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Kafka Cap. 9 Flipbook PDF
Livro_Kafka_Cap_9_Diagnóstico_Do_Sistema_Tributário_Brasileiro
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DiAGnóstico do sistemA tributário brAsileiro: SiGiLo fiScAL, AuTiSmo Do moDeLo De ciViL LAW e PATrimoNALiSmo De eSTADo
“Na colônia penal” devia ser publicada com “O Veredicto” e “A Metamorfose” num único volume sobre o título Punições. O relato conta as experiências do “explorador” no segundo dia de visita a uma colônia penal situada nos trópicos. A peça está construída em torno do observador – um europeu cético do sistema penal imposto – com o oficial militar que administra desde a morte do velho comandante a máquina de tortura e extermínio. Mas ele está totalmente comprometido com a forma de justiça que o diabólico aparelho oferece. O narrador das passagens mais longas é o próprio oficial. Ao longo de suas reflexões, ele expõe uma dramática ruptura histórica na vida da colônia penal, narradas pelas atitudes antagônicas do “velho comandante”, para estabelecer o sistema e construir a máquina e do “novo comandante”, que é hostil ao velho sistema, que procura oportunidades para desmantelá‑lo. A fala do oficial é colorida pela nostalgia em nome dos “velhos tempos” do primeiro comandante, quando a máquina funcionava com perfeição e uma multidão de pessoas assistia às execuções. Sente animosidade em relação ao novo comandante que deixou a máquina decair e deslocou o centro do interesse público para os mecanismos burocráticos de governo. (...) Na sequência que é a (auto) execução do oficial pela máquina, Kafka chega ao auge da ironia: o oficial, que alimentava evidente inveja da “iluminação” das vítimas durante a punição exercida por doze horas pela máquina, não sente essa transformação. Em vez disso, é instantânea e brutalmente assassinado quando a máquina começa a desmontar. (“Na colônia penal”, de Franz Kafka, 1914, análise de Modesto Carone) 521
1. TRANSPARÊNCIA, PROCESSO O NEF surge em 2009 com o desafio de DE CONCRETIZAÇÃO DA NORMA investigar a relação entre tributação e desenTRIBUTÁRIA E SEGURANÇA JURÍDICA volvimento. Pretendíamos discutir o direito NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: tributário por meio de um enfoque que priSOBRE O PERCURSO TEÓRICO DAS vilegiasse investigações empíricas. Isto nos PESQUISAS DO NEF/DIREITOGV permitiria realizar um trabalho complementar à perspectiva formalista, que tradicionalmente permeou, no Brasil, a abordagem deste ramo do direito. Como demonstrado nos capítulos anteriores, em nosso percurso de investigação, deparamos com diversos obstáculos à realização desta tarefa; o maior deles, certamente, a dificuldade de acesso à informação detida pelo Ministério da Fazenda (MF), mormente pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB). Existiram empecilhos ao acesso de documentos integrantes do Processo Administrativo Fiscal (PAF), tais como: intimações, notificações, autos de infração, impugnações, decisões das Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJ), recursos voluntário e de ofício e acórdãos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). No decorrer de nossos trabalhos, tornou-se evidente para o grupo que o acesso às informações que procurávamos não era só fundamental para nossas pesquisas; era sim crucial para a segurança jurídica. A luta por transparência carrega o potencial de abrir caminhos para superar problemas práticos do direito tributário brasileiro como a alta contingência dos critérios interpretativos das normas e o excesso de contencioso. Decidimos, então, transformar obstáculos em objeto de investigação: a transparência do processo de concretização normativa, especialmente na esfera administrativa, tornou-se o principal tema das pesquisas do NEF. Depois de quatro anos de trabalho, podemos dizer que o NEF tem trilhado um caminho inovador e, portanto, repleto de desafios. Estamos cientes dos principais pontos em que avançamos: temos, hoje, um tema claro e profundamente relevante de investigação, desenvolvemos uma abordagem específica de pesquisa (focada em problemas concretos e pautada na interdisciplinaridade), encontramos estratégias eficientes para manter um diálogo constante com os principais atores do debate brasileiro sobre tributação e, assim, temos elaborado táticas de intervenção institucional que possuem um forte potencial de impacto. Neste capítulo buscaremos mostrar a importância da realização de pesquisas empíricas e interdisciplinares de maneira a pensar a tributação
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de modo alinhando com perspectivas do “Direito e Desenvolvimento”. Para tanto esclareceremos como ideias advindas da economia (principalmente de James Alm e Joseph Stiglitz) e da teoria social (Manuel Castells e John Brathwaite) permitiram ao NEF repensar problemas tributários por meio de um debate sobre novas possibilidades de relacionamento entre Estado e sociedade civil. Procuraremos, assim, justificar a tese central que atualmente defendemos: na sociedade da informação, dar transparência ao processo da concretização da norma tributária é a melhor estratégia para garantir segurança jurídica. Mostraremos, finalmente, a forma pela qual o NEF tem utilizado instrumentos como a nova Lei de Acesso à Informação (LAI) e o Índice de Transparência do Contencioso Administrativo Tributário (ICAT) para intervir no debate público em defesa da transparência na tributação.
2. TRIBUTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO: SOBRE A IMPORTÂNCIA DA REALIZAÇÃO DE PESQUISAS EMPÍRICAS RELATIVAS À TRIBUTAÇÃO
Há, decerto, vantagens e desvantagens na estratégia epistemológica utilizada pelo positivismo jurídico de orientação formalista. Os formalistas ganham em precisão, são capazes de analisar com exatidão a relações entre normas jurídicas (validade). Deixam, contudo, de dar atenção suficiente à eficácia social destas normas. Assim, tal como escreve Trubek, esbarram em dificuldades como a ausência de uma visão global sobre problemas tributários, capaz de conectar, por exemplo, a concretização de normas jurídicas e a realização de objetivos gerais estabelecidos para políticas públicas. O NEF surge justamente com o escopo de realizar pesquisas complementares àquelas realizadas pela dogmática jurídica: o desafio é utilizar a pesquisa empírica para pensar os efeitos sociais das normas tributárias e sua relação com o desenvolvimento do país. Trata-se, especialmente, de olhar para a forma pela qual instituições jurídicas e sociais se relacionam. Estas são, na verdade, ideias que impulsionam as investigações da DireitoGV e de diversos centros de pesquisa no mundo orientados pelo tema “Direito e Desenvolvimento”. É, no tempo atual, claro para a equipe que, para que haja segurança jurídica, não basta conhecermos o que diz a lei abstrata, temos o direito de conhecer (“Right to Know” é a expressão utilizada por Joseph Stiglitz) o conteúdo de decisões concretas.
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David Trubek, no prefácio ao livro Reforma tributária viável: simplificação, transparência e eficiência, escreve: Este tipo de pesquisa deve ser interdisciplinar, orientada para a ação e pragmática. Deve ser enraizada num profundo entendimento da realidade brasileira, mas também consciente de processos que ocorrem fora do Brasil; deve ser sincronizada com as necessidades da nação e às políticas para as quais se dirige; deve visualizar reformas, mas fugir de utopias.
Tal como anuncia Trubek, a tarefa que se impõe para o NEF, e para centros de pesquisas interessados em pensar problemas a partir da perspectiva do “Direito e Desenvolvimento”, exige um esforço de diálogo interdisciplinar. Empreendimento que, na prática, mostrou-se um grande desafio. É, hoje, no entanto, evidente para o grupo que se trata de um desafio que vale a pena ser enfrentando. Por conta do empenho de realização de um diálogo interdisciplinar, o NEF é, atualmente, o único núcleo de pesquisa em direito tributário do país capaz de olhar para questões referentes à tributação tendo em conta accountability, governança, transparência, responsabilidade social e outros temas que estão na pauta do debate sobre regulação na sociedade em rede. Nos itens seguintes buscaremos expor como conseguimos alcançar esta posição. Tendo em conta a relevância do papel dos 3. PONTO DE VISTA DA ECONOMIA: JAMES ALM E JOSEPH STIGLITZ economistas para a tributação, começamos por uma tentativa de diálogo com esta disciplina. Ainda em 2009, convidamos economistas da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV / EESP) e nos dedicamos a ler trabalhos recentes dos principais autores da área que cuidam do tema da tributação. Nem sempre, contudo, os economistas que estudávamos levavam o papel do direito e de instituições sociais tão a sério como gostaríamos. Conseguimos, finalmente, realizar uma aproximação fecunda com a disciplina ao entrarmos em contato com trabalhos de James Alm (Georgia State University). Alm insiste na importância de superar o “paradigma do crime” que, desde a década de 1960, pauta a maioria das pesquisas em economia. Trata-se de ir além da ideia de que o comportamento do indivíduo funda-se em uma escolha racional que visa sempre à maximização da utilidade e de que, por extensão, para aumentar a arrecadação, o fisco deve utilizar quase que exclusivamente mecanismos de detecção e punição
