “Bom dia, seus filhos da puta! Bom dia, seus babacas de merda! Bom dia, ouviram? Eu vou dar o fora daqui! Vocês me deixaram insano. Estão satisfeitos?” Ai, gelei. A cara feia da drag queen estava com um olhar muito triste. Tree Top ficou assustado e se escondeu entre a cama e a parede, “Já vi de tudo”, pensei. “Não aguento mais isso”. Simplesmente calei a boca. O clima estava terrível. Estávamos todos esgotados. Peguei uma sacola de compras e um saco plástico preto da Hefty e comecei a recolher minhas coisas.

“Tchau, seus babacas!”, gritei, e fui saindo pela porta em direção ao corredor. “Aonde você vai?”, gritou Tree Top. Eles me deteriam de qualquer forma, então resolvi tirar vantagem da situação e me divertir um pouco. “Tô me mandando daqui! Tô indo embora!”. “Dee Dee, querido”, disse a drag queen, me desafiando a fazer mais algum movimento. “Se você criar caso aqui, vão pôr você numa camisa-de-força e te jogar na sala de borracha”. “Mas eu só quero ir embora”, eu disse, me sentindo meio derrotado. “Meu Deus!” disse Tree Top. “Cara, você não pode simplesmente sair quando quer! Isto aqui é um hospício! Você perdeu todos os seus direitos humanos quando te trancaram neste lugar. Portanto, cala a boca!”. “Nem a pau. Vou embora”. Mas fiquei bastante indeciso, e não queria voltar para a sala de borracha. Me senti desmoronando de novo, e então o dr. Finkel entrou no quarto. Ele tinha trabalhado sem parar durante cinco dias seguidos, sem ir para casa e sem fazer a barba. Olhei para a barba dele e pensei: “parece um revolucionário marxista”. Fiquei calmo na hora e decidi também não fazer mais a barba. Isso vai deixar os caras loucos, pensei. Mesmo Johnny Ramone tinha me dito uma vez que raspar a cabeça e deixar a barba crescer era o máximo. Aliás, foi o que eu fiz. Enquanto eu digeria aquelas informações, Tree Top e a drag queen ficaram sem respiração. Comecei a perder os sentidos; o dr. Finkel estava a ponto de perder a compostura, e então quebrei o gelo. “Nós não estamos fazendo nada!”.

“Bom, então que confusão era essa, Douglas?”. “Ah, não era nada”. “Bom, então vão dormir! Amanhã vai ser um dia longo”. Eles me deixaram sair duas semanas depois. Quando voltei para o meu apartamento, em Whitestone, eu tinha uma barba. A barba realmente deixou todo mundo louco, Johnny Ramone foi totalmente contra. Durante os cinco anos seguintes eu lutei pelo direito de ter barba. Argumentei com o fato de que todos os meus psiquiatras tinham. Às vezes eu cedia e raspava. Aí deixava crescer de novo. Prometi para mim mesmo que um dia eu poderia fazer como quisesse. Como Fidel Castro, o dr. Finkel, os caras do ZZ. Top ou o cara do papel para cigarros que eu uso para fumar maconha. Eu via a barba como uma recompensa por ser um tipo fora-da-lei bem-sucedido, como eu. Significava: “Não mexam comigo, não encham meu saco. Eu sou mau. Larguem do meu pé, seus filhos da puta”.

Los Ramones Na época da turnê dos Ramones pela América do Sul, a última coisa de que eu precisava era de mais cocaína — mas fui guloso, e afinal é de lá que ela vem. Quando finalmente chegamos em Buenos Aires, que era a última cidade daquela turnê, eu estava realmente doente. Estava numa pior e muito desmoralizado. Depois de passar pela alfândega, me livrei da banda, que ficou de papo com as groupies locais. Eu tinha tentado arranjar maconha em todas as cidades da América do Sul, mas sempre sem sorte. Era difícil de conseguir. Eu estava alucinado quando chegamos na Argentina, e por isso fugi de todo mundo para tentar arranjar erva em algum lugar do aeroporto. Encontrei por acaso um cavalheiro latino-americano que disse que poderia me ajudar. Fomos juntos até o estacionamento, e ele tinha erva no porta-malas do carro. Era um carro chique — ele obviamente era algum tipo de sobrevivente bem-sucedido.

Aí fomos embora. Entrei no carro e ele me levou para o hotel. Disse que poderia arranjar quanta cocaína quisesse, mas não queria. Tinha morado na selva, com os índios, num campo de pasta de coca. Disse que tinha usado diariamente enormes quantidades de cocaína até chegar no fundo do poço. Aí teve que voltar lentamente à sanidade. Disse ter sido realmente prejudicado pelas drogas — que usar drogas não dava certo. “Dee Dee”, ele disse, “todo mundo sabe que Che Guevara mandava drogas para os Estados Unidos para foder com a sociedade americana”. Sempre que eu fazia turnês pela América do Sul com os Ramones, voltava para casa acabado. Sempre, antes de ir, eu tinha esperanças de que aquela seria “a” turnê. Em Whitestone praticamente a coisa mais excitante que eu fazia era ver as garotas dos vídeos do ZZ Top na MTV. Estava ansioso para ir ao Rio, a cidade que se vangloria de ter as mulheres mais bonitas do mundo. Todos sentiam a mesma coisa, mas estávamos também tentando manter nossa vida doméstica em paz. Quando Monte veio me buscar, tentei me fazer de triste e me despedi carinhosamente do Sr. Smith, meu papagaio de estimação, para que ele não se magoasse. Monte me apressou até a van. Assim que entramos na Brooklyn-Queens Expressway, gritei “hip hip hurra!” e acendi um baseado. Comecei a imaginar praias de topless, garotas e cocaína. “Esqueça, Dee Dee”, disse Monte. Ele sentiu o perigo. “Só vamos para São Paulo e Buenos Aires. No Rio, as distrações são muitas. E por isso eu pedi ao promotor para não agendar shows lá”. Não pude acreditar. Monte parecia conseguir dificultar muito as coisas. Tentei me fazer de inocente para mantê-lo calmo. Afinal, era ele quem estava dirigindo. Ele já tinha ameaçado sair da pista ao se irritar, e eu achava que um dia ele realmente iria fazer isso. Eu só queria me divertir na América do Sul, bem longe de Whitestone.

Quando chegamos ao aeroporto, vi Joey e os outros esperando para embarcar. Dava para perceber de cara que eles estavam tentando esconder alguma coisa, tentando ser discretos, mas era fingimento. Eu fingia também. Estávamos tentando manter uma fachada profissional, mas sorríamos em segredo uns para os outros, sugerindo pecado e devassidão, para manter a coragem. Todo mundo entrou no jogo e se comportou bem durante o vôo. Passamos pela alfândega sem problemas, fomos para os nossos quartos de hotel em São Paulo e não tinha nada para fazer. Eu estava muito ansioso — mas até que este lugar não é tão ruim”, pensei. Eu já tinha feito uma encomenda de cocaína e alguém deveria buscá-la para mim enquanto eu esperava no meu quarto de hotel. Demoraram demais e eu me enchi. Estava a ponto de pirar. “Filhos da puta! Veados! Eu odeio todo mundo! Estão felizes agora? É isso que vocês queriam?” Depois de cinco horas, só o que eu tinha era a enrolação de sempre. Nunca me senti tão miserável na vida. Era a minha única chance de cheirar cocaína na América do Sul — e a vida fez mais uma piada de mau gosto comigo. Todo mundo para quem eu tinha perguntado dizia que era muito fácil achar. Que era excelente. Que dava para conseguir em qualquer lugar, que o grama custava dez dólares, que eram as pedras mais puras que existiam. Então por que eu estava sem? Típico. Também não nos levaram maconha. Era um pesadelo. Fiquei a noite inteira esperando o telefone tocar, mas ninguém ligou nem veio até o meu quarto. Até que finalmente nós deixamos um fã entrar no camarim, depois do show. Em geral não fazíamos isso, mas eu estava desesperado. Tive que ficar ali, batendo papo com ele, enquanto ele demorou uma eternidade para enrolar um baseado composto por noventa por cento de papel, tabaco e uma quantidade tão pequena de haxixe preto que nem senti.

Eu esperava uma festa na volta ao hotel, e não me decepcionei. Foi bem animada. O show tinha sido um grande sucesso e um monte de latinas gostosas rondavam com as minissaias mais curtas que já vi. Elas se ofereciam para nós e tentavam entrar no elevador e ir para os quartos com a gente. A elite do underground brasileiro ficou esperando por nós no lobby do hotel. Os hóspedes estavam no bar e no lobby, todos muito, muito chapados. Não tinham a menor pretensão de ser tipinhos comportados. Que nada. Foi ótimo. Que grande noite! Tinha um médico que distribuía cocaína para alguns eleitos. Diziam que comprar coca dele era o máximo. O cara levava uma pastinha preta de médico e usava um uniforme branco. Fez todo mundo se sentir melhor. Eu nunca tinha me divertido tanto; fiquei subindo e descendo pelos elevadores, fazendo caretas para as pessoas, correndo pelos corredores e gritando. Minha farra azedou por volta das oito da manhã, no café do lobby do hotel. Fiquei ali sentado, desmoralizado e quebrado. Pedi umas cervejas e tentei comer alguma coisa de café da manhã, para ver se eu me recompunha, mas a ressaca estava começando a me derrubar — e eu ainda tinha que fazer as malas e pegar um vôo uma hora depois.

Coração envenenado Quando voltamos para Nova York, uma série de boatos estava circulando. Problemas para todos. Fomos direto para o estúdio para trabalhar no álbum Animal Boy. As coisas estavam mais agitadas do que o normal, Matt Lolya, da nossa equipe de turnê, apareceu no estúdio com as coisas dele num saco plástico preto da Hefty e numa sacola de compras de um supermercado do Brooklyn. Tinha sido expulso pela mulher. Era um jeito estranho de gravar um álbum. Nas gravações de uma música chamada “Love Kills”, sobre Sid Vicious, eu estava tão nervoso que não consegui gravar a linha

do baixo e John acabou fazendo isso. Pedi desculpas e fui até o banheiro pegar uma bebida, uma garrafa de vinho que eu tinha escondido entre a lata de lixo e o saco plástico interno. Aí voltei para o estúdio e discuti com todo mundo, mas já não fazia muita diferença. Eu estava tendo dores fortes no peito, e tivemos que encerrar mais cedo. “Até que isso não é tão ruim”, pensei. Como tínhamos terminado rápido, resolvi escapar para a 10th Street para encontrar Baby e comprar um pouco de cocaína. Decidi consultar o médico no dia seguinte para falar sobre as dores no peito. Se eu estivesse a ponto de ter um enfarte seria impossível cantar “Wart Hog” no dia seguinte, quando tocássemos em New Haven. Mas me fizeram cantar assim mesmo. Tentei argumentar, mas os Ramones são muito insistentes — sempre ganham. A não ser uma vez, em algum lugar em Catskills, num resort judaico no interior do estado de Nova York, quando resolvi ser malandro e encenar o truque do ataque cardíaco fulminante que eu tinha aprendido no programa de TV Sanford and Son. Comecei a gemer e me contorcer no fundo da van, como eu imaginava que Fred Sanford teria feito. Passei a acusá-los, dizendo que eles estavam me matando. Comecei a reclamar que eu teria um ataque cardíaco se tivesse que cantar “Wart Hog” mais uma vez. Eles acabaram se cansando e topando fazer um acordo comigo para ficarmos em paz. Mas eu ainda não estava satisfeito e continuei com a história até a insanidade. Insisti para que Monte encostasse a van, ligasse para o serviço de emergência e pedisse uma ambulância. No fim, Monte parou e fez sinal para uma viatura. Pulei para fora da van e comecei a correr como se fosse uma questão de vida ou morte. Como tenho coração fraco, os policiais me pegaram com facilidade e passei a noite em observação. Odeio hospitais estranhos e preferiria ter cantado “Wart Hog” mas eu tinha ido longe demais outra vez. E, como sempre, tive que suportar as consequências.

A essa altura Johnny Ramone decidia tudo na banda. Eu me sentava no fundo da van e eles, na frente. Ninguém falava comigo. John e Joey tinham umas conversas falsas de vez em quando, mas era só. Não sei se todo mundo queria ouvir jogos de beisebol o dia inteiro, mas Monte nunca desligava, porque Johnny queria ouvir. Por volta de 1985, comecei a imaginar que estava tendo outros ataques cardíacos. Mas em vez de ir a um psiquiatra teimei em ir a todos os cardiologistas do Queens e de Long Island. Eles me punham num tubo comprido e tiravam radiografias de mim. Era como um experimento Frankenstein; eu adorava, aquilo fazia eu me sentir muito especial. Normalmente acordava às seis horas da manhã, punha a mão no coração e chamava os paramédicos. Mas eles não tinham a menor simpatia por mim, e então eu simplesmente me levantava. Era a minha parte favorita do dia. Eu tomava uma xícara de café forte, enrolava seis ou sete baseados de Buddha Thai e sonhava que não estava em Whitestone. Nessa época, ficava fantasiando uma porção de fugas, empregos que eu poderia ter para me sustentar e sair dos Ramones, como ser porteiro, abrir uma doceria ou ter uma barraquinha de cachorro-quente. Sério. Eu estava cheio. Foi nessa época que tive uma das minhas melhores fantasias de fuga dos Ramones. A banda estava voltando de Boston. Eram mais ou menos seis da manhã, e nós estávamos num pedágio em Connecticut. Havia caminhões de carga em fila na estrada. O sol cor-de-laranja estava aquecendo o óleo e a gasolina derramados asfalto. Aquilo me pareceu muito agradável. Vi os caminhões que faziam entregas de jornais matutinos no Queens. E caminhões que entregavam pão e leite para pequenos armazéns. Parecia tão convidativo. Já faz dezessete anos que eu faço essa rota entre Boston e Nova York, pensei — e dei mais uma tragada profunda de

maconha Thai. A Thai era muito forte e me ajudou a fugir para uma fantasia intensa: eu ia comprar um caminhão de entregas da Wonder Bread e levar pão para os supermercados do Queens. Não preciso dizer que eu simplesmente continuei tocando baixo para os brudders. Foi muito ruim. O que aconteceu depois foi horrível. Aceitei uma carreira de cocaína no banheiro da igreja de Whitestone, durante uma reunião dos AA. Depois acabei indo para o Francis Lewis Boulevard para comprar um grama de coca de Tony Blow. Foi o que realmente me fez voltar. Durante cerca de seis meses fiquei viciado em cocaína.

Alligator Alley Não ganhei exatamente um concurso de popularidade quando me envolvi com o rap. Depois apareci para a gravação do vídeo de “I Wanna Live” com uma roupa de rapper que eu tinha comprado na Doctor Jay's, em Flushing. Um macacão marrom da WHAT?, correntes douradas e um boné Kangol. O resto da banda subiu pelas paredes. Fomos para um estúdio em Nova Jersey para tentar gravar o vídeo. Se a essa altura eles estivessem cheios de mim, ótimo. Eu com certeza estava cheio deles, com uma ressaca pesada e impulsos suicidas. É engraçado que eu tenha ido fazer um vídeo para uma música chamada “I Wanna Live”. Eu queria morrer. Marc Bell veio me socorrer. Ele ainda enxergava algum valor em mim para a banda, como compositor, e estava preocupado com o futuro. Ele tinha contas para pagar. Normal. Era a vez dele de manter o controle. Marc tentou o método do coelhinho bonzinho. “Meu coelhinho bonzinho”, ele disse. “Como vai o meu coelhinho hoje? Pare de reclamar e de se preocupar, Dee Dee. Todo mundo gosta de você”. “Gosta?”, perguntei, todo deslumbrado e encantado.