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(auditorias e multas). O autor demonstra, por meio de pesquisas empíricas realizadas na América Latina, que, mesmo nos países que possuem baixo índice de cumprimento de obrigações tributárias (compliance), a evasão nunca cresce até os níveis previstos por uma análise que tem em conta apenas elementos de ordem financeira. Há, portanto, outros fatores que devem ser considerados se quisermos compreender os motivos pelos quais contribuintes cumprem normas tributárias (também por isso, a associação entre economia com outras disciplinas, como teoria social e ciência política, é fundamental). Alm, ao lado de Richard Bird (University of Toronto), mostra que as Administrações Fiscais que têm atingido os melhores resultados são aquelas que levam tal diversidade de fatores em conta e aprenderam não só realizar auditorias e aplicar multas de modo eficiente, mas também a utilizar instrumentos capazes de impulsionar a construção de um relacionamento de confiança com contribuintes e, sobretudo, alinhar normas tributárias e normas sociais. A experiência australiana é um exemplo disso. No início da década de 2000, um grupo de trabalho do fisco australiano elaborou uma pesquisa a qual mostrava que, muito frequentemente, pequenas empresas realizavam transações em “dinheiro vivo” (cash economy) para evitar o pagamento de tributos. A pesquisa esclarecia, ainda, que a comunidade estava de acordo com esse tipo de prática, pois os cidadãos sabiam que se estas empresas pagassem todos os tributos estabelecidos por lei não conseguiriam sobreviver (isto é, a norma social dizia ser aceitável, nestas circunstâncias, não pagar tributos). A Administração Fiscal australiana lidou com a questão de modo absolutamente inovador: em vez de impor a todo custo o cumprimento de leis prejudiciais à economia do país, posicionou-se ao lado da comunidade e, junto com ela, elaborou uma proposta de alteração normativa que pretendia diminuir a carga tributária de pequenas empresas. A proposta foi, posteriormente, aprovada pelo Legislativo. Os resultados foram surpreendentes: após a redução da tributação sobre as pequenas empresas, houve um aumento da arrecadação no setor. Mais recentemente, em 2013, ideias de Joseph Stiglitz (prêmio Nobel em economia) sobre economia da informação nos permitiram elaborar argumentos robustos a favor da transparência no PAF. Em diversas reuniões com advogados, empresários e servidores fiscais, ouvimos recorrentemente que autos de infração deveriam continuar sigi-
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losos, pois a publicidade destes documentos poderia provocar um pânico desnecessário no mercado, já que o cancelamento ou a redução drástica do valor do auto de infração são os resultados mais comuns do PAF. Stiglitz mostra a importância de compreender que estamos, na verdade, diante de um problema de fluxo de informação – e não de “sensibilidade” de mercado. O esforço da Administração Pública em manter o segredo em grande parte do contencioso administrativo fiscal acaba por gerar, em algumas ocasiões, o vazamento de informações escassas (por isso, valiosas) e, outras vezes, a exposição momentânea de grande quantidade de dados. É este fluxo instável que causa pânico e rupturas drásticas. Procedimentos democráticos geram, em vez disso, um fluxo contínuo de informações (que, por serem públicas, perdem o “valor de troca”), o qual permite a compreensão contextual dos dados por parte dos cidadãos. Com base nesta tese de Stiglitz, o NEF foi capaz de realizar uma defesa forte da ideia de que se cidadãos tiverem sempre acesso a autos de infração (ou, ao menos, à parte não sigilosa de seu conteúdo) compreenderão, paulatinamente, que o valor do auto frequentemente não corresponde ao montante a ser efetivamente pago e, também, poderão exigir mais zelo em sua elaboração (principalmente, coerência na motivação). No final de 2010, após diversos debates sobre 4. PONTO DE VISTA DA TEORIA SOCIAL: MANUEL CASTELLS E JOHN as ideias de James Alm acerca da modificação do BRAITHWAITE relacionamento entre fisco e contribuinte e, por extensão, sobre as novas formas de relação entre sociedade civil e Estado, ficou clara a importância de nos aprofundarmos em investigações sobre a teoria social. Primeiramente, as ideias de John Braithwaite (Australian National University) e, em seguida, de Manuel Castells (University of California) foram de grande relevância para que pudéssemos pensar como táticas de regulação em rede podem ser capazes de fornecer respostas inovadoras a problemas do direito tributário. Castells explica que redes sociais existem desde os primeiros agrupamentos humanos. Sua formação está ligada ao desenvolvimento orgânico da ação social; são, por isso, flexíveis e adaptáveis. No entanto, com o processo de modernização, as redes foram se tornando incapazes de administrar problemas cada vez mais complexos. Grande parte delas foi, então, formalizada; transformaram-se em organizações de estrutura centralizada, hierarquia
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vertical e enrijecida, como Estados, exércitos e Igrejas. As transformações sociais recentes conformaram, no entanto, um novo cenário. A tecnologia da informação e a internet possibilitaram a ampliação da capacidade das redes em organizar a ação social, a ação comunitária e também a ação que leva a uma mudança de percepção e valores sobre o poder. Interessa-nos especialmente atentar para o fato de que Castells insiste que, por meio de novos sistemas de mobilização, ligas da sociedade civil, que são mais orgânicas e flexíveis, podem se infiltrar e modificar a rigidez da organização do Estado. John Braithwaite tem se tornado um autor de importância cada vez maior para o grupo. Em primeiro lugar, por trazer teses de Castells para o campo do direito tributário e, também, pelo inequívoco potencial de sua teoria lidar com problemas concretos: teses de Braithwaite orientaram as reformas realizadas na Administração Fiscal australiana na década de 2000, as quais se tornaram referência mundial, seguidas por Reino Unido, Nova Zelândia, Pennsylvania (EUA) e Indonésia. Braithwaite pretende construir uma teoria da democracia conectada às noções de “governança em rede” e “regulação responsiva” (responsive regulation) de modo a fornecer uma resposta republicana a dilemas do tempo presente. Em oposição a concepções de democracia em que os vigilantes dos vigilantes, em última análise, são sempre parte do Estado, as ideias de Braithwaite sobre governança em rede abrem a possibilidade de discutir formas de responsabilização deliberativa e circular em que atuam atores estatais e não estatais. A ideia é permitir que todos sejam capazes de responsabilizar a todos e cada organização possa ser responsabilizada por indivíduos que dela participam. Responsividade (responsiveness) significa sensibilidade à integridade de práticas e autonomia de grupos. Trata-se de pensar como o direito pode responder (responder não significa submeter-se) a modos de regulação os quais emergem nas relações sociais (por exemplo, no mercado de capitais, a autorregulação tem ganhado, atualmente, cada vez mais importância). Importa lembrar o trilema regulatório de Teubner: normas jurídicas que ofendem uma cultura de negócios correm o risco de se tornarem irrelevantes; normas jurídicas que destroem regras que emergem naturalmente no mundo dos negócios podem suprimir as virtudes destas regras; normas
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jurídicas que deixam as regras dos negócios tomarem conta de seu espaço podem destruir suas próprias virtudes. Assim, o NEF tem se empenhado em mostrar a viabilidade de políticas tributárias que, em vez de pôr acento em punições impostas pelo Estado (é preciso deixar claro que a proposta não é extinguir punições, mas sim situá-las como um último recurso a ser utilizado), estão focadas na transparência e na responsabilização ininterrupta diante de diversos atores sociais: é mais barato e mais eficiente garantir que uma empresa (pública ou privada) siga regras de transparência e de responsabilização perante os sócios — que incluem a realização constante de auditorias e a existência de mecanismos internos de incentivo a denúncias — do que regulá-la apenas por meio de altíssimas multas e longos e dispendiosos processos administrativos e judiciais. Observe-se: no primeiro caso, a empresa é regulada, a todo tempo, por diversos atores estatais e não estatais (Ministério Público, sócios, funcionários, empresas concorrentes, ONGs, universidades etc.) e, no segundo caso, quase que exclusivamente pelo Estado. Parece-nos que este é o caminho mais eficiente para prevenir o excesso de contencioso fiscal. Expostas as principais ideias advindas da economia e da teoria social que foram apropriadas pelo NEF, é preciso ainda explicar com mais detalhes como a abordagem de pesquisa proposta pelo grupo pode fornecer respostas interessantes para problemas atuais da tributação.