“Lembre-se, Dee Dee”, falou Marc, “o coelhinho bonzinho ganha cenoura. Cenoura é bom. Lembre-se: nós somos homenscoelhinhos e precisamos de cenoura”. Saímos juntos da gravação do vídeo, eu um pouco atrás de Marc, que ficou tentando me acalmar; depois, antes que eu percebesse, agarrou meu braço e o prendeu contra as minhas costas. Marc é um cara grande e forte. Eu não podia fazer nada. Ele arrancou a 007 da minha meia e com a outra mão pegou o estoque de cocaína que eu guardava debaixo do Kangol. Mas o diretor do vídeo estava cheio de mim. Queria me processar. À coisa toda ficou bem complicada. Eu realmente não sei o que fiz de tão sério. Tive que assinar um papel para que ninguém fosse à justiça. Aí tomamos um aviãozinho para Atlanta e fizemos um show para gravar cenas ao vivo para o vídeo. Gravaram também um show nosso em Nova York, num clube chamado The Ritz, mas eu não compareci porque estava muito nervoso. Marc Bell me salvou, eu acho. Ele tinha uns amigos do Brooklyn com quem de vez em quando saia. Lembravam muito aqueles personagens do The Honeymooners, o velho programa de “TV estrelado por Jackie Gleason. Uma das coisas legais de Marc é que o Brooklyn estava dentro dele. É sua dureza e delicadeza. Isso faz com que ele pareça deslocado num lugar como a Flórida. Mas nós estávamos fazendo uma série de shows no sul e indo da Geórgia para a Flórida passando pelo Alabama, na estrada, na van dos Ramones, com Monte dirigindo. Normal. Estávamos todos muito animados, esperando que “I Wanna Live” se tornasse um grande sucesso e aparecesse na MTV toda hora — já estávamos contando o dinheiro. Paramos no Stucky's, um posto de gasolina com uma barraca de venda de amendoim, e encontramos Zippy, um amigo de Marc, do Brooklyn. Zippy estava abastecendo o carro. O carro dele parecia bem confortável, e a van dos Ramones estava bem cheia

“Aonde você vai, cara?”. “Flórida, meus amigos, Flórida. Miami, Flórida, para ser exato. Sim, sim, sim, meus amigos, até mesmo Zippy consegue tirar férias de vez em quando”. “Podemos ir com você?” eu e Marc perguntamos. “Vamos tocar em Miami hoje à noite. Vai ser legal se nós sairmos juntos. Três caras de Nova York na Flórida — que tesão! Vamos lá!”. Monte ficou puto. Acho que Joey ficou feliz por irmos, e então Marc e eu entramos no carro com Zippy e fomos em direção ao sol, à diversão e à praia de Miami. Estávamos todos animados e otimistas. Depois de mais ou menos uma hora a conversa começou a esquentar. Zippy tinha sofrido todos os tipos de problema de saúde depois de nosso encontro anterior. Eu tinha um milhão de coisas para perguntar a ele sobre o fígado. Ficamos todos pensando em armas, porque na Flórida você pode comprar armas livremente. No caminho, à beira da estrada, tinha gente vendendo fogos de artifício e pêssegos. Foi legal, mas em pouco tempo comecei a perceber que só tinha ervas daninhas à beira da estrada. Parecia que por um longo tempo tínhamos dirigido por um pântano. Os jacarés estavam nos observando do meio dos arbustos, e vi uma cobra atravessar a estrada muito rápido quando passamos. Zippy tentou atropelála, mas em vez disso o carro saiu da pista. De qualquer modo, já estávamos sem gasolina. Sei lá o que poderia nos ajudar. Assim que o carro saiu pelo acostamento, todo o mato em torno de nós pegou fogo, por causa do calor vindo do escapamento. As ervas daninhas estavam muito secas por causa do calor de verão. O pântano é conhecido como Alligator Alley — centenas de quilômetros de mato acompanhando uma das estradas para Miami. Não é exatamente um lugar agradável para encalhar. Saímos do carro e segundos depois ele pegou fogo e começou a

afundar lentamente no que parecia ser um poço de areia movediça. Marc tinha prometido a Monte que ia cuidar de mim e garantiu que iríamos fazer o show. Ficou descontrolado. Estávamos meio que curtindo aquela situação, mas era piração. Os jacarés começaram a se agitar e se revirar na estrada, onde nós estávamos amontoadas para escapar do fogo. Eu estava cagando de medo deles, com aqueles olhos minúsculos e brilhantes e aqueles dentes afiados. A última coisa que eu queria era morrer na Flórida, no meio da Alligator Alley. Era insano. Quilômetros e quilômetros de pântano pegando fogo e queimando totalmente. Mais tarde, naquela noite, vimos as cenas pela 'TV no Holiday Inn de Miami. Fiquei preocupado que a polícia nos pegasse, mas não aconteceu nada. Fomos para o local do show na caçamba de uma picape, depois de Marc pedir carona balançando algumas notas de cem dólares para um bom samaritano. Uma picape velha parou para nós e nos levou até o teatro em Miami. Demos trezentos dólares para o cara. Os fãs estavam em fila, na rua, para ver os Ramones e não acreditaram quando viram Marc e eu. “Vocês são os Ramones?”. “Somos. Com licença, a gente precisa entrar para fazer a passagem de som”, dissemos, e corremos para a entrada do palco. Zippy levou o emblema do pinhead, que ele tinha salvo, não sei como, do fogo no pântano. Foi o mesmo emblema que os Ramones usaram até o fim. Pobre Zippy.

Famílias felizes Por mais que eu tentasse esconder meus sentimentos, eu sabia que não dava mais para mim. Me disseram que os Ramones eram o meu trabalho — e eu tinha que fazer meu trabalho. Mas eu me sentia decepcionado, como se tivesse que fazer tudo. Eu odiava aquilo. Eles esperavam que eu compusesse uma música

atrás da outra para dez pessoas que nunca me diziam obrigado. Eles me deram apenas atitude. Um dos nossos bateristas, Richie Beau, era bom compositor. “Somebody Put Something In My Drink” foi escrita por ele. Joey é bom compositor, “Sheena Is A Punk Rocker”, “Beat On the Brat”, “Judy Is A Punk” e “I Don't Care” foram escritas por ele. Escrevemos “Glad To See You Go” juntos — eu fiz a letra e ele, a música. Depois ele escreveu “I Wanna Be Sedated”, “Rock'n'Roll Radio” e várias outras grandes canções dos Ramones. “Pinhead” foi escrita pela banda inteira, inclusive Tommy. Depois, em músicas como “Psycho Therapy”, eu estava tentando fazer com que Johnny Ramone se irritasse menos, melhorar o humor dele. Então tentei incentivá-lo a compor em vez de simplesmente lhe dar músicas, Johnny Ramone é creditado como co-autor de “Psycho Therapy”, mas fui eu que escrevi. E eu poderia continuar a lista por horas. Era meio absurdo. Eu sabia que Joey e eu não podíamos fazer praticamente nada. Precisávamos de paparicação e muitos cuidados especiais. Mas uma parte excessiva do controle ficava nas mãos de gente da indústria da música, dos empresários e da gravadora. Eu queria que fosse ele o compositor. Nada teria me deixado mais feliz. Ele deveria ter tido com os empresários o mesmo relacionamento que eu tive que aguentar. Era como viver no inferno. Como quando você está em turnê e os empresários ligam todo dia, às seis da manhã, perguntando se você tem alguma música nova, e você está simplesmente tentando ir para a cama. Ou alguém da banda passa quatro horas no seu quarto, com cocaína na cabeça, dizendo que vai sair porque está muito infeliz e você tem tais e tais contas para pagar e não quer compor outra música — você simplesmente espera que mais alguém na banda componha também. Dava nos nervos. Johnny só criticava tudo. Parecia a diversão dele. Foi difícil gravar o álbum Brain Drain porque todo mundo descontou a merda em mim. Eu tinha pavor de ficar perto deles.

Aquilo me fez ir embora — acabei nem tocando no álbum. Todo mundo na banda estava com problemas — problemas com a namorada, problemas de dinheiro, problemas mentais. Não é fácil ficar na mesma banda de rock'n'roll, com as mesmas pessoas, durante tanto tempo quanto os Ramones. Me surpreendia que as pessoas ainda acreditassem na imagem de família feliz dos Ramones. Mas fiquei surpreso também quando soube que Ricky Nelson era viciado em drogas quando morreu. Não acreditei. Eu o achava um cara tão bom, com músicas boas — era um americano típico. Depois, quando Del Shannon se matou com um tiro, fiquei pensando, porque eu queria me matar também. Mas nós nos amávamos de algum modo. Continuei na banda por estar muito paralisado e confuso, mas também porque me preocupava com eles. Com os sentimentos deles. Se estavam bem, essas coisas. Eu me preocupava principalmente com Joey. Aguentei muita coisa por ser um Ramone. Uma vez cheguei num aeroporto de Nova York com Monte e os outros Ramones estavam lá nos esperando. Pareciam todos muito tensos. Fui até Johnny e disse: “O que foi, John?”. “Eu odeio ele”, respondeu John, indicando Joey. Ele estava com uma aparência muito assustadora, com um olhar de assassino, furioso. Aí fechou a cara e disse: “Eu não vou para Toronto, Dee Dee. Eu odeio ele. Ele usou o nome Ramone para tocar no Ritz”, referindo-se a um show solo que Joey tinha feito. “Foi numa festa, John. Joey precisa de uma válvula de escape, não foi uma...” John me interrompeu: “De jeito nenhum! De jeito nenhum! É tudo ou nada! Foda-se todo mundo. Eu estou saindo da banda! Eu não preciso dessa merda!”. “Bom, o que eu faço? Pergunto para o Joey o que ele acha?”. “Pergunta, porra!”, devolveu John.

Então fui até Joey, que estava no outro lado da sala, olhando mim e para John. Ele não ia ceder nem um milímetro. “Grande Joey. Como é que você está hoje?”, perguntei. “Vá se foder, Dee Dee, você é amiguinho do John. Eu não vou para Toronto hoje, Ok? Agora vá todo mundo se foder”. “Não fale assim, Joey. Lembre-se, meu docinho adorável, os coelhinhos bonzinhos ganham cenoura. Os coelhinhos meiguinhos de orelhinha fofinha e rabinho fofinho. Nós somos coelhinhos. Coelhinhos não arranjam emprego, Joey. Vamos entrar no avião. Tem um monte de lugares e prazeres esperando pela gente. Veja que dia bonito! Por que se preocupar?”. No fim, Johnny Ramone acabou gritando comigo, mais uma vez, no escritório de Gary Kurfirst. “Foda-se isso”, pensei. “Nunca mais!” Por que Monte não podia bater essa van e matar todos nós? Parecia que eu passava a maior parte da minha vida no asfalto, e teria sido perfeito morrer na estrada — mas teria sido fácil demais. Se a van batesse provavelmente todos nós sobreviveríamos, menos Monte. Seria hilário. Eu podia ver nosso querido Monte saindo pelo pára-brisa. De algum jeito a cabeça dele seria cortada. Nossos olhos começariam a brilhar. Johnny Ramone entraria em êxtase. Ele daria um sorriso do tipo “como é que uma coisa tão maravilhosa foi acontecer”, e todos nós concordaríamos. O ar pareceria ter o dobro de oxigênio, e nós faríamos um círculo em torno da van, como um bando de morcegos malvados, para ver o corpo decapitado de Monte. Alguém diria: “Até que enfim a justiça foi feita.”. Marky começaria a dançar de alegria, rindo: “Chicken beak boy! Chicken beak boy”. Joey ficaria parado, enrolando uma mecha do cabelo e murmurando: “Vá se foder, Monte... Vá se foder, Monte...” Johnny Ramone ficaria feliz como se fosse Natal e tivesse uma árvore cheia de presentes só para ele.

Na pior Uma das minhas últimas viagens de van com meus brudders foi na Califórnia, durante a turnê americana de 1989. Um dos meus vários pontos de ruptura com eles. Eu estava gravemente doente naquela época. Não parava de vomitar. Estava pele e osso por tomar Stellazine, Buzzbar e Trofennial. Tomava doses fortes desses antidepressivos para aguentar o tranco de ficar sóbrio. Naquela época, eu, como Marc e John, já estava sóbrio havia alguns anos. Joey estava bebendo como um peixe e causando muitos problemas, o que Marc e John pareciam ignorar. Eu estava convencido de que eles estavam tentando me forçar a sair da banda. Talvez tenham sentido que seus dias de turnê estavam contados. Não sei muito bem o motivo. Eu achava que eles estavam sendo inacreditavelmente cruéis. Sempre que eu vomitava havia algum tipo de pseudo-preocupação — ninguém parecia perceber o quanto é humilhante ser anoréxico. Como falar sobre isso com pessoas que te odeiam? De qualquer maneira, não pedi nenhum favor para eles, porque eu sabia que eles não fariam. Nem mesmo para Monte, que naquela época era uma espécie de enfermeira de Joey — e escravo das excentricidades de Johnny Ramone. Viajamos por toda a Califórnia naquela turnê, ouvindo beisebol no rádio o tempo todo. Até que a certa altura coloquei uma fita de Reba McIntyre no toca-fitas da van. Eu queria ouvir a faixa “Cathy's Clown”, mas tiraram a fita. “Esqueça, Dee Dee”, disseram. Bem, acho que eu estava acostumado e não disse nada — eles também nunca ouviam minhas fitas do Motorhead quando descobri a banda pela primeira vez. Na maior parte do tempo eu simplesmente ficava sentado no fundo da van, olhando pela janela. Quando chegamos em San Francisco tiramos um dia de folga. Eu tinha finalmente largado os antidepressivos e estava me

sentindo muito mal. Mas Monte não quis me levar para o hospital, porque Johnny e Joey queriam sair para comprar pôsteres de filmes antigos, que eles colecionam. Eu estava realmente doente, então peguei um táxi, encontrei uma clínica e entrei para fazer exames. O médico me disse que eu estava acabado por não comer, anorexia. Sugeriu que eu não poderia continuar daquele jeito e que talvez só tivesse três semanas de vida. Numa banda, durante uma turnê, se você estiver doente, você está doente, mas o show deve continuar. Então fui até o fim da turnê. O último show que fiz com eles foi em Santa Clara, na Califórnia. O Murphy's Law abriu para os Ramones. Foram ótimos, mas houve alguma confusão e Jimmy Gestapo ameaçou arrebentar Johnny Ramone. Não sei qual foi o problema. Depois Jimmy disse que John nunca mais estaria seguro em Nova York, Fiquei pensando se isso não incluiria também o resto dos Ramones. Fiquei preocupado. Então, me mandei. Como cantava Reba, em “Cathy's Clown”, “a man shouldn't crawl..”. Foda-se, pensei; minha vida pode ser melhor do que isso. Eu quero algo mais do que essa merda que eu recebo o tempo todo por ser Dee Dee Ramone. Senti que eu já tinha servido àquela porra toda de sistema o suficiente e sabia que era homem o bastante para sair dele. Quando voltamos para Nova York, fui para a minha casa, em Whitestone, arrumei uma pequena mala e fui embora para nunca mais voltar.