5. A TRANSPARÊNCIA NO PROCESSO DA CONCRETIZAÇÃO DA NORMA TRIBUTÁRIA É A MELHOR ESTRATÉGIA PARA GERAR SEGURANÇA JURÍDICA NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: COMO RESPONDER, NO TEMPO ATUAL, AO DILEMA DEIXADO POR KELSEN?
O direcionamento atual das pesquisas do NEF pode ser compreendido como uma possível resposta – que pretende ser adequada ao tempo presente – ao desafio provocado pelo último capítulo da Teoria pura do direito de Hans Kelsen. O pensador austríaco, na década de 1930, escreveu que, em razão da vagueza e ambiguidade da linguagem, existem múltiplas possibilidades de interpretação de normas jurídicas e, por isso, o direito a aplicar aparece para o órgão decisório (administrador público ou juiz, por exemplo) como uma moldura dentro da qual existem várias alternativas de interpretação. Quaisquer possibilidades situadas no interior da moldura são, de acordo com Kelsen, coerentes com a norma superior.
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Kelsen deixa claro, assim, que há uma diferença (ou um “gap”) entre o sentido da norma abstrata e da norma concreta e que esta diferença não pode ser superada por meio do uso de instrumentos da lógica: a simples análise de normas abstratas (como uma lei ordinária) não garante que, por meio de um processo dedutivo, possamos afirmar, com precisão semântica, o sentido da norma concreta (como um ato administrativo ou uma sentença judicial). Alguns juristas creem ser possível superar a diferença (gap) entre a norma abstrata e a norma concreta – e, dessa maneira, controlar a discricionariedade das decisões – por meio da elaboração de regras com textos extremamente precisos. José Rodrigo Rodriguez afirma que estes juristas operam a partir de um pressuposto “textualista”. No entanto, tomando como exemplo casos de planejamento tributário, John Braithwaite mostra que, principalmente em casos complexos e que envolvem alto valor financeiro, o esforço do Estado em elaborar regras precisas acaba por gerar ainda mais insegurança: o excesso de regras aumenta a complexidade do sistema tributário e a contingência das decisões do fisco. Braithwaite fala em rule seeking (a expressão utilizada por Rodriguez é “gincana de regras” ); isto é, o Estado cria mais regras com a intenção de diminuir a contingência das decisões, contudo, paradoxalmente, acaba por produzir uma situação em que a contingência é ainda maior: diante de inúmeras regras detalhadas, muitas vezes contraditórias, administradores públicos (como agentes fiscais) e juízes podem simplesmente escolher qualquer uma delas para justificar uma decisão previamente tomada (nos casos de planejamento tributário, no Brasil, as pesquisas do NEF explicitam que há pressão para que agentes fiscais escolham regras que lhes permitam decidir em favor do fisco). Kelsen escreveu sua teoria do direito, centrada na ideia de sanção imposta pelo Estado, e desenvolveu suas teses sobre a multiplicidade de alternativas para a determinação do sentido da norma na década de 1930, em um contexto em que o grau de complexidade social não era tão alto e antes que pudéssemos imaginar a revolução tecnológica que vivenciamos atualmente. Aprendemos com Castells e Braithwaite que, nos dias de hoje, não é razoável crer que o controle do processo de concretização da norma, que acontece de modo cada vez mais célere e difuso, seja capaz de ser eficientemente realizado por apenas um centro de poder (perceba-se: ao negligenciar a importância de conhecermos a norma concreta, abordagens
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formalistas do direito tributário brasileiro acabam por privilegiar a atuação do Legislativo, este seria o centro principal do qual o direito emana). O desafio atual é, portanto, tendo em conta os limites da lógica jurídica (já expostos por Kelsen) e para além do paradigma textualista, pensar como é possível chegar a padrões interpretativos da norma tributária razoavelmente estáveis. Para tanto é preciso levar a sério a dimensão pragmática do discurso jurídico (insuficientemente explorada por perspectivas formalistas); isto é, o papel dos diversos atores sociais e da argumentação. Braithwaite explica que pensar a ligação 6. A IMPORTÂNCIA DA entre Poderes Executivo, Legislativo e JudiTRANSPARÊNCIA PARA A ciário com outros atores sociais significa comCONFORMAÇÃO DE PADRÕES preender que regras emergem de círculos de INTERPRETATIVOS ESTÁVEIS SOBRE deliberação e – ainda mais importante – que a A INTERPRETAÇÃO DE REGRAS interpretação das regras também surge destes círculos. O ponto de vista de juízes e administradores públicos é especialmente relevante para a interpretação das normas; contudo – Braithwaite insiste –, estes não são os únicos atores que importam. A estabilidade do sentido das regras não depende exclusivamente de sua precisão semântica (como querem os “textualistas”); mas, principalmente, de um debate público (isto é, de questões referentes a uma pragmática do discurso). Tornar transparentes as múltiplas alternativas para a interpretação de normas tributárias, principalmente, a maneira pela qual atores estatais as compreendem (o diagnóstico elaborado pelo NEF mostra que nem sempre o fisco deixa claro quais os critérios de interpretação que utiliza), é, portanto, a melhor estratégia para chegar a acordos razoavelmente uniformes sobre o sentido das normas tributárias. Braithwaite, a partir da investigação de soluções encontradas em diversos países para lidar com planejamento tributário, afirma que, nestes casos – em vez de buscar incessantemente elaborar regras cada vez mais detalhadas –, é mais eficiente combinar princípios gerais, regras específicas e procedimentos dialógicos. A aposta é na transparência e na construção de caminhos institucionais aptos a gerar uma troca eficiente de informações entre atores estatais e não estatais. O caso holandês ilustra esta ideia. Desde o início da década de 2000, a Administração Fiscal holandesa utiliza mecanismos de vigilância horizontal (em que os atores atuam lado a lado) como complemento a formas tradicionais de vigilância vertical (em que o fisco impõe, de cima para baixo, aos contribuintes o cumprimento de regras). Trata-se de uma abordagem baseada na transparência e na confiança, mas que não exclui o enfoque
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repressivo nos casos em que a confiança é infundada. O objetivo da colaboração é estimular a ação preventiva, capaz de solucionar problemas por meio de um diálogo informado e evitar o excesso de contencioso. Um dos instrumentos de vigilância horizontal utilizado pelo fisco holandês para lidar com a tributação de grandes empresas são “acordos sobre cumprimento” de normas tributárias (compliance agreements). A partir de uma análise do perfil e grau de risco dos contribuintes (que busca ser, o mais possível, objetiva), o fisco identifica empresas confiáveis e, com base em discussões com especialistas e dirigentes da empresa (as quais permitem que as decisões sejam “responsivas”, isto é, tenham em conta as peculiaridades da situação do contribuinte), firma convênios sobre o cumprimento de normas: de um lado, a empresa informa as operações a serem realizadas que envolvem riscos fiscais e fornece sua opinião sobre as consequências jurídicas do negócio e, do outro, o fisco esclarece sua interpretação sobre as repercussões tributárias dos fatos apresentados. Os atores envolvidos consideram que a iniciativa teve ótimos resultados e que vem sendo capaz de reduzir custos tanto para o fisco como para contribuintes. Ainda, as avaliações realizadas deixam claro que os bons resultados somente foram alcançados porque o fisco manteve uma postura consistente — mostrou-se merecedor de confiança — e criou instrumentos aptos a assegurar que a transparência e o engajamento no diálogo gerassem vantagens também para os contribuintes: na Holanda, contribuintes confiáveis são recompensados com menos burocracia (menos obrigações acessórias) e certeza sobre a interpretação do fisco. 7. REGULAÇÃO RESPONSIVA NO CASO AUSTRALIANO
Braithwaite escreve sobre formas responsivas de regulação. Responsividade (responsiveness) significa respeito pela integridade de práticas e autonomia de grupos; isto é, sensibilidade para a textura complexa da vida social. O desafio é encontrar respostas regulatórias capazes de fortalecer instituições e, ao mesmo tempo, levar a sério novos atores, novas demandas e expectativas. De acordo com Braithwaite, entes estatais deveriam ser mais sensíveis (ou “responsivos”) à forma que cidadãos e organizações se autorregulam antes de intervir de modo mais severo. O potencial transformador da educação fiscal e a sua conexão com a política reside no empoderamento (empowerment) de diferentes atores que historicamente foram enfraquecidos (tanto por um estatismo como por um privatismo exagerado) e que devem ter direito de conhecer e discutir as normas, tais como são concretizadas pela Administração Fiscal. Transparência na aplicação das leis e clareza acerca do posicionamento de
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instituições (como a Receita Federal do Brasil, Secretarias da Fazenda e Receitas Estaduais) é a chave para uma participação efetiva da sociedade civil em questões referentes à tributação. Como dito, não estamos diante de uma ideia de diálogo que jamais se realizará na prática. Os australianos mostram que a proposta de Braithwaite pode sim ser concretizada. Nesse sentido, o fisco australiano utiliza a figura da pirâmide regulatória de modo a estabelecer uma nova forma de se relacionar com contribuintes.