De volta ao Village A única coisa que restava fazer era abandonar tudo e retornar às minhas raízes. Por isso me mudei novamente para Manhattan e arranjei um apartamento na 10th Street, no East Village. Levei minha guitarra, meus discos e um colchão. Isso foi em 1989, e tudo no East Village continuava como antes. Toda a atmosfera fedia a drogas. Fiquei chocado de ver como

todo mundo terminou mal. Stiv Bators, Richard Hell, Johnny Thunders, Cheetah Chrome. Todos os meus amigos estavam sem carreira e falidos, sem ter onde morar ou atrás de drogas na rua. Ninguém ajuda um rock star na pior. Quando voltei a Manhattan, me senti meio ansioso. Conseguia ouvir todos os sons da rua da janela do meu apartamento, que tinha uma bonita vista de um dos principais pontos de heroína. A cidade me pareceu estranha, mas em pouco tempo juntei a coragem necessária para descer as escadas e sair. Entre a First e a Second Avenues, você atravessa um labirinto de traficantes de heroína e viciados, Passei correndo por eles em direção à Second e à St. Mark's Place e depois fui para a Third Avenue, onde dei de cara com Johnny Thunders, perto do Continental Divide. Ele parecia mal. Estava tremendo e precisava obviamente de uma dose. Começamos a conversar e John me perguntou se eu não queria ir até a casa de um amigo, onde ele estava morando. Ficava no Astor Place, ali perto. Johnny foi direto para o banheiro e injetou cocaína. O apartamento do amigo dele era muito bom e eu fiquei feliz por estar ali. Coloquei uma fita de músicas novas de Johnny; eram muito boas. Mas o toca-fitas estava com algum problema e comeu a fita. “Porra, Dee Dee”, disse Johnny, “era a única cópia dessas músicas! Eu nunca mais vou conseguir me lembrar delas. Ah, meu Deus”, e começou a dar aquela risada louca e doentia dele, que para mim soava como alguém arranhando uma lousa. “Porra, cara, a fita está perdida! Eu poderia ter dado ela para o Billy, meu fornecedor, em troca de pó!” Depois ele se cansou de reclamar e resolvemos andar até o meu apartamento na 10th Street. Quando chegamos ele me perguntou se eu não tinha uma colher. Como eu não estava usando heroína, tinha várias. Pegou uma e foi ao banheiro.

Depois vi a colher. Estava encurvada e tinha sido queimada por baixo para aquecer a heroína. Tinha um pedacinho de algodão manchado de sangue no centro da colher. Peguei a colher e joguei na lata de lixo ao lado da privada. Que bando de amigos fracassados eu tenho, pensei. Parecia que aquela vida do submundo do Lower East Side me seguia desde sempre. Depois de sair dos Ramones não falei com os outros caras. Eu não via ninguém. Assim que terminaram a diversão e o dinheiro, fiquei sozinho de novo. Ninguém queria saber. Aquela coisa típica do show business. Sei que os empresários dos Ramones não sabiam o que fazer comigo. Quando fui ver Gary Kurfirst, ele não tinha nada de positivo para me dizer sobre minha idéia de formar uma nova banda. Todo mundo na Sire Records estava inacessível. A única coisa em que Gary conseguiu pensar foi que os Ramones talvez precisassem de mais algumas músicas; por isso, me encaminhou para Andrea Starr, que trabalhava para a representação dos Ramones na Overland. Andrea parecia estar do meu lado. Eu e ela sempre nos demos bem. Andrea tentou também me ajudar no meu álbum Dee Dee King, mas foi em vão. Dee Dee King, meu álbum de rap, era uma tentativa de fazer composições imaginárias e não autobiográficas — eu atribuindo uma tarefa a mim mesmo. Posso compor o que quiser, mas não quero entrar no jogo da indústria da música. Esse sou eu. Dee Dee. Mas percebi que Andrea também não sabia o que fazer comigo. Acho que todo mundo percebeu que eu estava prestes a entrar em mais um período ruim da minha vida e todo mundo já tinha seus próprios problemas, de modo que eu era o último item da lista deles.

Parte 5 SOBREVIVENTE Paris Andrea era amiga de Stiv Bators, que tinha acabado de sair dos Lords of the New Church. Ela sugeriu que eu saísse de Nova York por um tempo, me encontrasse com Stiv e tentasse montar uma banda em Paris. A banda deveria ser composta por Chris, dos Godfathers, na guitarra, Vom, do Dr. and the Medics, na bateria, e eu no baixo. Disse isso a Andrea e ela me falou para discutir o assunto com Stiv, e eu discuti. Telefonei para Stiv em Paris e disse que iria encontrá-lo, mas não se Thunders estivesse lá. Contei a ele o que acabou acontecendo na última vez em eu que tinha estado com Thunders, e Stiv concordou comigo. Então fui a Paris para ficar com Stiv e a namorada dele, Carol. Foi bom, mas meio sinistro, por algum motivo. Fazia muito frio e quando eu ficava resfriado, Stiv dizia: “Ah, é só porque o diabo está aqui com a gente”. Thunders também estava lá — sempre triste, furioso e louco ao mesmo tempo. Eles tinham um gato grande e preto chamado Satan, que usava a pia da cozinha como banheiro. Meu Deus! E Thunders fazia de tudo para que eu usasse heroína. Pena que não deu certo. Thunders, Stiv e eu poderíamos ter formado uma grande banda. Chegamos a tentar ensaiar juntos, mas simplesmente nos sentamos em círculo e não conseguimos nos concentrar. Cada um pegou um violão e ficamos tocando músicas de Dion and the Belmonts, dos anos 50. Mas na verdade nada estava acontecendo. Stiv estava muito detonado pela época que passou em Londres e me disse que só 80% do fígado dele funcionava.

Enquanto isso Carol tentava fazer as coisas funcionarem, dizendo tudo o que estávamos fazendo de errado. “Larga esse violão, Stiv”, dizia ela. “Ninguém quer ouvir você cantando canções bobas de amor”. Carol tem bom gosto para música. Percebi também que Stiv, John e eu nunca iríamos chegar a lugar nenhum como uma “banda de três caras de Nova York”. Mas eu sabia que precisava fazer alguma coisa; acordei Stiv e o levei para o andar de cima, onde eu tinha ligado um microfone e minhas caixas, além de um pedal wah wah e uma unidade de distorção. Peguei meu baixo e me preparei. “Stiv, eu quero que você grite MERDA!, PORRA! e CARALHO! no microfone enquanto eu toco, tudo bem?”. “Tudo bem, Doug”, respondeu Stiv. Estava com uma cara alegre/triste/não-sei-o-que-fazer, mas só Deus sabe no que ele realmente estava pensando. Vi Brian James fazer a mesma cara, um ou dois anos depois, no Gold da Portobello, em Londres. Na verdade Stiv estava olhando para um rato que tinha ficado preso numa das ratoeiras — tinha tantos ratos no apartamento que Carol era obrigada a montar ratoeiras, já que Satan não conseguia caçar todos. O rato não estava totalmente morto e ainda se contorcia. Stiv olhou nos olhos dele e disse, num sotaque alemão pesado: “Todos os bons cretinos vão para o céu!”. Eu não estava acreditando; comecei a tocar meu baixo como um maníaco possuído por algum espírito maligno. Mas não conseguia fazer Stiv reagir. Ele não conseguia mais ficar de pé por muito tempo, e desmaiou. Ainda tentou gritar uma ou duas coisas, admito. Mas nada feito. Ter sido membro dos Lords of the New Church com Brian James tinha fodido demais com ele. Eu o peguei e o levei para a cama, no andar de baixo. Eu não sabia que Carol também estava na cama, mas estava. Ela puxou as cobertas e ficou olhando para mim. Seu cabelo

estava despenteado e os olhos brilhavam como duas pedras de âmbar. Debaixo das cobertas, no quarto escuro, ela lembrava um pouco uma cobra. Carol estava só semi-desperta, mas, por tê-la perturbado, eu sabia do quanto ela poderia ser implicante, e por isso resolvi tentar agradá-la. “Carol, meu amor, como você está? Eu só estava tentando encontrar heroína para você e para o Stiv, mas resolvi trazê-lo para você primeiro. Agora vou correr até o andar de cima e injetar. Volto logo. Se eu tiver heroína, você vai querer, não vai, Carol? Não se preocupe, eu tenho. Vou injetar agora mesmo. Confie em mim”. “Ai, Dee Dee!” gritou Carol, deliciada. “Isso me parece tão gentil!”. Foi uma das primeiras vezes em que eu a vi reagir com tanto ânimo. Mas quando ela sorriu notei uma coisa — parecia que ela tinha duas presas de cobra saindo da boca! Eu nunca tinha percebido aquilo antes, e me lembrei de que era melhor ir andando antes que fosse tarde. Mas eu tinha mentido para Carol e agora estava numa armadilha por causa da minha própria idiotice. Eu tinha que cumprir a promessa e pegar a heroína. Estavam todos esperando. Todo mundo na casa inteira ficou alvoroçado e pôs a culpa em mim. O que aconteceu basicamente é que eu tive que voltar para o andar de baixo e me encontrar com eles. Aí nós jogamos roleta vietnamita — que é a mesma coisa que roleta russa, com a diferença de que a dessensibilização é feita com ópio em vez de chumbo. Carreguei a seringa envenenada e disparei. A heroína bateu fundo, e me encheu de um ódio intenso. Uma das últimas coisas que aconteceram em Paris e que me deixaram muito puto foi uma outra cena feia entre mim e Johnny Thunders. Muito feia. Eu estava convencido de que ele vinha roubando coisas de mim desde que eu tinha chegado, mas não tinha como provar. Aí, peguei o cara em flagrante. Eu tinha

perdido um casaco e o encontrei na mala dele. Não me importava se era Johnny Thunders ou não. Eu estava de saco cheio de ser tão bonzinho. Simplesmente perdi a paciência com todos eles e fiz a maior cena. No dia seguinte, peguei um táxi até o aeroporto e comprei uma passagem para Nova York. Tinha tentado de tudo com Stiv em Paris. Mas simplesmente não consegui fazer com que desse certo. Eu tinha tentado compor músicas com ele, ou montar uma banda com ele e Thunders, mas nada funcionava. Eu não conseguia atravessar a barreira que Stiv e Thunders tinham erguido em torno de si mesmos. Era como nos Ramones. Eu também não conseguia atravessar a barreira em torno deles. Com o tempo, os Ramones foram se tornando uma panelinha, e eu me senti excluído dela. Era absurdo — tentar agradar pessoas impossíveis de agradar. De qualquer maneira, acabei ficando sem amigos. Eu sabia que todos os meus supostos amigos em Nova York ficariam do lado de Thunders ou de Stiv com relação ao que havia acontecido em Paris. Além disso, ninguém entendia por que eu tinha saído dos Ramones, e não era uma decisão muito popular. Aquela não ia ser uma das melhores fases da vida. Quando saí de Paris, Stiv tentou sutilmente roubar minha música “Poison Heart”. Eu tinha na mala uma fita com ela gravada. Quando cheguei em Nova York, não estava lá. Stiv foi para a Inglaterra e gravou uma demo da música. Seria doloroso demais para mim ouvir essa demo — afinal, eu sou o único dos três que sobreviveu. Mas naquela época ninguém pensava que eu ia sobreviver a Johnny ou Stiv. Quanto a Stiv, eu sempre achei que por trás dos óculos escuros e do cabelo estilo Joey Ramone existia um cantor de punk rock, e por isso eu o perdôo. Descanse em paz, Stiv.

O campo de concentração líquido

Quando voltei, Nova York me pareceu muito fria. Para quebrar meu isolamento eu precisava arranjar problemas. Os Ramones tinham sido praticamente a minha família — agora não tinha mais nada. Além disso, voltar a morar na 10th Street era pedir para o desastre acontecer. Todo mundo no bairro traficava — e um dos meus antigos fornecedores de cocaína morava no mesmo prédio que eu. Eu nunca tinha percebido o quanto a vida pode ser cruel. Finalmente, quando saí para a rua, eu estava sozinho e cansado de ficar conversando comigo mesmo. Comecei a achar que tudo se justificava, e por isso voltei a me drogar. Todos os traficantes ficaram felicíssimos por ter um cliente assíduo na área. Eles me davam atenção e me faziam sentir muito especial. Quando ficava chapado, eu me sentava nos degraus com eles e inventava para os meus novos amigos histórias fantásticas sobre as minhas aventuras. Em setembro, quando fui a uma loja de guitarras no Lower East Side, vi algumas pessoas vendendo heroína na área e fui até lá para comprar. Era na 13th Street com a Avenue C. Na esquina havia um prédio abandonado onde vendiam heroína. O nome era Buldogue. A heroína tinha diversos nomes, e, quando ia comprar, você dizia que estava indo para o Buldogue. Era mais organizado do que nos primeiros tempos do punk rock em Nova York. Comecei a tentar reviver os velhos tempos. A velha rotina. Descia para a rua por volta do meio-dia para comprar. Depois, no caminho de volta, parava na delicatessen da 10th com à First para tomar café e comprar cigarros. Eu tentava evitar os maluquetes de rua e os mendigos, e assim que saía da delicatessen, corria pela calçada e subia para o meu apartamento. Eu injetava no banheiro, como Thunders fez quando esteve lá. O banheiro era um bom lugar para ter o barato e me esquecer de onde eu estava. Se quisesse, poderia observar a realidade lá embaixo, na rua. É uma espécie de atividade

tradicional em Nova York — ficar olhando pela janela em estado de torpor. Eu adorava fazer isso. Estava sempre muito barulhento e confuso lá embaixo. Era uma atividade louca, o dia inteiro e a noite inteira — gente vendendo heroína na rua. Os clientes querem, mas faz frio. O frio congelante do inverno torna ainda pior a tremedeira nos ossos do junkie. Ninguém está disposto a perder tempo. A cidade grande é um bicho comendo outro. O homem é um predador perigoso. Você tem que ficar esperto. Quando alguma coisa dá errado você corre o risco de se endividar com o fornecedor. Você corre o risco de ir em cana. Uma vez, olhando pela janela, vi quatro pessoas vendendo heroína na área. Dava para pressentir que ia dar problema. Um dos caras era o meu antigo fornecedor de coca; estava prestando atenção na garota dele e não viu os dois malandros que queriam pegá-lo. Eles tinham se misturado à horda de maluquetes de rua e clientes paranóicos. Foi muito rápido — um dos caras estava com um taco de golfe e o outro com um bastão pesado. Tinham ido cobrar o dinheiro do fornecedor. Disseram à garota para entregar o dinheiro e caíram em cima do namorado dela. Os dois amigos que estavam com eles atravessaram a rua pedindo ajuda e aí um carro que estava estacionado ali perto saiu e parou bem em frente à briga. A pessoa que estava no banco do passageiro apontou um rifle automático Marlin .22 para fora da janela. A arma estava carregada com um pente meia-lua, de alta capacidade, e a pessoa começou a atirar. O quarteirão inteiro saiu correndo com o som do tiroteio. Parecia uma cena de filme, mas não era. Era real. Os carros da polícia chegaram num minuto. Vi os policiais prenderem a garota. Ela simplesmente ficou ali, parada, em estado de choque. A polícia algemou a garota e a jogou dentro do camburão. Os paramédicos levaram o namorado, o que tinha tomado os tiros. Tinham perdido a heroína, o dinheiro e a liberdade.

Fiquei pensando: “Isso é jeito de viver?”. O sistema nos dá alguma outra opção? É tão estúpido. A sociedade está se autodestruindo. As grandes cidades americanas não têm salvação, e não parece que um dia vão se estabilizar. Fico pensando como as minorias conseguem sobreviver, porque é mais difícil ainda quando você é odiado a vida toda — ninguém te deixa em paz. Você é condenado antes de conseguirem provar seu crime. Você vive numa zona de guerra e é obrigado a lutar o tempo todo para sobreviver. Quando você está realmente na pior, percebe que existe alguém fazendo de tudo para que os oprimidos continuem oprimidos. As drogas continuam chegando aos bairros pobres. Para um governo, fazer isso é a coisa mais fácil do mundo, porque eles vêem essas pessoas como um problema, um fardo, e não como seres humanos. Embora eu me sustentasse sozinho, tinha gente dizendo que eu era um fardo, e vinham pra cima de mim. Fui pego pela onda, como todo mundo — virei um pária, pública e socialmente. Quem se importaria se a 10th Street, em Nova York, pegasse fogo? Nós simplesmente ficaríamos ali, parados, vendo o fogo e aspirando a fumaça. Todos poderiam ter um último barato gratuito. Que espécie de tratamento é esse? Minha volta à heroína no East Village só durou alguns meses. Eu estava com 38 anos, tinha me viciado em heroína mais uma vez e não conseguia superar. E tinha perdido minha liberdade, pela primeira vez na vida. Precisava entrar para valer num programa de metadona. Estava condenado à prisão perpétua no campo de concentração líquido. Analisando friamente, acho que, a essa altura, não poderia ter sido de outra forma. Muita coisa já tinha dado errado. Eu tinha feito mudanças demais, sem ter nada para me apoiar. Em vez disso, tinha gente realmente curtindo aquilo e tentando me levar para baixo. Então recebi a notícia de que Stiv Bators tinha sofrido um acidente e morrido em Paris. Tinha sido atropelado por um táxi. Mais ou menos na mesma época meu melhor amigo, Phil

Smith, um traficante de maconha de Nova York, morreu de Aids. Depois descobri que minha namorada era prostituta. Um dia, finalmente, entrei no metrô do Astor Place, peguei a linha local Lexington Avenue em direção ao norte e fui para a clínica de metadona das celebridades, na 69th Street com a First Avenue. Eu odiava a minha vida e praticamente queria estar morto. Ser paciente de metadona era o fim da linha. Eu não tinha escolha. Não tinha plano de saúde Blue Cross e por isso não poderia entrar numa clínica de reabilitação. Tentei ir a uma reunião dos AA e à uma dos NA, mas só me senti pior. Especialmente na Reunião dos Artistas e Músicos, na St. Mark's Place. Era simplesmente impossível enfrentar a abstinência e ficar longe da heroína morando no East Village. Tinha um milhão de motivos, e por isso o programa de metadona, a essa altura, era a melhor coisa a fazer para controlar aquela minha vida de junkie. A metadona não me deixava exatamente de bom humor quando eu saía da clínica e pegava o metrô de volta para o centro. Sempre me sentia pior. Por isso comecei a me referir ao programa como o campo de concentração líquido. Eu estava totalmente sem defesas, de tão fraco que era meu estado mental. À primeira vista parecia difícil acreditar que as pessoas se incomodariam em me machucar. Afinal, por que fazer isso? Por quê? Por causa do meu dinheiro. O que poderia ser mais lógico, para os meus inimigos, do que correr em círculos em torno de mim até eu ficar tonto e não saber mais o que estava fazendo? Eu só conhecia um único jeito de aliviar a dor — injetando. As drogas são o sonho do assassino. É injusto, mas é assim. Foi depois de ter sido preso duas vezes por posse de maconha que as coisas pioraram. Na primeira vez, eu estava defendendo a minha garota no metrô. Na segunda, passava em frente a um clube em Nova York chamado The Bottom Line. De repente os policiais me cercaram. Fui algemado e jogado num camburão. Levaram todo mundo que parecesse um pouco estranho — foi

uma faxina. Quando o camburão ficou lotado foram até o Washington Square Park e estacionaram ao lado do chafariz. A imprensa tinha sido avisada com antecedência. É por isso que fizeram tanto alarde: para que parecesse que a prefeitura estava vencendo a guerra contra as drogas. Que tinham pego um criminoso experiente. Eu. Dee Dee. Fui fotografado durante todo o caminho até a delegacia e depois jogado numa cela. A essa altura, eu já estava completamente louco. Neguei tudo, o que os deixou ainda mais satisfeitos. No dia seguinte minha foto estava na primeira página do New York Post. Por algum motivo, aquela foto, hoje, me faz rir. Fiquei parecendo um louco — mas, por outro lado, apareci com tatuagens, à roupa rasgada e de mau humor. Eu estava realmente furioso! Não sou juiz, e de qualquer maneira não acho que a maconha deveria ser ilegal. Mas, se eles precisam me punir, qual é o grande problema, levando em conta o quanto o meu crime era inofensivo? Lisa Robinson, colunista de rock do New York Post, que nunca falava bem de mim mesmo, escreveu um artigo dizendo que eu tinha apagado com uma seringa no braço no banheiro daquele clube. Aí os empresários dos Ramones me procuraram. Queriam se aproveitar da minha onda de azar e me convencer a compor músicas para o novo álbum da banda. Vendi os direitos autorais de “Poison Heart”, “Main Man” e “Strength To Endure” por alguns milhares de dólares para poder contratar um advogado e sair da cadeia. Não sei por que ninguém em Nova York, ou nenhum dos Ramones, pôde me emprestar alguns milhares de dólares em vez de me obrigar a enfrentar toda a paranóia, confusão e sofrimento extra de uma manobra como aquela. E, para completar, essas músicas foram parar num novo álbum chamado Mondo Bizarro. Parecia que os Ramones não conseguiam viver sem mim, mas, ao mesmo tempo, me tratavam como inimigo. Eu achava aquilo fútil e imbecil da parte deles, mas era provavelmente o único jeito

de não passarem vergonha. Para promover os Ramones eles precisavam me rebaixar. Nas entrevistas ficavam claramente tentando minimizar meu papel nas composições — “Dee Dee é o co-autor”. Não — eu compus com todo o meu coração e com toda a minha alma. “Poison Heart” é uma música minha, sobre a minha vida. Ao mesmo tempo, uma campanha de ódio contra mim começou. Todo tipo de boato. De que eu estava ficando louco. De que eu saía pela rua dando tiros, De que eu tinha roubado um pão do supermercado. De que eu estava matando gatos no meu apartamento. Cada um parecia ter sua versão do que eu estava fazendo. Ninguém se preocupava em me perguntar a verdade — a única pessoa com quem eu estava conversando nessa época era eu mesmo. Mas sou de fato muito anti-social. Todas as outras pessoas que eu conhecia estavam mortas ou tinham sido vitimadas pelo rock and roll de alguma forma. Eu estava sozinho. A depressão me levou diretamente de volta às drogas. Eu me sentia o Inimigo Público Número Um — e então tentei ficar longe do East Village por um tempo. A 10th Street era arriscada demais para mim; arranjei um apartamento na 23rd com a Lexington e procurei me esconder. Havia uma clínica de metadona no bairro. Os pacientes de metadona eram tão chapados que ficavam de pé na rua balançando ao vento. O vento nunca os derrubava completamente — de vez em quando eles acordavam por um momento e começavam a balançar para o outro lado. Estavam realmente fodidos. Meu amigo Mark Brady ficava tentando me livrar dessa mentalidade de filme B. Era um bom amigo, é foi uma boa influência para mim nessa época. Eu o conheci por meio de Rachel Amado, a atriz principal de um filme que Mark estava fazendo chamado What About Me?, estrelado também por

Johnny Thunders, Richard Hell, Nick Zed e Jerry Nolan. Espero que Mark ainda tenha o meu número e me telefone. Mark estava tentando me motivar, e por isso me deu um pequeno papel no filme. Depois que fizemos minha cena decidimos encerrar o dia indo até o apartamento de Rachel para relaxar e fumar um bagulho. Quando entramos, o telefone tocou. Era Stevie, o guitarrista da banda de Johnny Thunders. “Rachel”, disse ele, “o John morreu. Está morto.” Fiquei pasmo. Rachel também. Stiv Bators tinha morrido seis meses antes. Meu amigo Phil Smith tinha acabado de morrer. A vida parecia tão frágil. As lembranças todas começaram a voltar para mim. Disseram que Johnny tinha se misturado com uns filhos da puta em Nova Orleans e eles o assaltaram e levaram seu estoque de metadona. Deram LSD para ele e depois o mataram. Ele tinha conseguido um estoque bem grande de metadona da Inglaterra para poder viajar e ficar longe daquelas aberrações — traficantes, imitadores e fracassados desse tipo. A vida parecia não valer muito. Eu me levantei e fui embora. Não me importava se fosse o próximo a morrer. Apesar das diferenças entre mim e Johnny, fiquei triste quando soube que ele tinha morrido. Todo mundo parecia estar lutando contra algum problema com drogas. O mundo todo apontava para mim — eu ia ser o próximo. Isso me deixava muito puto, e prometi a mim mesmo não morrer por causa das drogas, só para irritar meus inimigos. Mas eu ainda estava sem controle. Me esforçava muito, mas a verdade é que a metadona não estava conseguindo segurar minha fissura pelas drogas de rua. Eu ainda corria o risco de me autodestruir. Mark Brady achou que eu ia me acabar quando Thunders morreu. E ele tinha razão. Fiquei injetando cocaína em doses de um quarto de grama durante alguns dias. Aí fui até o Continental Divide para um show em tributo a John. A banda de abertura parecia os Dolls dos anos 70, com um guitarrista que

era imitador de Thunders. Estavam tocando “Chinese Rocks” quando eu entrei. Fiquei pálido e fui embora imediatamente. Era demais para mim. Desci até o Bowery e fiquei bêbado. No dia seguinte, injetei heroína. Eu simplesmente não ligava mais. Eu odiava a minha vida. Estava morando num pulgueiro na 23rd Street e pegando o metrô todos os dias para ir até a clínica de metadona. De manhã, comprava o Post. À tarde, saía para comprar maconha. Eu precisava entrar num programa de reabilitação, mas não tinha dinheiro. Era fim de ano, e o Natal era à pior época. Um dos meus vizinhos não gostava do fato de que eu batia a porta quando saía do quarto. Tentei argumentar com ele. Meu advogado me explicou que, se fosse preso pela terceira vez, eu ia cumprir pena no interior do estado. Eu já tinha duas prisões nas costas — uma delas por agressão. Mesmo assim, acabei dando um chute na bunda do vizinho no corredor. Aí desejei a ele um feliz Natal e fui até o Scrap Bar para comemorar, porque não tinha mais nada para fazer. Encontrei Lemmy, do Motorhead. Logo que olhou para mim, disse que eu estava com uma aparência horrível. Eu já sabia. A aparência dele também não estava grande coisa, mas eu sempre ficava feliz por vê-lo. Eu tinha esperança de que ele tivesse drogas. Não tinha, mas me deu um pequeno empréstimo, uma cerveja e um conselho grátis: “Saia de Nova York, Dee Dee. Vá para Los Angeles”. Então voltei para casa e decidi ir para a Inglaterra. Carol Bators me ensinou como me transferir de um programa para outro, de tanto que ela já tinha feito isso. Acho que Carol conhecia todos os truques possíveis. Aproveitei as dicas o melhor que pude. Maloquei quatro garrafas de metadona para levar no avião. Aí peguei um táxi e fui para o aeroporto. Comprei uma passagem, entrei no avião e fui para Londres. Tenho certeza de que só estou vivo até hoje porque saí de Nova York.

Westbourne Park

Os fiscais da alfândega do Gatwick não queriam me deixar entrar na Inglaterra, apesar de todas as drogas que eu levava terem sido receitadas legalmente para mim por um médico. Eu sempre me indignava com a discriminação quando atravessava uma fronteira. Quanto ao tratamento que eu recebia em lugares como a alfândega do aeroporto de Gatwick, só posso dizer que era muito desmoralizante. Consegui, não sei como, passar por aquilo tudo, achei um táxi e fui para Earl's Court, onde ficava o meu hotel. Minha preocupação era como chegar no lugar do meu programa; era fora de Londres — em Hayes, Kent. Telefonei para Ira, meu amigo e empresário em Nova York, para perguntar o que fazer. Eu estava começando a me sentir derrotado, e entrei em pânico quando ele sugeriu que eu pegasse um trem. Por isso peguei outro táxi. Os motoristas de táxi ingleses são os piores e cobram caro — mais ou menos o preço de uma dose. Como queria me livrar das drogas, simplesmente me conformei. Eu estava muito fraco e procurei não conversar com o maluquete sorridente que estava me levando. Ele me deixou em frente a uma casa antiga com pinta de mal-assombrada; era onde ficava o programa de drogas. Toquei a campainha e esperei a enfermeira abrir a porta e me deixar entrar. Subi uma escada sinuosa, que rangia, e fui falar com meu médico. Era um cara legal, mas meio pirado. Pediu que eu explicasse quais eram os meus demônios, mas eu não disse nada. Ele estava acostumado a trabalhar com viciados desonestos e ficou bem animado. Passou para mim uma receita de metadona para três semanas. Nos despedimos e prometi ser bonzinho. A recepcionista chamou um táxi para mim. A volta custou um terço da ida, o que me deixou muito feliz. O táxi me levou até o hotel Flora, em Earl's Court, minha nova casa provisória. Do Flora até a drogaria Boots era só virar a esquina. Eu ia até lá todos os dias, comprava uma garrafa de mais ou menos um litro de metadona e bebia, escondendo-a numa sacola da Boots,

numa daquelas cabines telefônicas vermelhas típicas de Londres. Era o café da manhã. Eu só pensava no quanto tinha me rebaixado. Tomando drogas na rua de novo — e numa cabine telefônica! Mas ninguém parecia se importar com o que eu estava fazendo. A única pessoa que falava comigo e que parecia se preocupar com meu estado era o sr. Jefferies. Eu o conheci no balcão de remédios controlados da Boots. Era um junkie velho e tinha que ir andando de muletas até lá, todos os dias, porque era aleijado. Um verdadeiro sobrevivente — e, para aquele tipo de pessoa, um sucesso. Tinha usado heroína durante trinta anos e entrado na metadona pela primeira vez aos dezesseis. Também estava hospedado num dos hotéis da área de Earl's Court. Ele me convidou para ir até a casa dele e lhe fazer companhia. Disse que se eu tivesse uma recaída poderia dormir no chão dele. Ninguém mais falava comigo, e de repente aparecia um cara abrindo a porta da casa para mim. Acho que ele precisava de um amigo. Eu tinha aprendido, muito tempo antes, a não fazer amigos, e por isso não disse muita coisa a ele. Ele era escolado e do meu tipo — rato de rua. De repente me perguntou porque eu não estava injetando. Disse que àquela altura eu poderia conseguir qualquer coisa por meio do programa. Eu respondi que queria largar. “Por quê?” perguntou. “Você sabe”, respondi. Foi isso. Dois párias lutando para escapar da teia de aranha, mas praticamente sem salvação. Planejei que se eu ainda estivesse na Inglaterra no Natal iria até o quarto dele para comemorar. Depois conheci num pub um irlandês que me falou de um quarto disponível em Westbourne Park. Disse que valia a pena e me levou para conhecer a alemã que queria alugá-lo. Quando apareceu, mais tarde, para me encontrar, ao lado da estação de

metrô, estava viajando de ecstasy — uma droga que, conforme descobri depois, deveria se chamar agony. Não importava; eu estava me sentindo melhor. Gostava de Westbourne Park. Era uma boa zona proletária e eu gostava do canal e da ponte. Não se parecia com nenhum lugar de Nova York. Talvez a coisa mais próxima fosse Forest Hills, no Queens. Quando fomos até o flat para conhecer a proprietária, ela disse que eu podia ficar com o quarto. Não era nada de especial, e talvez teria sido melhor ficar em Earl's Court. Pelo menos ninguém no Flora era vulgar. Mas eu já tinha me decidido e fiquei com o quarto. Nem precisei fazer depósito, de tão feliz que ela ficou por alguém ter gostado do lugar. Era meio ordinário, mas o melhor na minha condição. Eu estava satisfeito por ter um teto e tentei bater um papo com ela. Acho que ela gostou de mim, e resolvemos dar uma volta a pé pela área da Portobello Road, onde ficam as barracas do mercado de pulgas. Aos sábados a área fervia, e agora eu podia ir a pé até o Kensington Market para ver as roupas. Me sentia cool, como se agora estivesse realmente morando em Londres. Gostei muito do meu bairro. Passamos em frente a um pub chamado Portobello Gold. Descreveram o pub como “Cemitério dos Roqueiros” e disseram que era um bom lugar para ir e que dava para comprar heroína na área. Todas as garotas de Londres eram muito chamativas, mais do que em qualquer outro lugar. Comecei a ficar impaciente. Até que uma noite não aguentei mais e peguei o metrô até o Marquee para ver os Phantom Chords. O clube Marquee estava cheio de tipos vampirescos, e eu, com meu sangue incolor, cabelo cor de ameixa e aspecto pálido, combinava perfeitamente. Fiquei observando e em pouco tempo localizei o que teria sido uma vítima perfeita para mim uns dez anos antes. Estava toda enfeitada, com uma mini de couro envernizado, sapatos de salto agulha e cabelo loiro de boneca. Sugeria puro sexo, mas por uma vez na vida rejeitei a oportunidade por saber que eu não daria conta. De qualquer maneira estávamos os dois muito

cansados. Ela estava desgastada por seu estilo de vida. E naquela época a vida já tinha praticamente tirado o melhor de mim. Saímos um pouco e no dia seguinte fomos ver um filme e tomar sorvete na Haagen-Dazs. Quando estávamos andando por Picadilly Circus, passamos em frente a um hotel e a garota comentou alguma coisa do tipo: “Ah, tem um bistrô que abre até tarde onde eu gosto de tomar café entre um emprego e outro”. Bem, era o de sempre, certo? Eu já tinha me cansado de ouvir aquilo em Nova York; foi duro, mas eu disse a ela: “Ah, que bom para você” — corri para o metrô e voltei para casa sozinho. Pensei em ligar para ela, mas não liguei, Acho que é o preço da recuperação. Você precisa tentar resolver os seus problemas em vez de criar novos. Os fiscais do Gatwick tinham me dado uma chance de corrigir os meus erros. Aproveitei e fiz as coisas do jeito certo, só para variar. Não que eu estivesse com medo da morte, mas alguma coisa em mim estava dizendo que era a minha vez de viver. Comecei a descongelar meu sangue. Fiquei olhando para o que havia por trás da cerca de arame farpado e sonhando em fugir do campo de concentração líquido. Era meio pesado, mas eu sabia que precisava mudar completamente. Me sentia muito sozinho na Inglaterra, mas era disso que eu precisava. Uma vez, perto da ponte da Canal Street, notei um grupo de skinheads. Estavam muito bem vestidos, de botas Doc Marten e trench coats. Pareciam ligados e loucos para cair de pau numa possível vítima. Fiquei observando tudo enquanto caminhava e percebi o quanto eles se animaram quando encontraram uma “presa”. Devia ser um bêbado com a barba por fazer, e os skins não gostaram dele. Um deles foi até o bêbado e gritou “bom dia!” na orelha dele. Em seguida o skin tirou o boné da cabeça do cara. Acho que iam dar um pau nele, mas ele era careca. O skin olhou para ele sem expressão e o dispensou. Observando isso, pensei que eu deveria raspar a cabeça também. Eu estou na Inglaterra, certo? E vivendo nessa sociedade cruel. Vou ter que

obedecer a algumas regras aqui, exatamente como eu fazia quando estava nos Ramones. Só os fortes sobrevivem, e os fortes comem os fracos. É uma sociedade sem lei. Quando você tem a frase “Made in England” tatuada no crânio, você se comporta conforme as regras que aprendeu, tendo que lutar para viver, e não tem muita escolha. Eu me esforçava para ver alguma coisa positiva na rotina da vida normal. Comprava o Sur e o Mirror na estação de metrô para ler os horóscopos e depois descia a pé a Portobello Road em direção a Notting Hill Gate. Ficava passeando pela região do Kensington Market e depois voltava para casa. A estação de metrô Westbourne Park é um dos centros do submundo na área, e eu sempre via alguma coisa digna de pena e que me deixava um pouco mais triste antes de chegar em casa. Mais ou menos uma semana antes de sair de Londres eu estava lá comprando os jornais e vi uma loira detonada, carregando uma criança, perto do telefone público da estação. Ela parecia tão por fora, tão deslocada. Estava chorando, e as lágrimas dela caíam no rosto do bebê. Acho que ela tinha brigado com o marido. Provavelmente teve que fugir para sobreviver. Levou a criança, e agora não tinham para onde ir. Passei por eles e comecei a voltar para casa. Ao atravessar a ponte da Canal Street, vi um homem e tive a sensação de que era o cara com quem ela tinha brigado. Eu descreveria o tipo dele como “Disco Dan”. Ele parecia eternamente aprisionado em reprises de Os Embalos De Sábado À Noite, Era um bagulho; estava usando uma peruca barata e penteada para o lado, o que tornava constrangedor olhar para ele. Parecia estar jogando a vida no lixo e tinha um aspecto patético. Estava caindo de bêbado — pelo visto, sempre tinha estado. Tive vontade de tirá-lo daquela infelicidade e empurrá-lo para o meio da rua. Percebi que eu estava perdendo a cabeça. Aquilo me lembrou de uma coisa que li uma vez. Quem me mostrou foi um velho bêbado da 23rd Street. Estava escrito na

ombreira da porta do hotel Chelsea. Eu nunca tinha reparado. Era assim: “Quem diz odiar você odeia a raça humana”. Aquilo bateu. Como eu podia viver com tanta hostilidade em mim? Eu precisava eliminar aquilo. Precisava começar a me resignar para vencer, não importava o que acontecesse comigo. Mesmo que todo mundo fosse meu inimigo eu precisava tentar me esquecer disso por um tempo. Precisava parar de odiar todo mundo. Precisava parar de me odiar. Eu não poderia continuar revivendo meu passado e retomando indefinidamente aquela coisa toda. Precisava de uma chance para me recompor. Aqueles dezessete anos de turnês com os Ramones não tinham sido fáceis. Quando eu estava com eles, tocávamos pelo mundo inteiro conforme as regras que os caras definiam por mim — eu não participava da elaboração das regras. Só me deixavam aprendê-las, obedecê-las e não questioná-las. Eu tinha que aprender a simplesmente não dizer nada e não pensar no assunto. Os Ramones se transformaram em criaturas macabras e robotizadas. Quando Johnny Ramone gritava uma ordem, nós ouviamos. Íamos para o teatro para nos distrair. Quem fizesse mais barulho ganhava. Se você não ganhasse, sempre tinha outro jogo no dia seguinte. Éramos profissionais escolados. Só precisávamos de uma batida de fundo para detonar em cima. Quando a fumaça começava a baixar e os alto-falantes estavam a ponto de explodir nós simplesmente parávamos junto com à bateria. A barulheira no palco deixava Johnny Ramone louco. Ele ficava perigoso, gritava e olhava feio para todo mundo. Nada além de puro ódio no olhar. Odiava todo mundo, especialmente Joey e eu. Nós adorávamos aquilo. Era divertido vê-lo estourar. Existem certos tipos de pessoa que sabem berrar de maneira extremamente hostil. Eu certamente sei, minha mãe sabe — mas John era fantástico. Ele sabia fazer uma cara realmente azeda.

Em troca, eu apontava facas para ele, gritava “vá se foder” e lhe dizia que eu o odiava de morte. Não sei por que nós não continuamos juntos. É difícil chegar a algum lugar na vida, e quando conseguimos, simplesmente jogamos no lixo. Eu apenas ficava em cima do palco, no meio daquela insanidade toda, puto da vida. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde algum maníaco largado no chão viria até mim e diria: “E aí, cara, quer se divertir?” “O que é que você acha, otário? Meu nome é Dee Dee Ramone. Meu negócio é droga, bebida e mulher. Eu sei tudo de cocaína, cerveja, erva, vinho e garotas de minissaia. E também de heroína, Valium e Quaaludes”. Eu sabia que Johnny Ramone me ouviria. Mas não importa, eu pensava. Isto aqui é uma banda de rock ou um exército, porra? Em Londres não consegui mais continuar indo à Boots todos os dias. Fiquei cansado do constrangimento que era levar o lixo para fora sem nada além de garrafas de metadona vazias, e por isso eu as empilhava no armarinho de remédios. Guardava também algumas garrafas de noventa mg cheias na prateleira do armário da cozinha. Tinha começado a levar para beber em casa. Percebi que o único jeito de progredir era me desintoxicar lentamente. Tentei ser racional quanto ao que eu estava fazendo; olhando para trás, provavelmente foi muito idiota guardar a metadona no meu flat, mas eu me sentia inseguro. Todo viciado em metadona se preocupa o tempo todo — com terremotos, ou se vai haver uma nova guerra mundial e os hospitais e drogarias vão fechar. Por isso eu guardava em casa. Eu não me sentia tentado a beber uma dose grande e ficar doidão. Em vez disso estava ficando bastante animado, como se estivesse vencendo o diabo na corrida. E sabia que, quanto menos metadona no meu sistema, mais chances eu tinha, e queria vencer.

Comecei a tomar três xícaras por dia, que era o que sobrava na garrafa que eu levava para casa. Fiz uma tabelinha na parede; eu estava decidido a me livrar da metadona, miligrama a miligrama. Em pouco tempo tinha um monte de garrafas marrons feiosas e cheias de veneno verde guardadas no quarto. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde teria que voltar para casa, e por isso telefonei para um serviço de contabilidade que Ira tinha encontrado para mim, para me ajudar na minha estada em Londres. Eu precisava ir para casa, e então eles mandaram uma limusine para me buscar, dinheiro suficiente para viver e uma passagem classe Clipper para Nova York pela Virgin Atlantic Airlines. Eu estava um caco, mas voltei para Nova York com estilo. Havia até uma limusine no aeroporto me esperando para me levar ao hotel Chelsea, onde eu ia ficar. Antes de sair de Londres, joguei todo aquele catarro líquido e verde pelo esgoto. Eu não queria que ninguém mais pusesse as mãos naquilo. Até onde sei, meu nome estava na garrafa, qualquer pessoa que as pegasse estaria comentendo um crime. Eu devia alguma coisa à Inglaterra por me deixarem entrar no país, e aquela era a minha maneira de demonstrar gratidão.

Abstinência no hotel Chelsea Tudo em paz na frente oriental. Nosso forte na costa leste está tranquilo. Há uma brisa gelada sobre a cidade. As gaivotas estão voando mais perto da baía. Percebo novos sentimentos em mim. Não me sinto uma pessoa incorrigível e não acho que eu deva me considerar um fracassado. Nova York em setembro sempre me deixa animado. É a época em que dá para andar mais rápido pela calçada. É quando o calor do verão não te oprime. Aproveito as febres do outono, mas não sei muito bem o que procuro. Voltei de Londres para Nova York em 28 de agosto de 1992. Eu tentei esconder, mas chorei. Acho que chorei por perceber que

estava com quase quarenta anos de idade e não tinha casa — não tinha para onde ir. Depois que o avião aterrissou no JFK, peguei um táxi para a 23rd Street, em Manhattan, e me registrei no hotel Chelsea. Tive sorte de conseguir. Sabia que teria que sofrer, mas tinha planejado aquilo. Eu sabia por que estava ali. Enfrentar a abstinência de metadona. Lutar pela minha vida. Recusei todas as ofertas de heroína dos amigos que eu conhecia e que ainda moravam no hotel. Tranquei-me no quarto e me isolei do mundo inteiro. Sou teimoso, e estava determinado a enfrentar a abstinência. Tapei os vãos da janela do banheiro e abri a água quente do chuveiro para transpirar a metadona. A metadona não se aloja no seu sangue — ela se aloja na medula óssea. É difícil abandoná-la. Ela precisa vazar lentamente de dentro de você. Eu fiz de tudo para tornar o processo mais fácil. Raspei a cabeça e cortei as unhas para que ela saísse mais rápido. Não tinha ninguém para tomar conta de mim. Fiquei pensando que eu realmente deveria estar morto, mas, de algum modo, sobrevivi. Finalmente, quando achei que conseguiria administrar, decidi encarar Nova York de novo e tomei um táxi para tentar levantar um dinheiro de direitos autorais. Se a inocência é uma ilusão, eu não acredito, porque existe muita beleza em Nova York. Peguei um táxi na 57th com a Broadway. A motorista era uma garota porto-riquenha, e parecia legal. Todas as garotas latinas são. Elas parecem ter uma noção mais realista de sobrevivência urbana do que os tipos com quem eu acabava ficando. Usava o cabelo puxado para trás, um moletom escuro e uma calça jeans normal. Entrei no táxi e pedi educadamente que ela me levasse para o hotel Chelsea. Sorrimos um para o outro e eu me senti aliviado e feliz por não ter pego um motorista maluco. Senti uma outra coisa também, não sei direito o quê. Era um sentimento

novo. Era como se a autoconfiança dela me animasse — ela tinha seus próprios padrões. Les, um dos donos da Chelsea Guitars, a loja de guitarras ao lado do hotel, me disse que Jerry Nolan estava procurando por mim, e que o cara estava numa boa. Jerry tinha escrito uma história da própria vida para o Village Voice, disse Les. Eu queria ver a história, mas não estava preparado para ver Jerry. Todo mundo me disse que ele tinha largado as drogas e que estava muito bem, mas fiquei preocupado. Les disse que Jerry tinha recebido 5 mil dólares pelo artigo no Village Voice. Se ele realmente tiver tanto dinheiro assim, não vai resistir, pensei. É tentação demais. Quando chegou o Natal eu estava caído no chão do loft de Mark Brady, na 14th Street. Não tínhamos aquecimento nem água quente. Eu estava muito fraco. Depois fui ao Astor Place Dinar com Mark e um outro amigo nosso para um jantar de Natal. O meu foi um cheeseburguer, e parecia muito bom. Enquanto eu comia, vi Chrissy, uma antiga namorada, passando pela janela com três clientes. Ela era quase uma reencarnação de Connie. As duas eram tão incrivelmente parecidas. Estranhamente era o mesmo bairro onde Connie tinha morrido. Mesmo com pena de todo mundo não havia nada que eu pudesse fazer. Eu já tinha tentado antes. Aquilo simplesmente acabou me dominando. Depois fiquei chapado. Eu estava sozinho, mas era bem melhor sem ela — Chrissy não merecia. Eu precisava fugir das drogas, da prostituição e da violência. Mas doía. Eu amava Chrissy também. Me lembro de que quando estava na Inglaterra li no Mirror ou no Sun uma coisa que me ajudou. Era uma reportagem sobre um famoso jogador de críquete. A mulher e ele tinham falido; aí alguns repórteres descobriram que a mulher tinha entrado no ramo. Os jornalistas contrataram a garota para uma sessão de fotos. Não foi uma coisa bonita. Além disso, cobriram as

primeiras páginas dos jornais com a reportagem, com detalhes. E depois foram entrevistá-lo para saber qual era sua reação à tudo aquilo. Eles o perseguiam, chegando a interrompê-lo no meio de um jogo de críquete. E a reação dele foi: “Desculpem, mas eu estou ocupado jogando críquete:” Achei aquela reação brilhante e resolvi copiá-la. “Aquela é a Chrissy?”, perguntei para Mark e o amigo dele. “É, Dee Dee”, eles disseram. “É ela”. Ficaram incomodados. Eu também. “O que você acha?”. “Sei lá”, respondi. “Eu estou ocupado comendo um cheesebúrguer”. No dia de Natal fui para meu velho quarto no prédio onde morava antes de sair de Nova York, na 23rd com a Lexington. Era um prédio muito detonado, o antigo hotel George Washington. Por coincidência, uma das minhas antigas namoradas foi ver se eu estava lá. Ela estava carregando uma sacola de compras; pensei que talvez estivesse trazendo um presente de Natal para mim, mas não. Ela só tinha aparecido para piorar o inferno da minha vida. Começou a brigar e depois me informou que ia trabalhar no Executive Spa, um puteiro na 23rd Street. Acreditem, eu não queria amostras grátis. Mas não fiquei com tesão nem injetei heroína depois. Ela tinha entrado no ramo — algumas coisas não mudam jamais. Mas eu estava mudando, ao meu modo. Segui a regra “você faz sua própria sorte”. O que me ajudou foi que Nova York tinha se tornado um grande vazio para mim. Eu não me encaixava. Não conseguia me identificar. Andar por Nova York, para mim, já era como andar por um cemitério. Todo mundo que eu conhecia tinha praticamente arruinado a própria vida ou morrido.

Então Jerry Nolan morreu. Chorei quando soube. Ele era uma espécie de amigo. Eu me preocupava com ele e era seu fã quando comecei a tocar. O cara usava aquele penteado cool, espetado. Era uma estrela — pelo menos em Manhattan, para os fãs dos Dolls e dos Heartbreakers como eu. Não consegui ir ao funeral. Simplesmente fiquei parado, em estado de torpor, depois que Mark Brady me trouxe as más notícias. Mark foi ao funeral sozinho. Mark não me disse muita coisa sobre o funeral quando voltou. Estava arrasado. Jerry tinha sido amigo íntimo de Mark também, e Mark tinha tentado ajudá-lo. Agora era tarde demais. Ele e eu entramos num vale de dor que estava se tornando familiar demais. Eu mal conseguia respirar. Acabei simplesmente andando por um dos corredores frios do nosso prédio até encontrar um canto escuro. Mais uma pessoa na minha vida tinha se tornado só uma lembrança. Que sombrio. Que vida.

Blues Durante catorze meses, depois de voltar da Inglaterra, tentei reviver meu passado no Lower East Side. Fui para a Inglaterra para amadurecer — eu tinha chegado muito perto de virar junkie de rua ou coisa pior. As coisas assustadoras que vi ao longo da vida vão ficar sempre na minha memória. Mas houve um lado bom nas coisas tristes que aconteceram. Acho que eu não teria feito nada se não tivesse visto o que aconteceu com Johnny Thunders. Depois que ele morreu, entendi que eu precisava lutar. Os New York Dolls eram um símbolo da velha escola do rock de Nova York, e percebi que com a morte dele alguma coisa tinha acabado também. Se isso tudo parece confuso, como você acha que eu me sentia? Me sentia ameaçado. Como ex-Ramone, já tinha sido fodido demais pelo passado para esperar alguma outra coisa. Mas só

estou tentando deixar de lado minha surpresa por ter passado por tudo aquilo e ainda estar vivo. Minha vida está melhorando. Já passei por muita coisa. Se você acredita naquela velha frase, de que você precisa viver o blues para tocar blues, acho que eu tenho experiência pra cacete. Alguém me disse uma vez que as coisas boas não acontecem da noite para o dia. Que as coisas demoram para se desenvolver. Bem, eu também já ouvi dizer que “merda acontece”. Eu queria tocar blues porque sentia o blues. Era um modo de começar tudo de novo. Uma oportunidade de refazer a minha vida — uma chance de mudar meus antigos padrões. Então entrei numa banda de rock outra vez. Comecei a aprender a me controlar e a voltar a encarar a música como diversão. Exatamente como no tempo em que eu era fã de grupos de rock como os Rolling Stones. Foi difícil para mim nos Ramones, mas aquilo havia acabado. Mas pelo menos ganhei uma boa experiência a partir da qual posso julgar meus erros. Comecei a acreditar que poderia sobreviver a mais um round com o rock'n'roll. Eu sabia que ele cobrava seu preço. Não tinha ilusões. Achava que ninguém na indústria da música dava a mínima se eu iria ou não tocar mais uma nota de rock'n'roll na vida. Uma das coisas que percebi foi que toda aquela coisa competitiva de estar numa banda era uma chatice. Eu queria que todos nós, nos Ramones, conseguíssemos ficar na moral, mas não sabíamos como. Deixamos que a indústria da música nos levasse. É um sistema que negocia a rebeldia em troca de lucro, mais ou menos como os barões da droga. Talvez tenha sido diferente no começo. Será que “Roll over Beethoven", de Chuck Berry, era isso? É difícil montar uma banda. Eu me lembro de que fui ao escritório de Gary Kurfirst discutir quem eram os músicos que talvez

estivessem disponíveis para montar uma banda, mas ele não tinha nada de bom a dizer sobre nenhum deles. Não vou mencionar nomes, mas ele recusou todos. E eu saquei que nada ia acontecer. Ele só queria que eu compusesse algumas músicas para o próximo álbum dos Ramones. A agressividade é o que impulsiona uma grande banda de rock'n'roll. Não pode ser fingida; se for, será uma merda evidente. As pessoas de classe alta não entendem isso. O sistema capitalista não pode criar bandas de rock'n'roll e esperar que todo mundo aceite isso como rebelião. Não funciona. Um sistema que protege um dos lados enquanto o resto de nós vai para a cadeia me deixa louco. Portanto, não esperem que eu colabore. Eu nunca tinha sequer percebido que existia um sistema de classes nos Estados Unidos até me mudar para Ann Arbor, uma cidade no Michigan habitada — dominada seria uma descrição melhor — por universitários ricos e mimados. Uma das coisas que me atraíram para lá foi o mito de que de Ann Arbor vinha um rock'n'roll de grande energia. Eu até consigo ver como Liverpool nos deu os Beatles, mas nunca vou entender como Ann Arbor nos deu Iggy and the Stooges. Ir todo dia para a Tower Records me mantinha de bom humor, mas não tinha praticamente nada para fazer lá. Acho que é por isso que voltei a tocar guitarra. Comecei como todo mundo, aprendendo velhos blues; achei que ia ser o novo Johnny Winter ou qualquer coisa assim. Mas eu sou aquilo mesmo. Até hoje eu simplesmente chacoalho e ataco minha guitarra em cima do palco, como faz Johnny Ramone. Não me preocupo em tocar bem. Acho que uso a guitarra para gritar com todo mundo. Havia uma jam de blues em Ann Arbor, no Blind Pig, todo domingo, e fui ver como era. Em pouco tempo comecei a ir para lá religiosamente e a tocar com os músicos locais. Numa ocasião, simplesmente fiquei na minha, tentando tocar uma velha música de Muddy Waters que eu tinha aprendido por meio de

uma velha fita de blues roubada de uma sala de ensaios de uma banda de Ann Arbor. Quando terminei, Al Vicious, o baixista da banda dacasa, abriu um sorriso irônico e ficou tentando ser gentil. O baterista e o gaitista não sabiam o que fazer, e por isso toquei sozinho. Acho que ninguém ali imaginava que o blues pudesse ser tocado daquela maneira tão suja, mas eles ficaram surpresos e queriam que eu continuasse tocando. Gary, que organizava a jam do Pig, veio me salvar. Subiu no palco e tentou fazer de conta que tudo o que estava acontecendo tinha sido na verdade planejado. Pegou o microfone e disse que eu ia tocar “Wart Hog” para todo mundo. “Como é que é?”, pensei. Contei “um, dois, três, quatro” e começamos a tocar a música. Todo mundo foi para casa feliz. No começo dos anos 80, meu conselheiro na Odyssey House, Harold Holloway, tentou desesperadamente falar comigo, mas não conseguiu. Harold sabia que eu estava quase no fim da linha. Vários outros terapeutas teriam desistido de mim, me considerado causa perdida, mas ele fez de tudo. Aí tentou fazer com que eu escrevesse uma canção de amor, para que eu descobrisse os meus sentimentos. Depois entendi que estava devendo alguma coisa a ele. “Você quer uma música? Eu faço para você”, pensei. No dia: seguinte entreguei a ele a letra de “Wart Hog”: I take some dope I feel so sick It's a sick world, sick, sick, sick Doomsday visions of junkies and fags Artificial phonies, I hate it, hate it Death, death, death is the price I pay It's a sick world, what can I say No such thing as an even break It’s stealing and cheating, take, take, take

Wart, wart hog Wart, wart hog Wart, wart hog Wart, wart hog I wanna puke I can't sit still Just took some dope and I feel ill It’s a sick world, sick, sick, sick It’s a hopeless life, I hate, hate it It’s a joke, it's a lie, it's a rip-off, man It’s an outlaw life, we're a renegade band Doomsday visions of commies and queers Artificial phonies, I hate it, hate it Wart, wart hog Wart, wart hog Wart, wart hog Wart, wart hog Tradução Eu tomo heroína, me sinto tão doente É um mundo doente, doente, doente, doente Visões do fim do mundo de drogados e bichas Falsas artificiais, odeio, odeio Morte, morte, morte é o preço que eu pago É um mundo doente, o que posso dizer Não existe algo como um equilíbrio É roubar e trapacear, pegar, pegar, pegar Porco, porco selvagem Porco, porco selvagem Porco, porco selvagem Porco, porco selvagem

Eu quero vomitar, não consigo ficar parada Acabei de tomar heroína e me sinto doente É um mundo doente, doente, doente, doente É uma vida sem esperança, eu odeio, odeio isso É uma piada, é uma mentira, é uma roubada, cara É uma vida fora da lei, somos uma banda renegada Visões apocalípticas de comunistas e gays Falsas artificiais, odeio, odeio Porco, porco selvagem Porco, porco selvagem Porco, porco selvagem Porco, porco selvagem “Que merda é essa?”, perguntou Harold, olhando para o pedaço de papel que eu tinha dado a ele. “Sei lá”, respondi. Percebi que ele estava puto. Quando saí, acho que o ouvi dizendo: “Por que é que todos eles são tão imbecis?”. De qualquer maneira, naquela noite, ao voltar da jam de blues logo depois de tocar “Wart Hog”, voltei a sentir o entusiasmo de antes. Percebi aquele velho amor pelo spotlight se manifestando dentro de mim e comecei a pesar os prós e contras. Se você fizer, vai te fazer mal. E se você não fizer, vai te fazer mal. Portanto, não tenho muita opção, pensei. Além disso, se eu tivesse uma banda, teria novamente com quem sair. Eu estava sozinho, entediado é precisava de alguma coisa para me distrair. Acabei decidindo fazer isso. “Que se foda”, pensei. Eu sabia que poderia contar com Tom Templin, um valentão da cidade, para manter a banda na linha. Tom era de Detroit, e por isso pensei em ir procurar membros da minha nova banda lá. Era assustador, mas eu achava que podia. Não tinha volta, a menos que eu quisesse ficar sozinho; ainda precisava da companhia de gente parecida comigo, e foi por isso que montei os Chinese Dragons

— e é claro que eu terminei cantando “Wart Hog” em todas as outras noites! Que palhaçada. Para arrematar optei por uma atitude “foda-se todo mundo”, e depois de um tempo, pensei em tocar algumas músicas dos Ramones e encaixar uns blues no meu show, “Uau, isso é ótimo”, pensei. Eu estava animado. Antes de subir para o meu flat, liguei para um camarada meu na agência Doug McAlpine de um telefone público perto de onde eu morava. “Oi, Doug, é o Dee Dee. Tudo bem?”. “Como vão as coisas?”, disse Doug. “Ah, tudo bem. Escute uma coisa: eu vou montar uma nova banda de rock'n'roll e ela vai ser de Detroit, como o Iggy and the Stooges ou MC5”. “Uau”, disse Doug, “que bacana”. “É, eu sei, vai ser demais”. Doug era especialista em blues e coisas desse tipo. Fui me encontrar com ele no Solley's, um cocktail lounge em Deerborn, no Michigan, onde as bandas de blues tocam. Ele tentou ser gentil, como sempre — mas percebi que isso era o máximo que eu conseguiria, embora ele tenha armado o primeiro show dos Chinese Dragons no Solley's. Achei muito legal tocar num clube de blues de verdade. Mas tudo aconteceu por causa de Jeff Grant, de Detroit, uma lenda local da guitarra. Conheci Jeff num show do Jim McCarty and the Detroit Blues Band, no Paycheck Lounge, em Hamtramik. Jeff gostou de mim e começou a me mostrar Ferndale, e eu fiquei conhecendo a área perto da drogaria Pay-Less, do Loving Touch Massage Parlor e do tal Coney Island, onde um tempo depois os Chinese Dragons e eu íamos jantar toda noite.

Jeff Grant tinha uma salinha de ensaios em Ferndale, não muito longe da Gordy's Guitar Shop. Uma noite ele me levou para lá, depois da farra. Tínhamos acabado de sair do Centerfold's, um go-go bar da cidade, estávamos meio altos e numa boa. Quando subimos as escadas, Richie, Allen e Scott estavam lá. Allen, bêbado como um gambá, e Richie e Scott pareciam estar em outro planeta. Que ótimo, pensei. “Querem tocar?”. “O que você quer fazer?”, perguntaram. “Sei lá”. Foi assim que surgiram os Chinese Dragons. Já estava na hora de Detroit dar ao mundo mais uma banda de rock'n'roll barulhenta, e fiquei feliz por fazer parte dela. Então tive mais uma chance de fazer o que sempre fiz. Acho que “Wart Hog” é a minha maneira de gritar com todo mundo que vai aos meus shows. Quando canto essa música, as pessoas olham para mim com alegria, mas também como se eu fosse louco.

Buenos Aires Na última vez em que fui para a América do Sul com minha nova banda, uma porção de criaturinhas me seguia por onde quer que eu fosse. Era só pôr o pé para fora do elevador e ir para o lobby do hotel chique onde eu estava, no centro de Buenos Aires. Todas elas usavam camisetas dos Ramones e ficavam me perguntando coisas, exigindo autógrafos e pedindo que eu posasse para fotos. Eu me sentia a ponto de pirar, mas não perdi o controle e não gritei com ninguém — nem mesmo na recepção ou com os furtivos seguranças que patrulhavam os corredores. Eu estava novamente preso num quarto de hotel, mas dessa vez não acorrentado à ressaca de cocaína. Eu tinha mudado muito.

Cheguei a descer até a piscina para ficar sentado debaixo de um guarda-sol e tentar relaxar. Eu poderia ter toda a cocaína que quisesse, mas recusei. Simplesmente fico feliz por não ter mais que sofrer como antes. Então comecei a me sentir muito feliz porque minha idéia de diversão era mais sossegada do que na primeira vez em que estive na América do Sul. Na verdade, o fato de que enfim eu ia ganhar algum dinheiro era o meu grande barato. Comecei a rir. “Cara, eu fiquei louco”, pensei. Bem, acho que é isso que me torna tão adorável. Quando voltei para Buenos Aires com minha nova banda, não acreditei no quanto os Ramones eram adorados por lá. A presença deles é uma influência muito intensa sobre aquela garotada. Acho que é porque os Ramones e os fãs dos Ramones vêm do mesmo tipo de ambiente. Certamente não o mesmo ambiente dos estudantes mimados de Ann Arbor. Então, percebi que se os Ramones tivessem que dar alguma lição, seria a da esperança e à da luta contra a opressão. Esse tipo de coisa realmente me faz pensar que vale a pena tocar numa banda. Saí do hotel, na Argentina, e fui cercado por uma multidão de garotos que começaram a fazer perguntas. Nós nos sentamos nuns degraus exatamente como eu fazia, muito tempo antes, com meus brudders, em Forest Hills. Ficamos conversando sobre os Ramones e coisa e tal; depois surgiu o assunto guitarras. “Dee Dee”, disse um deles, “você toca guitarra no velho estilo”. Aí um deles me perguntou como era quando eu comecei a tocar. “Sabe como é, a gente pegava uma daquelas guitarras antigas, ligava num toca-discos e depois ligava o toca-discos no aparelho de som da mãe quando não tinha ninguém em casa”. Eles não acreditavam. “É o que a gente também faz, Dee Dee”.

“Meu Deus”, pensei, “estamos em 1964 ou em 1992?”. Fomos até um teatro para fazer um show para a TV. Foi um tumulto. Durante um intervalo da gravação, fui até a lateral do palco, me escondi atrás da cortina e dei uma espiada na outra banda que ia tocar. Pelo que percebi, eles pareciam ter uma forte influência de Nova York. Tinham um guitarrista estilo Johnny Thunders, contavam “um, dois, três, quatro” como os Ramones e soavam como os Pistols. Quando vi os dentes quebrados do vocalista entendi de onde eles vinham.

Holanda Por algum motivo a última coisa de que eu precisava era me envolver com alguns tipos realmente insensíveis da indústria da música — como o promotor de Nihagen que me convidou para ir pela primeira vez para a Holanda, onde desenvolvi um projeto musical meio confuso chamado ICLC. Eu estava sozinho; morei durante nove meses num quarto barato no hotel Rembrandt, perto da estação de trem de Venlo, uma pequena cidade de fronteira na Holanda. Eu gostava de Venlo, mas percebi que a cidade não gostava de mim. Ela deixou bem claro. Por isso eu me mudei novamente, dessa vez para Amsterdã. Meu primeiro apartamento em Amsterdã ficava na Rosen Straat. Amsterdã é uma cidade bonita, arborizada, com jeito de vila. Tem uma mentalidade bem liberal, e não é um bom lugar para você ir e tentar ficar sério. Mas foi o que eu fiz, e não deu certo. Tinha uma oficina embaixo do apartamento na Rosen Straat. O barulho das furadeiras estava me deixando louco. Empilhei vários tapetes no chão para tentar abafar o som. Encontrei no lixo uns tapetes usados em que os cachorros tinham cagado várias vezes e levei tudo para a lavanderia. Depois de uma boa lavada estavam completamente reaproveitáveis. Finalmente, num esforço extremo para bloquear o barulho da rua — e também os sons

das crianças que berravam no playground do térreo inundando o apartamento o dia inteiro e abalando continuamente os meus nervos —, fui até a loja de departamentos Block Haam, em Haia, e comprei uns rolos de fita de plástico azul transparente que usei para cobrir todo o apartamento. No fim, a tensão ficou grande demais para suportar e precisei me mudar outra vez. Consegui um novo apartamento na Harten Straat. E vi que não era muito melhor. Não era exatamente a rua onde eu morava que era ruim. Era a cidade inteira. Então percebi que aquela atitude dos europeus diante dos americanos é uma bosta. Em dois anos não fiz um único amigo na Holanda. As coisas ficaram tão ruins em Amsterdã que no verão, se eu quisesse sair do apartamento um pouco para tomar um ar, a melhor coisa a fazer era ficar sentado na calçada, perto do canal, tentando me esconder dos cidadãos anti-americanos de Amsterdã que passavam por mim. Para piorar os Ramones ainda estavam juntos. Fizeram até um show ao vivo na MTV enquanto eu morava em Amsterdã. Parecia que qualquer coisinha que eles fizessem me angustiava. Eles pareciam horríveis na MTV - muito velhos, cansados e irritados. Mesmo que eu não tivesse nada a ver com eles, por algum motivo era difícil tirar aquela marca dos Ramones da cabeça. Acho que é a maldição da fama. Depois do show na MTV as pessoas começaram a me provocar na cidade. Por que o Joey está tão acabado? O que ele anda tomando? Por que ele não cantou? Por que o CJ cantou? — e assim por diante. A opinião geral em Amsterdã era: “Por que eles ainda continuam?”. Aí eles marcaram um show em Roterdã e as pessoas ficaram me perguntando se eu poderia dar um jeito de incluí-las na lista de convidados. Dá para imaginar isso? Duas lindas garotas holandesas chegaram a tentar me levar para fazer sexo com elas. Eu não acreditava. Elas queriam ficar comigo para conhecer

Joey Ramone! Eu estava ficando enjoado de tantas garotas fazendo aquilo comigo. Até minha nova namorada, Barbara, era grande fã dos Ramones. Chegou a batizar de Dee Dee todas as bonecas e bichos dela quando morava em Buenos Aires. Ela queria muito ir para Roterdã e ver os Ramones tocar. Eu tinha conhecido Barbara na minha turnê anterior pela Argentina — ela era de Buenos Aires. Mais tarde, foi para a Holanda para morar comigo em Amsterdã, depois de muita discussão com os pais e com as autoridades para conseguir um visto de residência. Claro, ela era muito nova. No fim, quando ela estava praticamente me convencendo a ir ao show em Roterdã, recebemos um fanzine dos Ramones pelo correio. Havia uma entrevista com Johnny Ramone e perguntaram a ele se os Ramones, caso um dia fizessem um último show juntos, me convidariam para subir no palco e tocar com eles. “Não”, respondeu ele, “o nosso baixista agora é o CJ”. Bem, era verdade, e eu não fiquei alimentando os rumores de que iria fazer um último show com os Ramones, mas rolava um boato de que o show em Roterdã seria o último. Por isso todo mundo na cidade ficou me enchendo para ir tocar com eles. Loucura. Acabei espalhando que eu estaria em Nova York no dia do show em Roterdã. Depois, disse que, apesar disso, eu estaria em Roterdã para me encontrar com eles depois do show. Era tudo muito delicado, porque eles queriam, de novo, que eu fizesse músicas novas para a banda. Em vez disso, levei Barbara para o Milk Way, the Milkweg, um clube onde eu tinha tocado várias vezes com os Ramones. À essa altura, eu estava me acostumando com gente olhando feio para mim é com o tratamento estranho que recebia ao sair de casa. Acho que não ajuda muito ter 43 anos e uma namorada jovem e bonita, mas é o meu estilo. Afinal, o que você pode fazer? Amsterdã parecia ser minha última parada. Passei cinco

anos fugindo, desde a saída dos Ramones, e estava cansado disso. Assim que Barbara e eu nos acomodamos no bar, uma menininha horrível e sinistra veio até mim e disse: “Você é como o Bill Wyman, o fracassado dos Rolling Stones?”. “Eu não dou doces para crianças”, respondi. Na verdade eu só estava tentando me livrar dela, mas ela foi esperta. Ficou bem diante de mim, tentando me encarar e esperando uma reação para poder dar uma boa risada da situação. Então olhei para aquele rosto insensível e sórdido de menininha e ataquei. Ri primeiro, fazendo um sorriso irônico e amargo que treinava com frequência. Aí cobri a boca com a mão, tossi na cara dela e acrescentei: “Você deve ser a fracassada do Milkweg”. Aí dei meia-volta e puxei Barbara na direção oposta para recobrar a compostura. “Já me enchi. Vamos, baby. Vamos para casa”, eu disse. Prometi levá-la para ver os Ramones no CBGB's, em Nova York. Fiquei sabendo por acaso que eles iam tocar lá de novo para ganhar um dinheiro e pagar Marc, CJ, os roadies e algumas outras contas da banda. Na volta do Milkweg ouvi uma voz furiosa me xingando em holandês. Quando vi era a mesma putinha sinistra que tinha acabado de me comparar a Bill Wyman. Bem, se eles não conseguem ser bonzinhos, por que eu devo ser? É assim. Achavam que iam me tratar mal e que eu ia ficar amigo deles? De jeito nenhum. Talvez Bob Hope fizesse isso, mas não Dee Dee Ramone. De jeito nenhum! Eu não consigo desejar boa sorte a quem não me deseja sorte nenhuma. “Na próxima vez em que os Ramones tocarem em Roterdã, eu ponho você no trem e te levo até o camarim para conhecer Joey

Ramone, Ok?”, disse ao monstrinho quando saímos do lugar. É claro que eu não estava dizendo a verdade, mas fazendo a garota de palhaça. Eu disse a ela que ainda valia a pena ver o pinhead que carregava o emblema “Gabba Gabba Hey!”. Aquele pinhead nunca vai abandonar os Ramones! É do tipo John Merrick — chegado a fama e putinhas com cabeça de alfinete. Depois eu disse: “Mas sabe de uma coisa, monstrinho? Você seria feliz se conseguisse chegar perto dele e beijar aquela cabeça pontuda! Agora some!”. Barbara e eu caminhamos pela Keizersgreacht até nosso apartamentinho na Hartenstrat; O céu estava bonito, sem estrelas. Eu estava me sentindo bem. “Que noite gostosa”, eu disse. Barbara me perguntou: “O que você fez depois do seu último show com os Ramones?”. “Bem”, respondi, de um jeito quase paternal, “sabe o que eu fiz? Depois da última vez em que joguei fora o meu baixo, fui até o pinhead e passei a mão na cabeça dele para dar sorte. E foi isso. Eu espero que os meus queridos irmãozinhos façam a mesma coisa. Eles vão precisar de toda a sorte do mundo”. De repente, ainda no caminho de casa, eu disse: “Sabe de uma coisa? Eu me sinto um sortudo. Como é que as coisas podem terminar tão bem para uma pessoa como eu? É impressionante!”.

Mechelen Um ano depois daquela caminhada de volta do Milk Way eu precisava sair de Amsterdã com Barbara. Um outro casal americano que conhecemos nos disse que o único jeito de sobreviver morando lá era tentando ficar invisível. Eu sabia do que ele estava falando. Não estava feliz com aquilo. Eu me sentia humilhado e banido da cidade.

Como resultado, me mudei para Mechelen, perto de Antuérpia, na Bélgica, com Barbara e os dois cachorros que tínhamos arranjado em Amsterdã, Kessie e Babita. Kessie era um vira-lata ordinário e muito mal-humorado. Ele também odiava Amsterdã e sempre se comportava mal na rua. Na Argentina, Barbara tinha um pit bull chamado Doogie, e então, depois de um tempo, resolvi ter mais um cachorro. Por isso arranjamos Babita, uma espécie de mistura de dobermann com rottweiler em miniatura. Eu poderia ter sido muito feliz em Mechelen. Era chato, é verdade, mas morávamos num lugar bom e silencioso. Um pouco como a área de Ann Arbor, em Detroit, nos EUA. É muito estranho ser um nova-iorquino em Mechelen. A cidade é meio medieval, Catedrais, ruas de pedra, placas pintadas à mão, brasões e absolutamente nenhum sinal de vida aos domingos. Além disso, o povo belga é muito mais amistoso do que o holandês. Mas a polícia belga é um bando de filhos de puta nojentos — ficaram no meu pé praticamente desde que cheguei lá. Agiam mais ou menos como eu sempre imaginava que os policiais durões do sul agiam no Alabama nos anos 60, no auge das tensões raciais. Assim que me mudei para Mechelen, arranjei um advogado em Antuérpia para conseguir um visto de residência permanente para mim. Ele sugeriu que eu abrisse uma editora com dez mil dólares, o que me qualificaria para um visto. Pareceu bom. Fiquei satisfeito e disse: “Ok, vamos fazer isso” Michael, da Herzog and Strauss, mandou todos os papéis para ele imediatamente, mas parecia que o meu advogado nunca dava início ao caso. Uma assistente mal-humorada dele me disse que o cara tinha informado nossos dados para que a polícia fizesse um relatório e que nós poderíamos ficar tranquilos até os papéis chegarem. Perguntei se não era melhor nós sairmos da Bélgica antes, para que não houvesse nada de ilegal. “Não”, respondeu ela, com um tom esnobe. “Fique na Bélgica, é seguro aqui”.

Seguro o cacete, como descobri depois. Parece que as únicas pessoas que realmente conhecem a lei são os policiais. Fiquei preocupado. Eu conseguia sentir que teria problemas — e estava certo, como sempre, Barbara e eu fomos quase deportados da Bélgica. Um dia, de manhã, os policiais nos pegaram em Mechelen enquanto saíamos da banca com os jornais. Sem nenhum motivo fomos obrigados a entrar no carro de patrulha e levados até a estação. Não me deixaram ligar para um advogado. Pareciam cheios de ódio injustificado contra mim e Barbara. Fomos ameaçados. Eles nos deram uma alternativa — “vocês podem ir para a URSS ou para a Tchecoslováquia, mas os dois estão em nossos computadores por terem violado as leis da Comunidade Européia”. Tínhamos que ir. Perdemos tudo. Eu não estava com drogas — eu não usava mais nenhuma. Eu não estava com armas. Eu não tinha cometido sequer uma infração de trânsito. Meu advogado em Amsterdã me disse que fui preso sem motivo e que os policiais de Mechelen eram assim mesmo. Disse que nenhum americano estava seguro morando lá. Hoje concordo totalmente com ele. Além disso, aprendi a lição e nunca mais vou repetir o erro. Nunca mais vou voltar para a Bélgica. Aí um dia minha mãe ligou, Foi estranho. Eu não falava com ela havia pelo menos quatro anos. Meus ex-empresários em Nova York tinham lhe dado o número. Ela parecia bem, e fiquei feliz por ela ter ligado. Eu disse que queria poder voltar para a Alemanha para morar, mas era difícil, porque eu precisava de um visto de residência e não conseguia. Ela não podia fazer nada, tinha perdido a cidadania alemã e não podia ficar lá por mais de seis meses por ano. Ela me deu o telefone da minha avó, em Berlim. Liguei. A velha me pareceu realmente bizarra. Então entendi por que minha mãe era daquele jeito quando eu era mais novo. Ter enfrentado a II Guerra Mundial, os bombardeios, a invasão russa, a família e um marido como meu pai não deve ter sido fácil. E, sim, odeio admitir isso, mas um filho como eu

também não. Por mais que eu tenha simpatia por ela, o muro em volta das minhas emoções sempre vai existir. Acabei dizendo a ela que minha família eram os Ramones. Que sou Dee Dee Ramone, e não Douglas Colvin. Nunca fui exatamente um cara família. Mas eu me senti bem por falar com ela; depois que desligamos, aposto que nós dois pensamos a mesma coisa. Tanto ela quanto eu não temos, além de nós mesmos, em quem confiar. Pouco antes de sair da Bélgica eu precisava montar uma banda para fazer uma turnê pela Espanha. Se desistisse, seria processado, e precisava fazer a turnê. Foi muito estressante. Parece que todo mundo na indústria da música vai ficando cada vez mais desonesto e cheio de merda. Foi uma daquelas turnês totalmente inúteis. Depois, Barbara e eu pegamos o avião em Madri e voltamos para a Argentina. No fim de tudo, eu precisava sair de lá com ela.

Despedida argentina Estou sentado num quarto agora. O quarto não é meu. Estou na Argentina de novo. Um bairro sonolento de Buenos Aires chamado Banfield, na casa da avó da minha namorada. Estou me escondendo de novo porque me sinto infeliz e sei que todo mundo que me vir só vai ficar infeliz também, por isso estou dando um tempo para o mundo. Fiz a besteira de deixar um cachorro entrar aqui, imaginando que ele poderia me alegrar. Encontrei-o perto do portão e já o batizei de Ramon. É um vira-lata gordo e velho que obviamente brigou com algum outro cachorro e está com a pata ligeiramente ferida. E a minha cabeça está ligeiramente ferida. Briguei com um fã dos Ramones. A avó de Barbara e as duas irmãs dela foram nos encontrar no aeroporto. Fomos acomodados no quarto da irmã de Barbara — ela acabou dormindo na sala de estar. Imediatamente fiquei meio

nervoso. Talvez eu tenha deixado todo mundo louco, e por isso estou aqui, novamente sozinho, sentado num quarto, escrevendo. Quando tento sair, o mundo fica intenso demais para mim. Isso me dá medo. Eu me sinto vulnerável, deslocado e mal recebido em qualquer lugar. Me sinto um merda — como se sentiria um criminoso, mas não sou um. A essa altura, Ramon, o cachorro que deixei entrar aqui, se levanta e sai do quarto. Ele insistiu para entrar aqui. Por isso deixei. Queria que ele tivesse gostado daqui. Mas fiquei preso aqui dentro, pensando em como é lá fora. Acho que Ramon é só um cachorro velho e maltratado e não tem como saber o que está acontecendo, mas ainda assim ele me incomoda. “Seu filho da puta gordo”, murmuro enquanto ele se arrasta até a porta. O que eu mais precisava nesse momento era de um visto para Barbara, para que pudéssemos ir para os Estados Unidos, onde acho que nós dois ficaríamos bem melhor. Tentamos por um ano. Foi difícil. Ela era menor de idade e tinha passaporte argentino, e os pais dela não nos ajudavam a não ser que insistissemos muito. À burocracia na Argentina é dura. A Argentina é como um túnel do tempo. Lembra uma época em que os Estados Unidos eram um bom país para se viver. Embora tudo seja mais difícil, as pessoas são mais agradáveis do que na maioria dos lugares. Há tanto smog no ar que acaba com os pulmões. Os motoristas de ônibus são assassinos. Ficam tentando empurrar as pessoas de moto de propósito com seus ônibus grandes e fedorentos. É um hospício. Todo mundo atira nuvens de fumaça preta dos escapamentos para as janelas dos carros dos outros. Elas ficam abertas, porque ninguém tem ar condicionado. Todos os carros são velhos e detonados, mas têm muita personalidade. É bem louco. É mucho difícil conseguir dinheiro para viver na Argentina. Meu contador, Ira, me enviava uma grana pela Western Union em Córdoba e Suipacha. A viagem de táxi até esses lugares era um

pesadelo. Primeiro porque faz calor. Muito, muito calor. Depois porque o motorista do táxi começava a falar sem parar em espanhol sobre os Ramones. Eu não entendia uma palavra. De vez em quando eu resmugava “sí” para ele e tentava não perder a cabeça, mas, como o motorista ficava se virando o tempo todo para falar comigo e nunca olhava para a estrada, eu fixava o olhar no pára-brisa à minha frente, como se quisesse induzir o táxi a atravessar o labirinto do trânsito, decidido a não fazer merda nem sofrer um acidente, porque precisava pegar o dinheiro. O trânsito era congestionado. Lento. Motoristas latinos loucos e furiosos. Parecia um filme. Tinha também os bloqueios policiais na estrada. Quando cheguei na Western Union, entrei correndo e saí pouco depois com seis notas de cem pesos. Entrei no táxi e voltei para Banfield, na periferia de Buenos Aires, meu endereço na época. Eu deveria ficar feliz, mas nunca me deixavam em paz. No caminho, ouvi no rádio a notícia de que os Ramones iriam fazer seu último show em Buenos Aires no dia 16 de março. Iggy também estava no programa. Sempre aparece alguma coisa para estragar tudo. Dessa vez foi a rádio Rock and Pop. Ficaram anunciando o show de Iggy e dos Ramones sem parar. Depois veio o anúncio de que o Attack 77 também participaria. Era realmente uma merda. Eu não estava a fim de ver o Attack 77, nem a cara idiota de Iggy, nem as caras idiotas de John, Joey e Marky. Assim que saí do táxi, entrei correndo em casa e desliguei a Rock and Pop, que Barbara estava ouvindo a todo volume num Panasonic portátil. Que dia de merda. Uma outra pentelhação era o papo de que os Ramones talvez ficassem e dessem um show extra. Era um saco aquilo tudo. Começou a ficar óbvio que eu tinha uma certa obrigação de tentar tocar no último show dos Ramones. Todo mundo no bairro começou a me importunar pedindo ingressos. Tive que pegar minha guitarra e tocar algumas músicas dos Ramones para os caras, na calçada, para ter paz. Foi horrível para mim. Foi muito

desmoralizador. Quando os Ramones aterrissaram no aeroporto internacional de Buenos Aires para o último show, eu queria morrer. Acabei prometendo tentar conseguir ingressos de graça para as pessoas. Liguei para a Rock and Pop, que estava fazendo a promoção dos Ramones em Buenos Aires, nove vezes. Falei com várias pessoas diferentes. Elas não me prometeram nada exceto me telefonar. Não telefonaram, de modo que achei que não iria ao show. Eu me senti como se o mundo inteiro estivesse contra mim por ter ligado nove vezes para a Rock and Pop e recebido um tratamento tão grosseiro. Achei que talvez fosse desmoralizador demais ver os fãs de Dee Dee Ramone cuspindo em CJ em vez de mim, e o público tentando fazer com que Johnny Ramone cometesse algum erro e ficasse mais nervoso ainda. O clima estava muito tenso, mesmo antes do show acontecer. Um tumulto estourou no centro de Buenos Aires quando a promoção do evento ignorou inexplicavelmente uma distribuição gratuita de ingressos. Nenhum dos ganhadores recebeu os ingressos depois de ter passado a noite inteira numa fila, e então ficaram nervosos. Com isso, perdi realmente a vontade de ir. Vi a confusão toda. Tinha acabado de pegar dinheiro na Western Union e estava indo para uma loja da Dunkin' Donuts para comprar seis ingressos para Sofia e Rocio, irmãs de Barbara, e uns amigos delas. Ter que comprar aqueles seis ingressos para os Ramones me deu uma sensação engraçada — eu não sabia que eles estavam dando ingressos logo ao lado, num prédio da Coca-Cola. Quando a polícia chegou para dispersar o pessoal, todas as lojas estavam com as janelas quebradas. Mais tarde apareceu uma reportagem sobre o tumulto na MTV. Aí finalmente Monte me ligou. Depois tive que falar ao telefone com Johnny Ramone. “Eu não sei como nós pudemos ficar tanto tempo fazendo aquela turnê com o Metallica, Dee Dee” contou ele. “Estou quase louco.

Todo mundo está acabado, Arturo foi preso por alguma coisa um pouco antes de irmos para o Brasil. Tem sido um pesadelo. Eu gostaria que você pudesse ir ao show, a gente quer ver você”. “OK, respondi. Eu me senti péssimo depois de desligar o telefone. Apesar de todos os meus problemas, eu tinha pena de John e dos outros Ramones. Cheguei no hotel onde eles estavam às cinco horas, que era o horário combinado com Monte. Eu e à banda íamos tocar juntos “53rd And 3rd” no show. Íamos ensaiar a música na passagem de som e depois sair para jantar e conversar. Tudo parecia bem. O que eles não sabiam era que nos últimos dias eu estava tentando entrar na embaixada americana para conseguir um visto para Barbara e levá-la para Nova York. Eu começava o dia às cinco da manhã, porque precisava estar na fila do lado de fora às seis. Talvez eu seja louco, Sei lá. Não sei perder. Brigo até o fim pelo que quero. O que as pessoas dizem de mim é: “O Dee Dee? Ah, ele sempre consegue o que quer”. Minha mãe e eu temos uma espécie de acordo alemão clandestino e maligno — não foi meu pai quem me ensinou a brigar, garanto. Acabei ficando tão perdido que liguei para ela e perguntei: “Mãe, o que eu faço?”. “Vá até lá, brigue e grite. Foi o que eu fiz na embaixada na Flórida, Dee Dee. Aí eles prestaram atenção em mim e eu consegui o que queria”. Foi o que fiz. No dia do show dos Ramones fui até a embaixada logo depois de me levantar. Já estava lotada. Fiquei andando para lá e para cá pela calçada, examinando a fila algumas vezes, mas criei coragem. Fui até o guarda que estava vigiando uma espécie de entrada misteriosa no portão, com jeito de bunker. “Eu quero entrar e pedir um visto”, exigi.

No segundo portão eletrônico tentei escorregar trezentos pesos para eles, mas não aceitaram. “Nós não fazemos mais isso, señor”, disseram. Só consegui o visto porque gritei, exatamente como a minha mãe tinha dito para fazer. Eu deveria ter dado uma festa para comemorar, mas pedi para o táxi me deixar em frente ao hotel Hyatt para me encontrar com os Ramones. O motorista não parou por causa da multidão. Tive que abrir a porta e pular para fora do táxi. Paguei a corrida depois, quando voltei para Banfield. Barbara, que deveria estar lá, veio logo atrás de mim. Era demais. O hotel era protegido por um portão de segurança. Havia policiais em toda parte. Fãs por todos os lados. Os promotores estavam perto do hotel. Eles me viram e me olharam feio. Tentei atrair a atenção deles. “É o Dee Dee”, gritei. “Sou eu”. Todos os fãs dos Ramones começaram a concordar e a gritar: “É o Dee Dee. É a Dee Dee. Deixem ele entrar”. Mas ficaram me puxando para trás e exigindo autógrafos e fotos. Os policiais olharam para mim com o mais puro ódio. Todo mundo começou a me empurrar. Era como uma onda de gente na minha direção. Por coincidência, avistei Marky. Tentei chamar a atenção dele. “Marky, me ajuda”, gritei. Ele fingiu não me ver. Estava escondido atrás de uns óculos escuros estilo Elvis. Tinha criado uma carapaça de ódio em torno dele. Com uma peruca preta, jaqueta de motoqueiro preta e pele branca e pálida, era tão parecido com o Marky Ramone original que não podia ser de verdade. Ele estava do lado de fora do hotel, protegido dos fãs pelo portão de segurança. Os fãs dos Ramones piraram quando o viram. Fiquei ali sozinho. Era óbvio que Monte tinha combinado que os

caras dariam autógrafos no mesmo horário em que ele tinha me dito para aparecer no hotel. Eu precisava brigar com eles. Era horrível. De algum modo, Barbara e eu nos esprememos para passar pelos seguranças, a polícia e os fãs. Fiquei tentando escapar dos lápis afiados e canetas que os caçadores de autógrafos ficavam enfiando nos meus olhos e levei um chute na canela. Quando finalmente consegui chegar no lobby do hotel, eu estava puto. Marky foi a primeira pessoa que vi. “Eu odeio você”, gritei. “Você me viu e não me deixou entrar”. “Não é verdade. Eu não vi você, Dee Dee, coelhinho medroso. Me dá um beijo. Nós amamos você”. Que merda, pensei. Monte estava lá. Parecia realmente acabado. Era triste vê-lo daquele jeito. Marc estava tentando sorrir. Foi aquele sorriso ensaiado e com cara de sério de showbiz de Hollywood que me deixou ainda mais maluco quando olhei para a cara maluca dele. Comecei a perder o controle. Ele está tão louco quanto Monte, pensei. Vi Johnny Ramone e fiquei estarrecido. Isso é grave, pensei. Ele estava com uma aparência muito, muito ruim. Horrível mesmo. Muito acabado. Fiquei mal. Não era certo. Eu me preocupava com Johnny Ramone do mesmo modo como me preocupei com Brian James, alguns anos antes, quando ele fez sua última turnê com o Damned. Mas me recompus rapidamente e comecei a me sentir mais animado. Isso é ótimo, pensei, Barbara e eu acabamos jantando com eles na área do lounge do hotel. Alguns fãs privilegiados dos Ramones ficaram me importunando enquanto eu tentava comer e conversar com um esgotado Joey. “Dee Dee”, perguntou Marc, “o que você pediu?”.

“Aquilo de sempre, Marc”, respondi, “um sanduíche de carne e uma sopa de cebola. As coisas mais caras do cardápio, Marc. Eu só estou tentando aproveitar o máximo que puder”. “Eu sei o que você quer dizer, mano”, confidenciou carinhosamente. Percebi que, por baixo daquela tranquilidade, Marc estava secretamente planejando voltar um dia. Aquilo me deixou bem, “Como eu pude não gostar desse cara?”, pensei. Depois do jantar fui para a van para fazer a passagem de som com o promotor e o resto da banda, com exceção de Johnny Ramone, que estava deprimido demais para estar com Joey e Marc e por isso foi sozinho num carro com Eddie Vedder e os amigos dele. No estádio, onde os Ramones tocariam para 90 mil pessoas, estava tudo pronto. Assumiram suas posições e começaram a passar o som. O grupo pode ter impressionado as outras pessoas, mas não me impressionou. Eles foram bem, mas tinham perdido o frescor. Johnny Ramone parecia mais um tenista do que um guitarrista, sabe como é. Acabei não ficando para ver o show. Eu não tinha sido exatamente tratado como rei pelos Ramones, pelos fãs ou pela Rock and Pop. Tentei agir bem depois de uma situação muito ruim — permanecer fiel depois de todos os aborrecimentos que eu tinha passado. Fodam-se, pensei. No caminho de volta para o hotel, abri a porta da van e saí assim que paramos num sinal vermelho. Peguei um táxi e, antes que alguém entendesse o que tinha acontecido, eu já estava voltando para a casa da avó de Barbara em Banfield. As irmãs dela, Sofia e Rocio, estavam brigando tão seriamente sobre quem ia ficar com os quatro ingressos que eu tinha dado a elas que, para acalmá-las, acababei dando os outros dois ingressos que tinha recebido da Rock and Pop. Não fui ao show. Em vez disso fiquei ouvindo pelo rádio, batendo nervosamente os dedos numa mesa coberta com um linóleo vermelho.

Achei que não tinha desculpa para o modo como me trataram. Era muita falta de consideração me pedir para ir ao show e tocar uma música com eles, marcar uma hora para me encontrar e depois não se responsabilizar pelo que aconteceu fora do hotel quando apareci. Todos aqueles incidentes do tipo “aperto de mão mole” tinham me deixado muito amargurado com os fãs e com os Ramones. A banda estava com tantos problemas — por causa de um possível documentário sobre os Ramones que estava para ser filmado na última apresentação — que larguei os caras; dei meu número de telefone e disse que estava disponível. Eu sabia, por algum motivo, que não iam me ligar. Uma história dos Ramones não pode ter final feliz. Simplesmente me alegro por ter acabado, embora tenha sido divertido, em parte. Todos nós saímos feridos de nossas relações uns com os outros. Nós nos machucamos. Meu livro conta essa história — é uma grande história. Fico feliz por ter contado.

EPÍLOGO Dee Dee Ramone subiu ao palco com os Ramones pela última vez em 6 de agosto de 1996. Era natural que ele estivesse lá, na última apresentação da banda de que tinha sido co-fundador, em 1974. Foi naquele show em Los Angeles. Dee Dee estava iluminado. Pode não ter sido um final perfeito, mas o ciclo se fechou. Dee Dee continuou a escrever, se apresentar e gravar até o dia de sua morte por overdose, em 6 de junho de 2002. Depois de tantas batalhas, seus demônios finalmente o venceram: foi muito triste, mas, de certa maneira, inevitável em uma vida turbulenta e cheia de problemas, mas também muito inspirada e criativa. Tenho saudades dele. Dee Dee manteve seu humor meio perverso, apesar do poder de todos aqueles demônios. Quando os Ramones entraram para o Rock and Roll Hall of Fame em março de 2002, Dee Dee agredeceu a homenagem com as seguintes palavras: “Eu gostaria de me parabenizar, e agradecer à mim mesmo e dar uns tapinhas nas minhas próprias costas. Valeu, Dee Dee, você é demais”. Amém, Dee Dee, seu maluco engraçado e imprevisível. Joey Ramone perdeu sua longa batalha contra o linfoma em 15 de abril de 2001. Joey foi um grande amigo. Dee Dee e eu adorávamos a ajuda e a inspiração que ele nos oferecia durante a redação do livro. Obrigada, Joey. Você nunca será esquecido. Marky e CJ Ramone ainda se dedicam à carreira solo. Tommy também continua envolvido com música. Johnny Ramone se aposentou e vive em Los Angeles. Fiquei pensando se seria legal encerrar com uma citação de uma música dos Ramones; várias delas seriam apropriadas. Mas eu me despeço com as palavras de uma outra banda que abalou o mundo: “And in the end, the love you take is equal to the love you make”. Veronica Kofman

Abril de 2004

ANEXOS

Tocando baixo no aniversário de Joey Ramone, no Continental, Nova York, 19 de maio de 1997.

Dee Dee, Marky Ramone e CJ Ramone, os Remains. (Barbara Zampini)

Tocando no Camden Underworld, junho de 1994. (Miyuki Maloney, do fã-clube britânico dos Ramones)

Marky Ramone em casa, no Brooklin, julho de 1995. (Veronica Kofman)

Passagem de som do último show da história dos Ramones, Hollywood Palace, Los Angeles, 6 de agosto de 1996. (V. K.)

O pinhead. Astoria, Londres, 1995. (Alan Giff, do fã-clube britânico dos Ramones)

Dee Dee de chapéu e sorriso hollywoodiano. Los Angeles, 1997. (V. K.)

Joey Ramone (1951-2001). Transformado em Epub por: K3rdna