A pirâmide mostra que o diálogo e a persuasão devem ser tentados inicialmente. Em seguida, e somente se o diálogo falhar, deve-se escalar para abordagens de certa forma punitivas e apenas no topo da pirâmide utilizam-se estratégias estritamente punitivas. Trata-se de estimular a atuação voluntária do agente regulado, sobretudo, incentivando a formação de canais para que atores possam solucionar problemas pelo diálogo, sem que necessitem procurar o caminho do contencioso. Os australianos insistem, assim, na importância de abordagens que auxiliam a aprendizagem e a inovação institucional, sobretudo, pela via da autorregulação.
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Escreve Braithwaite: A regulação responsiva tem sido uma ideia de política influente porque formulou uma maneira de reconciliar a clara evidência empírica de que algumas vezes a punição funciona e às vezes sai pela culatra – e é da mesma maneira com a persuasão. A presunção piramidal da persuasão dá à opção mais barata e mais respeitosa uma chance de funcionar antes. Tentativas punitivas mais custosas de controle são então reservadas para a minoria dos casos quando a persuasão falha.1
Na Austrália a atuação do Board of Taxation mostra como novas ferramentas da sociedade da informação podem ser estratégicas para efetivação deste novo paradigma. O órgão foi criado de pelo Governo Australiano na década de 2000 para auxiliar o Austalian Austalian Taxation Office (ATO) – órgão análogo à Receita Federal no Brasil – e o Tesouro a pôr em prática o modelo dialógico formulado por Braithwaite. O Board of Taxation é composto de pessoas que atuam em setores governamentais e não governamentais e tem a função de garantir que os processos de tomada de decisão e de implementação de políticas tributárias sejam mais participativos e sensíveis às peculiaridades dos contribuintes afetados. O Tesouro e/ou Ministério solicita que o Board of Taxation elabore diagnósticos, sugestões para alteração de regras, avaliação da efetividade de normas ou de acordos internacionais. Este trabalho deve ser feito de modo participativo, por isso, grande parte das tarefas do órgão consiste em assegurar que representantes da sociedade, sobretudo dos setores sociais mais afetados pelas normas tributárias avaliadas, participem ativamente do processo. Para compreender o funcionamento do Board of Taxation é útil examinar sua atuação em um caso específico. Em junho de 2009, o Tesouro Australiano solicitou que o Board of Taxation verificasse a efetividade de novas normas que estabeleciam que empresas que participavam de um único grupo econômico deveriam ser tratadas como uma única entidade para efeitos de tributação (Single Entity Rule). O objetivo da revisão era responder às seguintes perguntas: (i.) A legislação realizou o que se pretendia em termos de política governamental, tendo em conta a administração de custos mensuráveis? (ii.) A legislação está expressa de modo claro, simples e compreensível? 1. BRAITHWAITE, John. The essence of responsive regulation. Fasken Lecture. UBC Law Review, 44(3), 2011, p. 484.
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(iii.) O texto da lei exclui consequências não intencionais de natureza substantiva? (iv.) A legislação leva em conta as circunstâncias reais dos contribuintes e práticas comerciais? (v.) A legislação é consistente com outras normas tributárias? (vi.) A legislação fornece certeza às relações?
Com este escopo, o Board of Taxation, inicialmente, anunciou em seu site a tarefa a ser realizada e solicitou a participação de todos os stakholders. Foi aberto um canal de comunicação via internet (sugestões e críticas poderiam ser a todo tempo enviadas) e, em seguida, foram realizadas reuniões de consulta com representante de setores da sociedade mais afetados (setores-alvo) que auxiliaram na elaboração de Discussion Paper2 sobre o tema. O Discussion Paper mostra os resultados da avaliação realizada. Em cada item, expõe conclusões a respeito de pontos determinados, em seguida, perguntas bastante específicas (que mantêm a discussão focada em temas determinados e evitam que o debate ganhe contornos excessivamente genéricos) que o Board of Taxation solicita que os stakeholders comentem.3 Em 2. Australian Government –Board of Taxation. Post-implementation review into certain aspects of the consolidation regime – Discussion Paper. Disponível em: