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Kafka Cap 1 Flipbook PDF
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Estudo de Caso: ICMS: o “Imposto Criativo sobre Mercadorias e Serviços” e a novidade das autuações sobre publicidade na Internet Era um abutre que bicava meus pés. Ele já havia estraçalhado botas e meias e agora bicava os pés propriamente. Toda vez que atacava, voava várias vezes ao meu redor, inquieto, e depois prosseguia o trabalho. Passou por ali um senhor, olhou um pouquinho e perguntou então porque eu tolerava o abutre. – Estou indefeso – eu disse. – Ele chegou e começou a bicar, naturalmente eu quis enxotá-lo, tentei até enforcá-lo, mas um animal desses tem muita força, ele também queria saltar no meu rosto, aí eu preferi sacrificar‑lhe os pés. Agora eles estão quase despedaçados. (...) – Imagine, deixar-se torturar dessa maneira! – Disse o senhor. – Um tiro e o abutre está liquidado. – É mesmo? – perguntei. – E o senhor pode cuidar disso? – Com prazer – Disse ele, – Só preciso ir para casa pegar minha espingarda. O senhor pode esperar mais uma meia hora? – Isso eu não sei – Disse e fiquei em pé um momento, paralisado de dor. Depois falei: – De qualquer modo tente, por favor. – Muito bem – Disse o senhor. – Vou me apressar. Durante a conversa o abutre escutou calmamente, deixando o olhar perambular entre mim e aquele senhor. Agora eu via que ele tinha entendido tudo: levantou voo, fez a curva da volta bem longe para ganhar ímpeto suficiente e depois, como um lançador de dardos, arremessou até o fundo de mim o bico pela boca. Ao cair para trás senti, liberto, como ele se afogava sem salvação no meu sangue, que enchia todas as profundezas e inundava todas as margens. (“O abutre” de Franz Kafka, 1920)
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Crônica de uma morte anunciada ao 1. “O ABUTRE”: A INSEGURANÇA sigilo fiscal no Brasil.1 O Senhor “K”, servidor JURÍDICA ABALANDO AS BASES público e auditor fiscal de carreira exemplar, DO AMBIENTE DE NEGÓCIOS E O “SIGILO FISCAL” CALANDO A VOZ DA sempre entendeu que a operação “X” não era LEGALIDADE CONCRETA, FUNCIONANDO passível de tributação pelo ICMS. A empresa COMO OBSTÁCULO À PESQUISA “S” que realizou nos últimos cinco anos a EMPÍRICA E AO EXERCÍCIO DO operação “X”, apoiada por consultores sérios CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO e bem-intencionados, também sempre enTRIBUTÁRIA NO BRASIL tendeu que a operação “X” não era tributada pelo ICMS. Contudo, em face do pressuposto “sigilo fiscal”, a empresa “S” não detinha acesso à informação sobre os critérios normativos do auditor “K” na aplicação do direito para as operações “X”, realizadas por outras empresas do mesmo ramo.2 Após mudança de governo, foi nomeado novo Secretário de Fazenda, cargo de confiança do novo Governador comprometido em aumentar a arrecadação para o Estado. Tal Secretário de Fazenda dá-se conta de que, mediante pequena alteração do tradicional entendimento sobre a mesma legislação tributária, pode passar a tributar as operações “X”, obtendo com essa mudança interpretativa o incremento de 1.000.000 de reais suficientes para a construção de 1.000 casas populares, atendendo às promessas eleitorais do Governador em reduzir o déficit habitacional no Estado. Atendendo ao pedido do Sr. Secretário que também o nomeou, o Sr. Delegado regional emite mandado de procedimento fiscal para que o agente “K” audite a empresa “S” sob suspeita de que não tem pago ICMS nas operações “X”, em conformidade com a nova interpretação jurídica proposta pelo Sr. Secretário. 1. Crônica de uma morte anunciada (título original em espanhol: Crónica de una muerte anunciada) é um livro de Gabriel García Márquez publicado em 1981: a obra conta, na forma de uma reconstrução jornalística, a história do assassinato de Santiago Nasar pelos dois irmãos Vicario. 2. Este item tem como base original o artigo de Eurico Marcos Diniz de Santi, Mariana Pimentel Fischer Pacheco, Guilherme Villela de Viana Bandeira e Isaias Coelho, Lei da Transparência (LC 131/2009), Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) e a Constituição Federal de 1988: Proposta, formação e fundamentação jurídica do Índice de Transparência e Cidadania Fiscal (ITCF), Editora Fiscosoft, 2012. Disponível em: . Acesso em: 14.03.2014.
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O auditor fiscal “K” tem convicção pessoal e profissional de que as operações “X” não são tributáveis pelo ICMS, contudo reconhece que a tese divergente é também plausível e que numa interpretação sistemática da legislação tributária, as operações “X” poderiam sim ser tributadas pelo ICMS. Eis o paradoxo do Sr. Auditor “K”: seguir suas convicções pessoais e sua coerência histórica ou atender a nova interpretação plausível sobre a mesma legislação. O Auditor “K” consultando a lei abstrata (Constituição, LC/1987 e RICMS) percebe que pode fundamentar tanto a tributação como a não tributação da operação “X”. Além disso, consulta os melhores livros e manuais sobre o tema, mas dada a concretude e especificidade da operação “X” não encontra nenhuma solução satisfatória. Que interpretação seguir? Eis o que denominamos na introdução desse texto de “mal-estar” do auditor fiscal: seguir sua coerência interna, firmada em anos de experiência ou aderir a nova tese proposta pela autoridade superior (também, bem-intencionada e alinhada com o propósito maior e de “interesse público” de conciliar a interpretação do direito à construção de 1.000 moradias populares). Eis o dilema do agente fiscal: (i) se não lavrar o auto de infração para os últimos cinco anos, ocorrerá a decadência e poderá ficar sujeito a responsabilidade funcional por omissão de receita; (ii) se lavrar o auto de infração, estará indo contra sua histórica coerência interna sobre a não tributação das operações “X”, alterando a legalidade prática e, de alguma forma, frustrando a expectativa normativa da empresa “S” de não ser tributada nas operações “X”. É para atender a esse jogo de interesses que se presta, funcionalmente, o vago e ambíguo conceito de “sigilo fiscal”. Mas a quem de fato serve o “sigilo fiscal”? Trata-se de conceito funcional: (i) o “sigilo fiscal” se presta a ocultar que o entendimento histórico da fiscalização foi no sentido de não tributar a operação “X”; (ii) o sigilo fiscal protege o agente fiscal “K” do constrangimento e da pressão social de justificar seu novo entendimento sem qualquer alteração institucional da legislação tributária; (iii) o sigilo fiscal das autuações dá mais importância, destaque e esperança à atuação dos tribunais administrativos paritários de 2.ª Instância delegatários da solução do caso; (iv) o sigilo fiscal possibilita que o Sr. Secretário de Fazenda atenda às demandas do Governador; (v) o sigilo fiscal cria a possibilidade de nova fonte de receita tributária, sem a necessária submissão à nova lei autorizativa a ser criada pela Assembleia Legislativa; (vi) o sigilo fiscal permite, potencialmente, ao Sr. Governador construir 1.000 casas populares e garantir sua reeleição sem discutir fonte de custeio nem sistema tributário; (vii) o sigilo fiscal atende à empresa “S”, que não sofre a publicidade negativa decorrente de uma autuação que entende injusta e que espera que seja julgada improcedente nos tribunais paritários de 2.ª
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Instância; (viii) o sigilo fiscal atende aos gestores da empresa que não se veem responsabilizados nesse momento pelas decisões decorrentes dessa autuação, postergando os efeitos para seus sucessores; (ix) o sigilo fiscal atende aos sócios e acionistas que se beneficiam da não transparência pública da autuação evitando o imediato impacto sobre a desvalorização social da empresa “S” ou do preço de suas ações em bolsa; enfim, (x) o sigilo fiscal exclui outros atores sociais (empresas congêneres, ONGs, Academia e outros Estados) da discussão sobre a mudança de critério na tributação das operações “X” e seus decorrentes efeitos na cadeia produtiva e na carga tributária do “contribuinte de fato” que elegeu o Governador. Ocorre que nem o sigilo fiscal, nem o direito, nem o art. 198 do CTN3 podem servir como escudo da Administração Tributária para se esquivar ao controle social dos seus atos e comprometer a segurança jurídica instaurada historicamente pela legalidade prática sobre a tributação das operações “X”, com base no argumento pseudoaltruísta segundo o qual o “sigilo fiscal” existe para proteger a privacidade e a intimidade do contribuinte. Aliás, a expressão “sigilo fiscal” não existe no Código Tributário Nacional.
3. “Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. (Redação dada pela LCP n.104, de 10.01.2001) § 1.º Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes: (Redação dada pela LCP n.104, de 10.01.2001) I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça; (Incluído pela LCP n.104, de 10.01.2001) II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa. (Incluído pela LCP n.104, de 10.01.2001) § 2.º O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo. (Incluído pela LCP 104, de 10.01.2001) § 3.º Não é vedada a divulgação de informações relativas a: (Incluído pela LCP 104, de 10.01.2001) I – representações fiscais para fins penais; (Incluído pela LCP 104, de 10.01.2001) II – inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública; (Incluído pela LCP 104, de 10.01.2001) III – parcelamento ou moratória. (Incluído pela LCP 104, de 10.01.2001).”
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O art. 5.º, XXXIII,4 da CF/1988, o art. 2.º,5 II, da LC 131 e o art. 3.º,6 I, da Lei de Acesso à Informação determinam que a transparência é regra e o sigilo só é admitido em casos motivados expressamente que envolvam a segurança da sociedade e a segurança do Estado. Como o sigilo fiscal sobre as aludidas autuações afeta a segurança da sociedade e a segurança do Estado? 56
Em oposição à lógica do sigilo fiscal, outros são os efeitos institucionais da exigência constitucional e legal sobre a transparência de todos os atos administrativos lavrados pelo agente “K” (e todos os demais agentes da Administração Tributária), teríamos, então, o seguinte cenário: (i) a transparência consolidaria social e juridicamente o entendimento histórico da fiscalização no sentido de não tributar a operação “X”, oferecendo certeza e segurança jurídica para o auditor “K” e para a empresa “S”; (ii) a transparência, o conhecimento e o controle social, sobre os atos de autuação do Fisco, protegeriam o agente fiscal “K” da pressão de seus superiores hierárquicos, garantindo sustentação e apoio social à manutenção da sua coerência histórica e legal no sentido de não tributar a operação “X”, exigindo para a alteração desse entendimento mudança institucional discutida publicamente sobre a nova proposta de interpretação da legislação tributária; (iii) a transparência das autuações evitaria o contencioso e reduziria a ação e necessidade do apelo excessivo aos tribunais administrativos paritários de 2.ª Instância, que ficariam resguardados para decidir sobre efetivas e relevantes divergências acerca da legislação tributária; 4. “Art. 5.º, XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;”. 5. Art. 2.º A Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 48-A, 73-A, 73-B e 73-C: “Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo único do art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes a: (...) II – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários.” 6. “Art. 3.º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I – observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção.”
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(iv) a transparência resguarda a função do Sr. Secretário de Fazenda, impedindo que a interpretação da legislação seja manejada para atendimento aos caprichos e demandas políticas eleitorais do Governador; (v) a transparência impediria a criação de nova fonte de receita tributária sem a necessária lei e sem o respectivo processo democrático, fortalecendo o poder político dos deputados estaduais e da Assembleia Legislativa; (vi) a transparência exigiria que o governador submetesse à sociedade e ao Poder Legislativo a ponderação sobre a tributação da operação “X” para a construção das 1.000 casas populares, resgatando o debate sobre tributação, também, como tema e contraponto nos debates para sua reeleição; (vii) a transparência fiscal atende à empresa “S”, visto que a ampla publicidade de uma autuação injusta deixaria o agente “K” sujeito ao crime de excesso de exação, bem como exporia socialmente a arbitrariedade do ato da Administração Tributária, evitando a autuação e tornando desnecessário o custo com o contencioso tributário e a prolongada espera por uma decisão administrativa imprevisível de 2.ª Instância; (viii) a transparência imediata da autuação permite a pronta responsabilização dos gestores, diretores e sócios pelas decisões tomadas, incentivando uma governança corporativa socialmente responsável e aberta ao diálogo com a Administração Fiscal, sem heranças malditas para seus sucessores; (ix) a transparência fiscal atende aos sócios e acionistas que exercem seu direito de agir em tempo hábil de modo a evitar maiores prejuízos decorrentes da eventual autuação sobre a desvalorização social da empresa ou do preço de suas ações em bolsa; (x) enfim, a transparência inclui outros atores sociais (empresas congêneres, ONGs, Academia e outros Estados) na discussão sobre eventuais mudanças nos critérios da tributação das operações X, propiciando o debate aberto e democrático sobre as repercussões fiscais na cadeia produtiva e na carga tributária suportada pelo cidadão e eleitor que através da transparência aprende que é também contribuinte de fato e de direito, conectando sistema tributário e sistema político.7 7. Sem transparência da aplicação da lei o Poder Público pode usar a legalidade abstrata como bem entender e sempre em nome do “interesse público”. Como bem adverte Nelson Saldanha: o exagero do senso privado tornou-se, no Brasil, predomínio do personalismo – conexo a larga presença de estruturas feudais em nossa história social. Trata-se de combater o personalismo nas alianças políticas e nas adesões partidárias; nas palavras de Saldanha, “personalismo na secular tendência a confundir instituições com pessoas”. Ainda de acordo com Saldanha, as distorções do privatismo brasileiros não devem ser limitadas por um estatismo exagerado. Os limites necessitam vir do espírito
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Enfim, o arauto legal da defesa do “sigilo fiscal” que é o art. 1988 do CTN sequer trata, como veremos abaixo, de “sigilo fiscal” (cuida da proteção das informações privadas que o agente fiscal tem acesso em razão do exercício de suas funções): se tratasse, não seria recepcionado pela Constituição em face do art. 5.º, XXXIII, ou estaria expressamente afastado pela LC 131/2009, lei complementar posterior ao CTN. É juridicamente insustentável e moralmente9 comprometedor que a Administração Tributária oculte seus atos de aplicação da legislação tributária (por exemplo, lançamento tributário, autos de infração, consultas fiscais, decisões de 1.a instância administrativa etc.), esquivando-se de tornar públicos seus próprios critérios de interpretação e concretização do direito. As consequências do abuso do “sigilo fiscal” são: público. Saldanha escreve: “ao estatismo brasileiro o que tem faltado é uma identificação maior com a realidade nacional e com as necessidades populares – raramente consultadas –, de onde lhe proviria uma maior substancial idade histórica e também uma flexibilidade mais eficiente; tem-lhe faltado ser publicismo”. Evidentemente, é preciso situar a expressão “espírito público” – utilizada por Saldanha – no contexto da Sociedade da Informação e em uma situação de hipercomplexidade. Trata-se de pensar em um déficit de força institucional aliado a carência de participação política em um contexto em que, cada vez mais, subsistemas sociais autônomos e altamente especializados necessitam encontrar limites na ação política. A tributação é um tema de interesse público por excelência. Falta, contudo, engajamento de atores sociais relevantes no debate político sobre o assunto. Esta carência de participação decorre de diversos fatores, dois deles merecem atenção especial: (i) falta de consciência do cidadão de que é, de fato, contribuinte (paga tributos) e de que necessita se posicionar de modo mais ativo (isto é, fiscalizar e exigir das instituições mais transparência) para que haja uma modificação no cenário atual de carência de equidade na tributação e falta de cuidado na gestão da coisa pública e (ii) alta complexidade das questões fiscais – fator que tende a fazer com que o debate restrinja-se a uma “conversa entre especialistas” em que poucos dominam a “linguagem competente” e estão habilitados a participar. SALDANHA, Nelson. O Jardim e a praça: ensaio sobre o lado “privado” e o lado “público” da vida social e histórica. Ciência e Trópico, vol. II, n. 1, Recife: Fundaj, 1983. Disponível em: . Acesso em: 07.2012. 8. O art. 198 do CTN prescreve que “sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”. 9. “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela EC 19, de 1998).”
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(i) difusão de insegurança jurídica sistêmica; (ii) fomento exponencial da indústria do contencioso fiscal; e (iii) bloqueio e não submissão ao controle social de seus atos e da aferição da eficiência de sua atividade. Tudo em nome do pseudoaltruístico interesse em proteger o contribuinte e a “livre concorrência”. Deveras, a débil e frágil argumentação que defende o “sigilo fiscal” em nome do interesse do contribuinte oculta a conveniência de a Administração Tributária omitir-se na revelação de sua legalidade oficial e, ao mesmo tempo, que oferece escudo legal aparente para subtrair-se ao controle da sociedade: trata-se de profanar a legalidade para sobrepor o uso difuso, vago, indiscriminado e oportuno do “sigilo fiscal” para interesses estranhos ao próprio direito. Uso nesse estilo do jargão “sigilo fiscal” que pretende se revestir numa espécie de sacralização litúrgica, autoimpondo-se como verdade absoluta, que não se justifica, mas ao mesmo tempo deixa vazar claramente suas incoerências, proíbe e pune como pecado inadmissível qualquer desalinhamento ideológico de suas infundadas e obtusas conclusões: o “sigilo Fiscal” assim imposto parece mesmo coisa de religião. Esse uso pragmático e conveniente do “SIGILO FISCAL” para ocultar informações de ordem pública, imprescindíveis para o controle social dos atos da Administração, retrata perfeitamente o que Tercio Sampaio Ferraz Jr. chama de abuso do “PODER DE VIOLÊNCIA SIMBÓLICA”: trata-se de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força que move o interesse que a justifica.10 No seu recente período democrático, perí1.1. Direito fundamental de acesso odo aqui entendido entre 1988 com a promulà legalidade concreta, transparência gação da Constituição Federal até os dias de fiscal como regra e sigilo como hoje, o Brasil passou por importantes mudanças exceção que exige procedimento legislativas que imprimiram um novo estatuto administrativo específico, limites jurídico no que diz respeito ao tratamento de do “sigilo fiscal” e uso indevido suas informações públicas. Por mais que essas da previsão do art. 198 do CTN, mudanças tenham sido realizadas pelas mais que deve ser recepcionado em diferentes vias, de leis complementares ou até interpretação conforme ao art. 5.º, mesmo decretos presidenciais, podemos indiXXXIII, da CF/1988 e em harmonia car claramente uma característica comum: o com a LC 131/2009 caminho cada vez mais explícito pela transparência, que torna regra a transparência e o sigilo de informações, a exceção. 10. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1994. p. 276.
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Partamos, portanto, hierárquica e cronologicamente, pela Constituição Federal de 1988. Seu art. 5.º, XXXIII, diz que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do estado”. O que de fato nos diz este mandamento constitucional? Ora, vemos com clareza que ele nos concede o direito de receber dos órgãos públicos informações de interesse público ou particular, com somente duas exceções: podem estar amparadas pelo sigilo constitucional aquelas informações que ponham em perigo a segurança da sociedade e do Estado. Para dar aplicabilidade a esse mandamento, a Constituição prescreve que tanto o prazo quanto a responsabilidade por tais informações serão disciplinadas legalmente. Portanto, a Constituição institui o pleno direito ao acesso à informação, servindo a legislação (Lei de Transparência e Lei de Acesso à Informação) para dispor sobre o procedimento, a forma, os prazos em que as informações deverão ser prestadas. Regulamentando o texto constitucional, a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2012) assegura, em seu art. 3.º, caput, o “direito fundamental à informação”, rege-se pela “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção”, mas, além disso, disciplina claramente o sigilo com procedimentos específicos. Basta olharmos para o Capítulo IV, intitulado “Das Restrições ao Direito à Informação”, que normatiza os procedimentos para caracterizar informações como ultrassecretas (art. 27, I), secretas (art. 27, II) ou reservadas (art. 27, III), cada qual exigindo procedimentos administrativos específicos pelas correspectivas autoridades competentes para declará-las como tais (por exemplo, em situação excepcional, o Ministro da Defesa propor procedimento para declarar como secreta as informações sobre o contingente de soldados nas fronteiras do País). Dessa forma, segundo a lógica tanto da lei quanto da Constituição, toda e qualquer informação que não se submeter a estes procedimentos de reconhecimento para classificar a informação como ultrassecreta, secreta ou reservada será obrigatoriamente pública e de interesse geral para a sociedade. Ainda assim, poderíamos nos perguntar: qual a amplitude destes dispositivos especificamente no que diz respeito às informações fiscais? Para os servidores públicos da área fiscal, o art. 198 do CTN é a norma que indica, de forma explícita, o tratamento que deve ser dado em relação às informações fiscais dos contribuintes. Entretanto, antes de se analisar sua normatividade estrita, devemos atentar para o fato de que o Código Tributário Nacional foi introduzido pela Lei 5.172/1966, tendo sido apenas seus dispositivos não contrários à nova ordem constitucional recepcionados pela Constituição. Contudo, a partir da vigência da Constituição, a alteração dos dispositivos do Código Tributário Nacional recepcionados exigirá a
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edição de lei complementar ex vi do art. 146 da CF/1988. Ou seja, o atual alcance e sentido do art. 198 do CTN exige: primeiro, para sua recepção, submeter-se a delimitação da cláusula constitucional que garante o acesso à informação (art. 5.o, XXXIII, da CF/1988); segundo, que seja interpretado em conformidade com as posteriores restrições ao sigilo, impostas pela LC 131/2009 e pela regulamentação do art. 5.º, XXXIII, veiculada na Lei 12.527/2012 (LAI). O art. 198 do CTN prescreve que “sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”. O estado de coisas que pressupõe esta norma não poderia ser mais claro: pela natureza de sua função e atividade, o agente fiscal passa a ter contato com informações sobre os sujeitos passivos e terceiros que, de outra forma, não as teria. São informações relevantes, diz a lei, sobre a situação econômica, financeira, ou, de modo mais geral, sobre a natureza e o estado dos negócios ou atividades dos contribuintes. Observe-que o art. 198 do CTN determina que o Fisco não divulgue informações em razão do acesso privilegiado do Fiscal, NÃO SE REFERE À OCULTAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO PÚBLICO QUE É RESULTADO DA FUNÇÃO DE ESTADO QUE EXERCE, NA CONCRETIZAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA: ou seja, o sigilo do art. 198 existe para proteger as informações privadas do particular, não para ocultar os atos de lançamento que decorrem do exercício da atividade estritamente vinculada à lei e privativa do agente fiscal ex vi do art. 142 do CTN(31).11 Em verdade, o art. 198 não trata, nem se refere a sigilo fiscal. Aliás, no CTN sequer há a menção da expressão “sigilo fiscal”. O art. 198 cuida tão apenas da proteção de informações não fiscais, “informações econômicas e financeiras” da empresa, mas que o agente fiscal tem acesso em razão do exercício das suas prerrogativas de auditoria e fiscalização, e que, portanto, não podem ser divulgadas nem pelo Fiscal, nem pelo Fisco.12
11. “Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.” 12. CAIS, Cleide Previtalli. In: Transparência fiscal e desenvolvimento. Coordenação: Eurico Marcos Diniz de Santi, Basile Christopoulos, Daniel Leib Zugman e Frederico Silva Bastos. São Paulo: Editora Fiscosoft, 2013. p 329-48.
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A expressão “sigilo fiscal” não está na lei. Trata-se de simples expressão vaga e ambígua, criada na prática do senso comum do interesse em obstaculizar o acesso à LEGALIDADE CONCRETA e ao efetivo controle social dos atos da Administração Pública pela sociedade: uso conveniente e oportuno, é certo, contudo, sem qualquer base legal ou fundamentação jurídica. O art. 198 não pode se estender ao ato administrativo resultante do exercício da atividade de lançamento que, por sua própria natureza, exige submissão ao regime de direito público. Sob esse regime, requer-se que ato administrativo que seja público e que decorra de atividade administrativa plenamente vinculada. Além disso, o dispositivo constitucional expresso do art. 5.o, XXXIII, não admitiria qualquer interpretação do art. 198 que pretenda impedir a divulgação de informações pertinentes à atividade pública da Administração Fiscal (não seria recepcionado). Ao mesmo tempo, o art. 2.º, II, da Lei Complementar 131/2009, que é posterior e formalmente tem hierarquia superior à Lei Ordinária 5.172/1966 que instituiu o art. 198 do CTN, prescreve claramente que devem ser de conhecimento público “o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários” de todos os entes da Federação. Ou seja, todos os documentos pertinentes aos atos administrativos de lançamento e recebimento de quaisquer receitas devem ser disponibilizados na internet para efetiva transparência e controle social desses atos administrativos.13 Não há aqui qualquer conflito normativo, pois o art. 198 do CTN determina que “é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades” que se refiram à atividade de regime de direito privado do contribuinte. O art. 198 do CTN não se refere a SITUAÇÃO FISCAL DO CONTRIBUINTE: ou seja, “a situação econômica ou financeira do sujeito passivo” só é protegida no âmbito da sua esfera privada, quando a “realização de uma operação mercantil e seu
13. A Lei de Acesso à Informação, que se orienta pelos princípios básicos de “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção (art. 3.º, I); divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações (art. 3.º, II); utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação (art. 3.º, III) fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública (art. 3, IV); desenvolvimento do controle social da administração pública (art. 3, V)”.
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respectivo valor” é juridicizada por ato administrativo de lançamento tributário, essa informação deixa de pertencer à esfera privada do particular para ingressar no mundo do direito tributário, servindo como motivo que justifica e fundamenta a prática do auto de infração. O sigilo fiscal do art. 198, portanto, protege todas as informações que o Fiscal, em razão de ofício, obteve para lavrar o lançamento, mas não resguarda, nem pode, juridicamente, servir de fundamento para ocultar o próprio ato administrativo de lançamento: o art. 198 do CTN preserva as informações exclusivamente de caráter privado do contribuinte, mas se tais informações servirem como critérios relevantes para incidência e formalização do crédito tributário, o art. 2.º, II, da LC 131 exige que tais informações fiscais sejam públicas e divulgadas abertamente (informações sobre a atividade administrativa de lançamento e recebimento de todas as receitas dos entes federativos). Aliás, o direito à privacidade deve harmonizar-se com o direito público à transparência e ao acesso à informação e não ser utilizado como argumento de bloqueio para amesquinhar o controle social dos atos da Administração Pública. Até mesmo os processos que correm em sigilo de justiça nas varas de família, instruídos por provas de adultério, alegações de abuso ou indiferença sexual, sustentam seu sigilo tão somente até a prolação da sentença judicial que só se torna válida juridicamente depois de publicada no cartório e enunciada no Diário Oficial: ninguém nunca ousou pretender estender o sigilo do processo às sentenças judiciais em matéria familiar para proteger a privacidade dos litigantes. Se houvesse sigilo das decisões judiciais ficaríamos sem jurisprudência e sem saber como nossos tribunais realizam a legalidade no Direito de Família. Da mesma forma, é insustentável pretender impor sigilo ao ato de lançamento tributário que diversamente da sentença da vara de família é matéria regida pelos princípios de direito público: o sigilo do art. 198 do CTN restringe-se ao procedimento e aos dados econômicos e financeiros do contribuinte que instruem a convicção do agente fiscal, não se aplica ao próprio ato administrativo que é produto desse procedimento.14
14. A proteção aplica-se, portanto às informações envolvidas no processo/procedimento administrativo, não ao próprio ato/produto que deve por sua natureza ser público. Tal confusão decorre do que Carlos Santiago Nino chama de ambiguidade processo/produto e que consiste no fato de que um mesmo termo apresenta dois significados: um relativo à atividade ou ao processo e o outro, ao produto ou resultado dessa atividade ou processo. Como exemplifica o autor, “é o que ocorre com palavras como ‘trabalho’, ‘vivência’, ‘construção’, ‘pintura’. Se alguém me diz ‘encontro-me na pintura’, pode-se duvidar se o que gosta é pintar ou contemplar quadros”. Introducción al análisis del derecho, p. 261.
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Assim, também, são as fontes do direito: o ato administrativo (processo) produz o ato administrativo (produto), ao passo que o ato legislativo (processo) produz a lei (produto) e o ato judicial (processo) produz a sentença (produto). Ou seja, o art. 198 do CTN abriga tão só a proteção de informações da ordem privada das empresas e não se aplica mais quando tais informações transladem para o regime de ordem pública do ato administrativo de lançamento. Ou seja, protege os segredos empresariais necessários à competitividade econômica, como, por exemplo, o uso de técnicas que outras empresas não possuem e que, se soubessem, poderiam copiar para diminuir seus custos ou aperfeiçoar suas técnicas de produção. Em outras palavras, não é de interesse geral que saibamos todos os gastos de uma pessoa específica ou termos acesso indiscriminado a todas as informações de uma pessoa jurídica. Podemos, com segurança, dizer que estas mesmas preocupações ainda existem no ordenamento jurídico vigente. Não é por acaso que o art. 31 da Lei de Acesso à informação diz que o “tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”. A transparência hoje exigida não busca acabar com tais princípios, sem os quais viveríamos em estado de vigilância total. Não é este o caso. É importante registrar que a ideia de Transparência da legalidade concreta não pretende que o acesso a informação indiscriminado alcance todos os documentos públicos, como GARE, DIPJ, Declaração de Imposto sobre a Renda etc. Tais documentos representam obrigações acessórias que devem se manter na relação estrita do ente servidor público e contribuinte: quer-se acesso aos dados de aplicação da legislação tributária que revelam tão somente as obrigações principais e os respectivos pagamentos. Por outro lado, também não pretende adentrar a esfera íntima das pessoas físicas, resguardando e protegendo suas informações de âmbito privado, que não diz respeito nem tem relevância pública, como, por exemplo, a listagem pormenorizada de gastos com cartão de crédito dos contribuintes etc. Atacamos, aqui, o uso abusado e fetichista da expressão “sigilo fiscal”: se o direito ao sigilo fiscal realmente existisse, as informações fiscais das empresas, objeto de processo administrativo, não poderiam ser publicadas nem discutidas publicamente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e no Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, por exemplo. Nada pode justificar juridicamente a transparência na 2.ª Instância administrativa e, ao mesmo tempo, o sigilo das mesmas informações na lavratura do auto de infração ou no julgamento de 1.ª Instância.
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Encontre-se um fundamento jurídico para o sigilo fiscal no Sistema Tributário Nacional e aplique-se a regra do segredo e do sigilo a todas as esferas do contencioso administrativo, ou admita-se que não existe fundamento jurídico para o sigilo fiscal e que seu uso só se justifica em casos extremos e justificados. Ou, extrajuridicamente, como instrumento de conveniência que se presta a impedir o controle social dos atos da Administração Tributária, pseudolegitimando a desigualdade e a arbitrariedade no ato de aplicação da legislação tributária pela Administração Pública. Quando dizemos que a transparência 1.2. A legalidade concreta, fiscal é a regra, buscamos tão somente as manifestação prática dos atos de informações que acompanham os atos de aplicação da legislação tributária, não lançamento e o recebimento das receitas só ao servidor que aplica o direito e dos entes federativos, como diz o art. 2.º, ao contribuinte que paga ou discute II, da LC 131. Aqui, o interesse é sobre o tributo, mas também a todos os as informações de natureza pública que outros tributos e steakholders da acompanham as atividades arrecadatórias tributação do Estado, isto é, interessa-nos saber como ele se financia através da tributação. Dentro dessa atividade, seguindo o princípio da legalidade, o Estado realiza, por meio de seus agentes, atos de concreção do direito, que no jargão jurídico são chamados de atos administrativos. Para o controle de tais atividades, a dogmática jurídica exige que tais atos administrativos respeitem pressupostos legais sem os quais a arrecadação do Estado poderia se dar de forma arbitrária. É neste sentido que devemos ter a publicidade das informações da Administração Pública para saber informações juridicamente relevantes como, por exemplo, se a autoridade era competente, se há provas do motivo do ato, se este encontra fundamento jurídico, entre outros requisitos necessários para a validade dos atos administrativos. É importante lembrar que quando o CTN entrou em vigor a maior preocupação era assegurar a legalidade e a tipicidade na cobrança dos tributos. Buscava-se segurança e uniformidade na aplicação das leis. Por isso foi tão importante encontrar a coerência conceitual na legislação tributária, sistematizando categorias determinadas por padrões rígidos. Por exemplo, segurança jurídica significava saber o que era o fato gerador, o conceito objetivo de prescrição, decadência, obrigação principal, obrigação acessória, hipótese de incidência etc. Utilizando essas categorias interpretativas criadas pela dogmática jurídica, o Estado era controlado – pelos limites impostos pela legislação e jurisprudência – em uma relação direta entre positivação e interpretação, atividade legislativa e o estudo da linguagem.
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Conforme destacou Marco Aurélio Greco, tratando da importância da dogmática jurídica na década de 1970: “Debater com a Autoridade no plano sintático e semântico e suscitar questões ligadas à hierarquia (das normas) era um porto seguro onde o questionamento do exercício da autoridade estatal (via tributação) podia se dar sem maiores riscos”.15 Todas essas preocupações ainda existem e são importantes, mas temos de reconhecer que o momento agora é outro. Hoje, não basta termos segurança em relação aos conceitos extraídos da norma abstrata e geral e sistematizados pela dogmática jurídica. Com a complexidade da legislação e com a automação dos meios de concreção do direito, a dogmática não é mais capaz de manter-se atualizada simplesmente pela leitura dos conceitos legais, naturalmente fluidos e vagos pela própria limitação de nossa linguagem. Mais importante se tornou saber como a atividade arrecadatória de fato é realizada. Ou seja, como, no dia a dia, o Estado se financia, quais atividades são tributadas e quais não são na prática administrativa, e com base em quais fundamentos jurídicos é exercida essa atividade. Por isso, a transparência é a transparência do Estado e de seu funcionamento interno, como o Estado caminha pela legalidade e se relaciona com o contribuinte. Só recentemente nossos juristas passaram a reconhecer a riqueza e a complexidade do funcionamento do que é, no fundo, o objeto principal do seu estudo: o Direito em suas mais variadas e intrincadas manifestações. O melhor ponto de partida de qualquer investigação científica sobre o Direito é obviamente a lei positivada, por definição norma abstrata e geral, mas é seu pior ponto de chegada, pois simplifica, em demasia, a realidade. É completamente equivocado, em nome da pureza teórica, ignorar o mundo à nossa volta, como se fosse necessário uma teoria prévia para eu dizer que este mundo existe. Se a prática e os dados empíricos não podem se adequar à teoria é esta que deve ser mudada e problematizada, não são os dados do mundo real que devem ser ignorados, como infelizmente ocorre atualmente. Chegou-se à constatação de que os atos de concreção do direito, sejam eles normais (Administração Tributária) ou patológicos (contencioso administrativo e judicial), interessam não só ao servidor que aplica o direito e ao contribuinte que paga ou discute o tributo, como também à sociedade como um todo. Tal observação encontra claro fundamento na Lei de Acesso à Informação, que se orienta pelos princípios básicos de “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção (art. 3.º, I);
15. GRECO, Marco Aurélio. Crise do formalismo no Direito Tributário Brasileiro. In: José Rodrigo Rodriguez, Carlos Eduardo Batalha da Silva, Samuel Rodrigues Barbosa (orgs.). Nas fronteiras do formalismo. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 230.
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divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações (art. 3.º, II); utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação (art. 3.º, III); fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na Administração Pública (art. 3.º, IV); desenvolvimento do controle social da administração pública (art. 3.º, V)”.16 Importa, em primeiro lugar, desconstruir 1.3. Manipulação da “Moldura da o mito de que há uma única interpretação verLegalidade” no modelo centralizado dadeira da norma jurídica.17 A crença de que o do controle, o desafio kelseniano: texto da lei tem um sentido unívoco remete ao como saber sobre “legalidade” legalismo exegético do século XIX,18 mas, nos escondida e produzida por múltiplas dias atuais, ainda permanece no imaginário de cabeças federativas? muitos operadores do direito brasileiro. Hans Kelsen, em 1934, no célebre capítulo oitavo da Teoria pura do direito, mostra definitivamente que não há um sentido interpretativo único previamente fixado na lei e que pensar o direito é pensar possibilidades interpretativas. Kelsen delineia uma teoria da interpretação tão sofisticada que permanece, até os dias atuais, uma das principais referências para os grandes pensadores do direito. Ciente de que a vagueza e a ambiguidade 16
16. Disponível em: http://www.fiscosoft.com.br/a/5v5h/lei-da-transparencia-lc-13109-lei-de-acesso-a-informacao-lei-125272011-e-a-constituicao-federal-de-1988-proposta-formacao-e-fundamentacao-juridica-do-indice-de-transparencia-e-cidadania-fi. Acesso em 14.03.2014. 17. Idem. 18. O primeiro grande marco do modo contemporâneo de pensar a lei foi a promulgação do Código Civil francês de 1804. Neste período, surgiu, na França, a Escola da Exegese. Acreditava-se, na época, que a lei deveria ser compreendida literalmente e que o intérprete deveria esforçar-se para encontrar a “verdadeira” vontade do legislador (expressa por meio do texto). A intenção era fazer com que os juízes não fossem “senão a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que desta não podem moderar a força nem o rigor” – esta idealização da figura do legislador associava-se ao fato de no início do século XIX grande parte dos juízes estava ligada ao Antigo Regime, que, acreditava-se, deveria ser superado. Ao juiz, portanto, não caberia criar direito (esta tarefa seria privativa do legislador), mas somente aplicar a lei, cujo significado, supostamente, estaria previamente determinado (o juiz apenas esclareceria o “verdadeiro” sentido da lei). Adeodato identifica a ingenuidade das teses da Escola da Exegese que, em razão do radicalismo, do alto grau de fechamento e do distanciamento dos fatos sociais (que se modificam num ritmo muito mais acelerado que as leis, provocando inadequações evidentes), entra em decadência já na passagem do século. ADEODATO, João Maurício: O problema da legitimidade – no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1989. p. 61.
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da linguagem geram necessariamente a abertura a interpretações, Kelsen explica que há uma relativa indeterminação no sentido da norma jurídica.19 O modelo piramidal delineado pelo pensador austríaco (inspirado em Puchta) afirma que a norma superior é fundamento de validade da norma inferior: aquela estabelece o processo em que esta é criada e, até certo ponto, seu conteúdo. Existem, contudo, múltiplas possibilidades de interpretação da norma e, por isso, o direito a aplicar aparece para o órgão decisor (administrador público ou juiz, por exemplo) como uma moldura dentro da qual existem várias alternativas de interpretação. Para Kelsen, quaisquer possibilidades situadas no interior da moldura são coerentes com a norma superior.20 O órgão do Estado investido do poder de criar direito deverá escolher uma destas possibilidades no processo de concretização da norma e, dessa maneira, exercerá o que Kelsen chama de função voluntária (ou política) do ato interpretativo.21 Kelsen escreve que, devido à vagueza e à ambiguidade da linguagem, todo ato de concretização da norma realizado por órgãos estatais (judiciário ou administrativo) é também um ato de criação normativa. Há alguma margem para discricionariedade mesmo em atos que parecem estar totalmente adstritos a ordens prescritas por autoridades de hierarquia superior como, por exemplo, a execução de um mandado de prisão (o policial está vinculado à ordem da autoridade superior, mas pode, ainda assim, tomar algumas decisões como executar o mandado pela manhã ou à tarde, usar ou não algemas). Kelsen mostra que há diferentes graus de discricionariedade (mas há sempre alguma liberdade) nos diversos atos de aplicação da lei, que podem ser realizados, por exemplo, por um Juiz, Auditor Fiscal, Secretário ou Ministro da Fazenda. Tais constatações nos permitem formular a pergunta central que orientará este trabalho: se órgãos estatais podem interpretar normas de diversas maneiras, como estabelecer novas formas de responsabilização na “Sociedade da Informação” e em um contexto de hipercomplexidade? Daí derivam outras questões, tais como: “dada a multiplicidade de possibilidades interpretativas, como garantir certeza jurídica (o cidadão tem direito de saber previamente se suas ações serão consideradas ilícitas ou não)?”; “como assegurar que as decisões de servidores públicos estejam associadas a posicionamentos institucionais (trata-se de pôr limites ao 19. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, p. 388 e seguintes. 20. Idem, p. 387-391. 21. Idem, p. 392-399.
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personalismo)?”. As mais interessantes teorias sobre Direito e Desenvolvimento pensam a transparência como a chave para lidar com estes desafios. Kelsen deu o primeiro passo ao nos mostrar que há múltiplas alternativas de determinação do sentido normativo. Mas Kelsen escreveu isto em 1934 em um contexto social de menor complexidade, antes que pudéssemos imaginar a revolução tecnológica que vivenciamos atualmente. Na década de 1930, fazia sentido pensar que a resposta às referidas questões deveria vir somente de organizações estatais rígidas e hierarquizadas (como veremos abaixo, de acordo com o modelo de redes centralizadas). Nos dias de hoje, no entanto, não é razoável crer que o controle do processo de concretização da norma, que acontece de modo cada vez mais célere e difuso, é capaz de ser eficientemente controlado por apenas um centro de poder. É preciso pensar novas maneiras de organizar redes de responsabilização (que precisam ser menos centralizadas e mais distribuídas). Uma das principais consequências da metáfora da moldura kelseniana e da refutação da tese de que existe uma única interpretação verdadeira da norma é a de que legalidade22 não está somente na lei abstrata. Portanto, para conhecer a “verdadeira” legalidade é fundamental saber sobre os atos de concreção do direito produzidos pelas autoridades públicas. Há, atualmente, um aumento de ações 1.4. Legalidade em rede viabilizando dirigidas a promover transparência em todo o a comunicação e o acesso à mundo. Observa-se: (i) crescimento do número legalidade concreta: Era da de organizações da sociedade civil interessadas informação, sociedade em rede, em transparência; (ii) aumento da quantidade governança pública e direito em de normas sobre transparência fiscal; (iii) foco rede23 em reformas na Administração Pública que promovem boa governança. O presente desafio para o administrador público brasileiro é: como situar-se em uma posição de liderança no referido processo. Tal movimento voltado ao incremento da transparência acontece ao lado de profundas transformações sociopolíticas vividas no tempo presente. Manuel Castells explica que a introdução da tecnologia de informação tem um importante 2223
22. A expressão legalidade deve ser compreendida aqui em seu sentido amplo, que se aproxima do conceito kelseniano de normatividade. 23. Disponível em: http://www.fiscosoft.com.br/a/5v5h/lei-da-transparencia-lc-13109-lei-de-acesso-a-informacao-lei-125272011-e-a-constituicao-federal-de-1988-proposta-formacao-e-fundamentacao-juridica-do-indice-de-transparencia-e-cidadania-fi. Acesso em 14.03.2014.
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papel nestas mudanças: provocou alterações em nossa experiência social e na forma como concebemos o espaço e o tempo.24 Neste novo cenário, redes sociais ganharam a capacidade de coordenar decisões e o trabalho de execução de modo eficiente. Redes distribuídas passam a competir com organizações verticais sem perder suas características (sobretudo sua flexibilidade). A internet possibilitou a ampliação e a transformação da capacidade das redes em organizar a ação social, a ação comunitária e também a ação que leva a uma mudança de percepção e valores sobre o poder. Castells mostra que, através desses novos sistemas de mobilização, ligas da sociedade civil mais orgânicas e flexíveis podem se infiltrar e modificar a rigidez da organização do Estado.25 De acordo com Paul Baran,26 há três estruturas básicas de redes conforme representado acima: centralizadas, descentralizadas e distribuídas. Se pensarmos que cada conexão representa uma relação de poder, temos que esses três modelos poderiam representar redes onde há maior e menor concentração de poder. A rede distribuída, por definição, é a rede onde há maior igualdade na estrutura de poder, onde os indivíduos não estão hierarquizados. Já a rede centralizada e a descentralizada representam, necessariamente, redes hierarquizadas e com estruturas de poder bem definidas e concentradas em determinados atores.27 No caso da tradição do direito, é muito claro que a legalidade que conhecemos está ligada ao modelo de rede centralizada (ou descentralizada) em que todos os sujeitos de direito se conectam ao mesmo centro para discutir sua legalidade individual, mas sem acesso, informação ou controle de como a legalidade é aplicada aos demais pontos da rede. O poder, assim, fica convenientemente concentrado nas mãos do gerenciador central da “legalidade” que pode distribuir a legalidade que quiser, “legalidade” para quem quiser ou mesmo aplicar a lei aos pontos que lhe convier. Trata-se, pois, de relação de poder unilateral que implica relação de dominação da 24. BANDEIRA, Guilherme. Sociedade da informação e sistema público de escrituração digital. Working Paper. Núcleo de Estudos Fiscais. 2011. Disponível em: [http://www.fiscosoft.com.br/a/5hdg/sociedade-informacional-e-sistema-publico-de-escrituracao-digital-guilherme-villela-de-viana-bandeira]. Acesso em 04.04.2014. 25. CASTELLS, Manuel. “Redes Sociais e Transformação da Sociedade”. Cadernos Ruth Cardoso (1/2010). Centro Ruth Cardoso, 2010 e CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. vol. 1. São Paulo: Paz e Terra. 2000. 26. BARAN, Paul. On Distributed Communications, 1964. 27. Idem.
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instituição centralizadora sobre outros indivíduos e outras instituições, mas tudo em nome da legalidade. Assim, no sistema tributário atual, cada ponto discute individualmente que paga muito tributo, mas o sistema mantém em estratégico “sigilo fiscal”, em nome da proteção dos pontos subordinados ao controle centralizado (apenas este centro de comando cuidaria da responsabilização), quanto cada qual efetivamente paga de carga tributária (quanto cada contribuinte arrecada). No contencioso fiscal, cada ponto discute sua “legalidade abstrata” na impugnação ao auto de infração, mas não tem noção nem informação da legalidade concreta aplicada a todos os outros contribuintes que sofreram autuações semelhantes, tudo e sempre, em nome da proteção ao sigilo fiscal do contribuinte. Na despesa pública, o mesmo problema ocorre, mas em menor proporção em decorrência dos benefícios inegáveis da Lei de Responsabilidade Fiscal e outras normas de controle financeiro. Essa lógica de poder, dominação e privilégios ocultos (que fala em nome da legalidade abstrata, mas esconde a LEGALIDADE CONCRETA e prática oportunamente mediante a estratégia do segredo e do sigilo da informação) sofre drástica ruptura com a Lei da Transparência, a Lei de Acesso à Informação e a moderna tecnologia de rede (internet) que permite essa nova lógica da legalidade. O que muda com a entrada em vigor destes dois diplomas normativos? Cada vez mais, torna-se possível que novos atores participem da discussão sobre alternativas de interpretação da lei e a respeito de decisões tomadas por administradores públicos (escolhas realizadas com base na moldura da legalidade). Mais participação implica novas formas de responsabilização e controle: a sociedade civil passa a atuar como protagonista de debates acerca de questões de interesse público (a imagem de redes distribuídas ganha força em detrimento de um modelo de direito pautado em redes centralizadas). Não esqueçamos que direito ao acesso à in1.5. A influência da transparência formação (e decorrente controle social) dos atos na livre concorrência: garantir a de aplicação da legalidade decorre diretamente isonomia e o controle social das noções de regime democrático, de República, de legalidade e de Estado de Direito: portanto, não precisariam sequer de disposição constitucional expressa e muito menos de lei complementar ou ordinária para se impor a todas as autoridades públicas dos três poderes. Mas não apenas tais noções (democracia, república, legalidade e estado de direito) foram amplamente consagradas na Constituição Federal de 1988, esta também exige o respeito ao princípio da livre concorrência em nossa ordem econômica em seu art. 170, IV. Além disso, a proteção à “livre
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concorrência” aparece expressamente na Constituição no art. 155, § 4.º, IV, b, na fixação de alíquotas para o ICMS, bem como no art. 146-A, que determina que a lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência (Incluído pela EC 42, de 19.12.2003). Ou seja, da perspectiva fiscal e econômica respeitar o princípio da livre concorrência exige que o Estado, por meio de suas intervenções (ou omissões), não crie obstáculos para que a iniciativa privada possa ofertar livremente seus produtos ao mercado. Este mandamento proíbe, portanto, que haja legalidades fiscais díspares, sem fundamento legal expresso e econômico comprovado, que criem distorções no domínio econômico o qual, por princípio, deve ser regido pela igualdade dos agentes regulando-se pelo sistema de oferta e demanda. A transparência, neste aspecto, é fundamental: especialmente porque um dos principais componentes da formação dos preços são os tributos, se não houver igualdade na tributação fica evidentemente comprometida a livre concorrência. Portanto, só a transparência e o controle social podem garantir que não haja distorções à livre concorrência seja na tributação, seja no gasto público. Empresas concorrentes devem pagar cargas tributárias semelhantes e proporcionais às suas operações. É injustificável, e no mínimo insólito, o Fisco defender o sigilo sobre os valores arrecadados pelas empresas sob a justificativa de que o acesso simétrico à informação entre as empresas exporia publicamente as “estratégias tributárias”: não é função do Fisco proteger e defender o segredo do planejamento tributário das empresas. Aliás, é paradoxal, porque na prática o Fisco autua e coíbe sistematicamente o planejamento tributário. Ora, se uma empresa licitamente reduz a carga tributária, o princípio da igualdade e da livre concorrência exige que as demais empresas do mesmo setor saibam, minimamente, dessa informação para buscar formas legítimas de equacionar sua carga tributária. A informação sobre a carga tributária efetiva paga pela empresa concorrente é direito legítimo e resguardado pela Constituição para garantir a livre concorrência: nem o valor do tributo pago, nem as engenharias jurídicas para reduzir a carga tributária podem ser protegidas em nome do sigilo fiscal. Muito pelo contrário, a regra maior da igualdade perante a lei não pode beneficiar interpretações criativas protegidas pelo sigilo como se fossem segredos industriais: a lei tributária deve ser aplicada de forma isonômica, diferenças que desequilibram a livre concorrência devem ser explicitadas e justificadas publicamente. Considerar o exercício do planejamento tributário lícito um direito do contribuinte é algo legítimo, pretender ocultar informações sobre os atos de legalidade
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concreta em nome da proteção ao segredo do “planejamento tributário” fere a igualdade e a livre concorrência. Mas argumentar que o interesse do Fisco é defender o direito à “patente” e ao “segredo” do planejamento tributário em nome da proteção ao contribuinte e à livre concorrência é, para ficarmos no plano do eufemismo, paradoxal! Portanto, só a ampla divulgação da carga tributária de todas as empresas pode garantir o efetivo controle social da isonomia e assegurar a livre concorrência: sem isso há desvio de finalidade da legalidade para beneficiar interesses escusos e estranhos à racionalidade e ao direito. Ocorre que há dois planos de legalidade: 1.6. Transparência como instrumento (i) a legalidade geral e abstrata que engendra da realização da igualdade (caput a incidência conceptual (“eficácia legal” em do art. 5.º modulando seus incs. X, Pontes de Miranda) e (ii) a legalidade concreta XII e LV) mediante a da prova da e prática que se realiza com incidência jurídica concretização da legalidade efetiva (“efetividade” em Pontes ou “eficácia social” em Kelsen). É esta última legalidade que Pontes de Miranda chama “efetividade” que Hans Kelsen define como o derradeiro ato de aplicação do direito: aquela que produz enunciados conformativos de norma individual e concreta. Sem esta aquela não se realiza, sem aquela esta perde seu fundamento legal. A transparência prática da legalidade permite a prova e verificação da aplicação dos fatos descritos hipoteticamente na lei: sem prova da realização da aplicação da lei e do correspectivo ato administrativo compromete-se a garantia do primado da igualdade. Geraldo Ataliba adverte: “A lei é o instrumento da isonomia”. E arremata: “A captação do conteúdo jurídico da isonomia exige do intérprete adequada consideração sistemática de inúmeros outros princípios constitucionais, especialmente a legalidade, critério primeiro, lógica e cronologicamente, de toda e qualquer ação estatal” (...). Igualdade diante do Estado, em todas as suas manifestações. Igualdade perante a Constituição, perante a lei e perante todos os demais atos estatais. A isonomia, como quase todos os princípios constitucionais, é a implicação lógica do magno princípio republicano, que fecunda e lhe dá substância. (...) Embora tenha larguíssima fundamentação histórica e provectas raízes culturais, o princípio da isonomia só pode ser compreendido em toda sua dimensão e significado, juntamente com o princípio da legalidade”.28
28. ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: RT, 1985. p. 133.
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Sem legalidade, não há igualdade; sem igualdade não há república: são as poderosas lições do Guardião da República que parecem haver gravado sua influência e sabedoria no texto constitucional: há inúmeras regras constitucionais prescrevendo, expressa e implicitamente, a realização da legalidade nos procedimentos e processos jurídicos, vejamos: (i) o próprio caput do art. 5.º: “todos são iguais perante a lei”; (ii) a legalidade estrita do art. 5.º, II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Ou leia-se: de sua devida aplicação mediante provas previstas, também, em lei para sua fiel aplicação (busca da verdade material); (iii) o reiterado art. 5.º, XII, em que o expresso acesso à inefabilidade da comunicação telefônica, em detrimento do sigilo de comunicação, permite a constituição de provas para realização da legalidade; (iv) o art. 5.º, LV, o devido processo legal com os meios e recursos inerentes: pois sem a prova, que é meio, a legalidade material não se realiza; nem a formal; (v) o art. 37: dever de legalidade, impessoalidade e eficiência da Administração Pública; e (vi) o art. 84, IV, que prescreve que “compete ao Executivo cuidar da fiel execução da lei”: ora, sem provas, é impossível aplicar juridicamente a lei. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins advertem para a herança da preocupação com as garantias do princípio da legalidade, positivado pela primeira vez na terceira Constituição francesa de 1795, retratando a prevalência e supremacia da lei sobre as decisões dos demais Poderes e aguardando do legislador a tutela e harmonização dos direitos fundamentais sem ulteriores possibilidades de controle: “A máxima jurídica da qual se valiam os constitucionalistas alemães do século XIX era a seguinte ‘não haverá intervenção na liberdade e na propriedade sem lei (que as legitime)’ (Kein Eingriff in Freheit und Eigentum ohne Gesetz)”.29 Destarte, a intimidade e a vida privada já nascem limitadas pela igualdade e pela legalidade que é seu derradeiro instrumento de realização; são diante desses “termos” que os incs. X, XII e LV do art. 5.º da CF devem ser interpretados. 1.7. Falhas e manipulação da legalidade: desapego ao contexto histórico dos atos de outorga de competência e uso criativo da linguagem das normas
A legalidade não está na lei. É um processo histórico que se constrói no eixo paradigmático do tempo. A legalidade inspira-se na lei, mas se realiza no ato de aplicação do direito. Há necessidade, pois, para apreender a “verdadeira” legalidade, de se identificar a sedimentação dos 29
29. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2006. p. 31.
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critérios legais eleitos pelas autoridades competentes, na torrente histórica dos respectivos atos de concreção do direito. Daí a importância do que denominamos processo narrativo do direito: sem ele abandona-se a “prática” da legalidade construída pela própria Administração Pública, para adular e atender a interesses mesquinhos que se escusam do jogo democrático. Quer aumentar a arrecadação? Crie um novo tributo ou aumente a alíquota do ICMS-Comunicação nos limites de sua competência (fazendo-o incidir, como sempre, sobre os elementos formais – infraestrutura – da comunicação), de 25% para 40%, por exemplo. A inesgotável capacidade criativa para gerar novos sentidos sobre um mesmo texto legal, alargando-se a competência tributária, não é conduta digna do Poder Público: ESPERTEZA e OPORTUNISMO não fazem rima com LEGALIDADE e DEMOCRACIA. Para se exigir ética e lealdade do contribuinte, a Administração Pública deve, antes e sponte própria, agir de forma modelar. Afinal, ética não se prescreve e não se ensina com palavras se houver a omissão do Estado em dar o primeiro exemplo: sem ética na produção e aplicação da lei, não há legalidade; sem legalidade, não há Estado (que é per excellence um constructo de normas), muito menos um Estado Democrático de Direito, tal qual exigido pelo art. 1.º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.30 Manuel Castells explica que redes sociais existem desde os primeiros agrupamentos humanos: redes de colaboração, redes de solidariedade e, também, redes de exclusão e de dominação. A formação de redes está ligada ao desenvolvimento orgânico da ação social, elas são, por isso, flexíveis e adaptáveis. Com a 3031
1.8. Quem vigia os vigilantes? A importância da transparência para o exercício da cidadania fiscal e para o empoderamento (empowerment) de setores sociais historicamente enfraquecidos no Brasil31
30. “Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” 31. Disponível em: http://www.fiscosoft.com.br/a/5v5h/lei-da-transparencia-lc-13109-lei-de-acesso-a-informacao-lei-125272011-e-a-constituicao-federal-de-1988-proposta-formacao-e-fundamentacao-juridica-do-indice-de-transparencia-e-cidadania-fi. Acesso em 14.03.2014.
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modernização e o aumento da complexidade social, redes flexíveis se tornaram incapazes de administrar novos problemas emergentes. Organizações de estrutura centralizada, hierarquia vertical e enrijecida (como Estados, exércitos e Igreja) ganharam espaço em detrimento de redes orgânicas e flexíveis. Estas últimas passaram a ter sua atuação limitada ao espaço da vivência pessoal e tornaram-se quase invisíveis para o pensamento social (de acordo com Castells, as redes tornaram-se pouco visíveis também porque, em sua maioria, eram operadas por mulheres), convertendo-se, assim, em objeto de estudo de antropólogos que investigavam sociedades que não tinham passado por um processo de modernização.32 As transformações recentes, sobretudo a introdução da tecnologia da informação, conformaram um novo cenário, no qual redes flexíveis e distribuídas voltaram a ganhar força: tais redes podem, hoje, manter sua flexibilidade e, ao mesmo tempo, coordenar decisões e o trabalho de execução de modo eficiente. Redes sociais adaptáveis e distribuídas passaram, assim, a competir com organizações verticais, sem perder suas características. A internet possibilitou a ampliação e a transformação da capacidade das redes em organizar a ação social, a ação comunitária e também a ação que leva a uma mudança de percepção e valores sobre o poder. Castells argumenta que, através desses novos sistemas de mobilização, ligas da sociedade civil mais orgânicas e flexíveis podem se infiltrar e modificar a rigidez da organização do Estado.33 Com base no diagnóstico de Castells, John Braithwaite discute formas de regulação em rede capazes de pôr limites à concentração de poder:34 investiga, nesses termos, como se dá o embate de forças na Sociedade da 32. CASTELLS, Manuel. “Redes sociais e transformação da sociedade”. Cadernos Ruth Cardoso (1/2010). Centro Ruth Cardoso, 2010 e CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 33. Zygmunt Bauman não é tão otimista quanto Castells e escreve a respeito de perdas que sofremos em razão de um recuo da “proximidade contínua, pessoal, direta, face a face, multifacetada e multiuso”. Segundo Bauman, atualmente os indivíduos utilizam novas possibilidades disponibilizadas pela tecnologia para evitar relações íntimas e duradouras. CASTELLS, Manuel. “Redes sociais e transformação da sociedade”. Cadernos Ruth Cardoso (1/2010). Centro Ruth Cardoso, 2010; BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004 e BAUMAN, Zygmunt. Entrevista para o Fronteiras do Pensamento em 08.08.2011 (Porto Alegre) e 09.08.2011 (São Paulo). Disponível em: . Acesso em: 14.03.2014. 34. BRAITHWAITE, John. “Responsive Regulation and Developing Economies”. World Development vol. 34, n. 5. Elsevier, 2006. p. 884-898.
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Informação e que direção deve ser dada a lutas contra novas formas de dominação. Braithwaite procura pensar uma teoria da democracia conectada às noções de “governança em rede” e “regulação responsiva” (responsive regulation) de modo a fornecer uma resposta republicana a dilemas do tempo presente. Em contraposição a concepções de democracia em que os vigilantes dos vigilantes, em última análise, são sempre parte do Estado; trata-se de discutir formas de responsabilização deliberativa e circular. A ideia é permitir que todos sejam capazes de responsabilizar a todos e cada organização possa ser responsabilizada por indivíduos que dela participam. A fórmula de Montesquieu, que buscava limitar a dominação através da separação clara entre três poderes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário), é, para Braithwaite, insuficiente, já que não reconhece que há virtude no entrelaçamento de atores públicos e privados: os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário podem conectar-se a outros atores através de redes de governança. Braithwaite explica que a interpretação das regras jurídicas (ou, tal como vimos denominando, a legalidade concreta) surge, em círculos de conversação. Juízes, tribunais, administradores públicos são atores relevantíssimos que fazem parte de tais círculos; mas – Braithwaite insiste – não são os únicos atores.35 A segurança jurídica torna-se nesse contexto uma questão pragmática: isto é, conecta diálogo entre diversos atores sociais fortemente marcado pela referência a textos legais – não se refere exclusivamente à relação entre um intérprete (como um juiz ou um administrador público) com um texto. O pressuposto para a constituição de tais círculos de deliberação, capazes de limitar o abuso de poder (desmontar alianças de grupos econômicos e políticos) e a transparência dos atos de concretização do direito. Além de um ideal de democracia, Braithwaite argumenta que teorias sobre democracia, governança em rede e regulação responsiva conformam um “ideal de efetividade” (effectivness ideal), especialmente importante para
35. “Regras são apenas uma das coisas que emergem dos círculos de deliberação. Uma outra coisa que deles emerge é a interpretação das regras. Estas surgem de círculos de conversação nos quais juízes e tribunais podem ser especialmente influentes.” BRAITHWAITE, John. “Responsive Regulation and Developing Economies”. World Development vol. 34, n. 5. Elsevier, 2006. p. 884-898 e BRAITHWAITE, John. “Rules and Principles: A Theory of Legal Certainty” . Australian Journal of Legal Philosophy, vol. 27, 2002. p. 47-82. Disponível em: [http://papers.ssrn.com/ sol3/papers.cfm?abstract_id=329400]. Acesso em 14.03.2014.
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países periféricos: ações conduzidas por redes de atores governamentais e não governamentais podem ajudar a superar o déficit de força de concretização (enforcement) de normas jurídicas. São, igualmente, teorias mais úteis na medida em que são capazes de nortear, desde já, a ação. Uma concepção de democracia que a define como um atributo exclusivo do Estado não é capaz de fornecer um referencial prático para a ação em situações em que lidamos com um Estado com pouca capacidade regulatória (como Estados da América Latina). Faz parecer, nesses casos, que a única opção que resta aos cidadãos é demandar uma resposta estatal (que provavelmente não virá); isto os desautoriza a construírem eles mesmos, agora, a democracia. De outro lado, pensar a democracia como um processo conexo à vida cotidiana e que é construído por diversos atores (não apenas o Estado) permite estabelecer um norte prático para a ação: constrói-se democracia ao verificar como se gasta dinheiro público, ao participar de um sindicato, ao enviar emails para amigos discordando da postura de um grupo de empresas, ao engajar-se em manifestação pública etc.36 Responsividade (responsiveness) significa respeito pela integridade de práticas e autonomia de grupos; isto é, sensibilidade para a textura complexa da vida social. O desafio atual é encontrar respostas regulatórias capazes de fortalecer instituições e, ao mesmo tempo, levar a sério novos atores, novas demandas e expectativas. Abusos de poder podem ser limitados de forma mais eficiente por uma pluralidade complexa de muitos poderes separados ou “nós semiautônomos de governança em rede”.37 Tais nós de governança pública, privada ou híbrida necessitam, por um lado, ter autonomia suficiente para não serem dominados por outros nós de governança e, por outro, precisam ter capacidade para pôr limites a abusos de poder. De acordo com Braithwaite, entes estatais deveriam ser mais sensíveis (ou “responsivos”) à forma que cidadãos e organizações se autorregulam antes de intervir de modo mais severo. O potencial transformador da educação fiscal e a sua conexão com a política reside no empoderamento (empowerment) de diferentes atores
36. Sobre a conexão entre democracia e vida cotidiana na tradição pragmatista merece destaque a obra de John Dewey. Cf. DEWEY, J. “The Public and its Problems”. Later Works vol.2. Standard Southern Illinois University (SIU) editions. BRAITHWAITE, John. “Responsive Regulation and Developing Economies”. World Development vol. 34, n. 5. Elsevier, 2006. p. 884-898. 37. BRAITHWAITE, John. “Responsive Regulation and Developing Economies”. World Development vol. 34, n. 5. Elsevier, 2006. p. 884-898.
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que historicamente foram enfraquecidos (tanto por um estatismo como por um privatismo exagerado) e que devem ter direito de conhecer e discutir as normas, tais como são concretizadas pela Administração Fiscal. Transparência na aplicação das leis e clareza acerca do posicionamento de instituições (como a Receita Federal do Brasil, Secretarias da Fazenda e Receitas Estaduais) é a chave para uma participação efetiva da sociedade civil em questões referentes à tributação. Observe-se que este tema, cada vez mais, alcança posição central em diversas disciplinas; está, por exemplo, na pauta da discussão sobre governança coorporativa, accountability, atuação de organizações não governamentais e empresas sociais. Braithwaite está ciente dos muitos obstáculos práticos para a realização do ideal regulatório proposto. É certo que redes, em países periféricos, estão mais orientadas em manter o poder de grandes corporações ou de oligarquias locais do que em realizar avanços democráticos. Pergunta-se, então: “como atores estatais ou organizações sociais que atuam em defesa de direitos humanos ou da institucionalização de processos democráticos podem agir em circunstâncias em que redes favorecem a manutenção de desigualdades econômicas e políticas?”. Braithwaite responde: agindo em rede. Atores fracos podem se fortalecer ao se conectarem com outros atores fracos. Ainda, os interesses dos mais fortes não são monolíticos. Os mais fracos podem utilizar o poder de um ator forte contra outro ator forte: por exemplo, organizações sociais voltadas à proteção do meio ambiente e dos direitos humanos podem atuar junto com a União Europeia contra os Estados Unidos ou contra grandes corporações; ou, em um caso diferente, interesses norte-americanos podem ser mobilizados, por meio da influência daquelas organizações sociais, contra a União Europeia.38 Em 2011, a EMPRESA K foi cientificada 2. ESTUDO DE CASO: MANIPULAÇÃO de Auto de Infração para cobrança de ICMSDA LEGALIDADE PELO DESAPEGO -Comunicação sobre a veiculação de material AO CONTEXTO HISTÓRICO DOS publicitário em suas páginas eletrônicas. PRÓPRIOS ATOS DE APLICAÇÃO DO DIREITO E USO CRIATIVO DA A sucinta motivação do Auto de Infração LINGUAGEM DAS NORMAS limitou-se à alegação de que as receitas auferidas pela Empresa em decorrência da divulgação de propaganda em suas páginas eletrônicas estariam sujeitas ao ICMS38
38. BRAITHWAITE, John; AYRES, Ian. “Tripartism: Regulatory Capture and Empowerment”. Law & Social Inquiry, vol. 16, n. 3 (Summer, 1991), p. 435-496 e BRAITHWAITE, John. “Responsive Regulation and Developing Economies”. World Development vol. 34, n. 5. Elsevier, 2006. p. 884-898.
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-Comunicação nos termos do art. 1.o, III, e 2o, XI, ambos do Regulamento do ICMS de São Paulo, aprovado pelo Decreto 45.490 de 30.11.2000 (“RICMS/SP”): Art. 1.º O Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) incide sobre (Lei 6.374/1989, art. 1.º, na redação da Lei 10.619/2000, art. 1.º, I): (...) III – prestação onerosa de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza; (...) Art. 2.º Ocorre o fato gerador do imposto (Lei 6.374/1989, art. 2.º, na redação da Lei 10.619/2000, art. 1.º, II, e Lei Complementar federal 87/1996, art. 12, XII, na redação da Lei Complementar 102/2000, art. 1.º): (...) XII – na prestação onerosa de serviços de comunicação feita por qualquer meio, inclusive na geração, emissão, recepção, transmissão, retransmissão, repetição e ampliação de comunicação de qualquer natureza;
É interessante notar que a redação da legislação paulista coincide perfeitamente com a redação do art. 2o, III, da LC 87, de 13.09.1996 (“LC 87/1996”), a qual foi editada em substituição ao Convênio ICM 66, promulgado em 16.12.1988 (“Convênio 66/88”), logo após a Constituição Federal de 1988, em atendimento ao disposto no art. 34, § 8.o, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“ADCT”). Mesmo há tanto tempo no sistema, essa norma passou a ser aplicada pelo Fisco Estadual, no que se refere à veiculação de material publicitário na Internet, somente no ano de 2011. A exemplo disso, mesmo tendo sido fiscalizada desde sua constituição (ou seja, há pelo menos 15 anos), a EMPRESA K nunca foi autuada ou orientada a pagar o ICMS-Comunicação sobre as receitas decorrentes de veiculação de propaganda. Contudo, no ano de 2011, recebeu autuação dos anos de 2008 e 2009, no valor de cerca de 1 bilhão de reais. O valor do Auto de Infração corresponde, por curiosidade, a pouco mais que o lucro líquido da EMPRESA K nestes mesmos anos. Ressalte-se que o valor do ICMS-Comunicação cobrado no Auto de Infração não foi repassado nas faturas enviadas aos contratantes da Empresa para veiculação de suas propagandas, dada a falta de clareza da legislação aliada à omissão do Fisco em oferecer critérios de interpretação. Além disso, o valor do
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ICMS-Comunicação pago pela aquisição das redes de telecomunicação também não foi registrado como crédito a ser legitimamente deduzido do ICMS-Comunicação incidente nos termos da autuação. Paradoxalmente, o problema central da 2.1. Problema Central do Caso: falta incidência do Imposto sobre Operações Relade comunicação clara sobre (i) o uso tivas à Circulação de Mercadorias e Serviços de do vocábulo “comunicação” e (ii) as Transporte Interestadual, Intermunicipal e de origens e armadilhas que envolvem a Comunicação (“ICMS”) nesta última modalifalta de comunicação dade (“ICMS-Comunicação”) é um problema de “comunicação”. Mais precisamente a falta de consciência sobre a imprestabilidade do vocábulo “comunicação” como diretivo ou objeto de conduta prescritiva, e o decorrente abuso na interpretação do amplo significado e das possibilidades que esse termo oferece. É essencial compreender os seis elementos da comunicação, muito bem descritos pelo linguista Roman Jakobson:39 Elementos Subjetivos: Emissor – o que emite a mensagem. Receptor – o que recebe a mensagem. Elementos Formais: Código – a combinação de signos utilizados na transmissão de uma mensagem. A comunicação só se concretizará se o receptor souber decodificar a mensagem. Canal de Comunicação – por onde a mensagem é transmitida: infraestrutura de comunicação. Elementos Materiais: Contexto – a situação a que a mensagem se refere, também chamado de referente. Mensagem – o conjunto de informações transmitidas. Ruído40 – qualquer perturbação na comunicação.
39. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix. 40. Não é tratado por Roman Jakobson como elemento da comunicação, mas é considerado na compreensão dos problemas que envolvem as chamadas afasias ou falhas na comunicação.
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Em primeiro lugar, é importantíssimo entender que o sentido da palavra “comunicação” é amplo e vago. Pode-se entender comunicação em pelo menos duas acepções que aqui nos interessam: (i) “comunicação” como o processo ou infraestrutura – elementos formais que garantem as condições técnicas de comunicação e (ii) “comunicação” como mensagem ou conteúdo daquilo que se comunica (um dos elementos materiais). Explorando tal ambiguidade poderia se dizer que a “comunicação” (canal físico + código) viabiliza a transmissão da “comunicação” (mensagem + contexto), garantindo a efetiva realização da “comunicação” (produto = resultado). Estamos, pois, diante de, ao menos, dois sentidos do vocábulo “comunicação”, que produzem inevitável ruído na interpretação da regra de competência constitucional (art. 155, II, da CF/1988). Perante esse esquema analítico, fica claro que quase tudo é comunicação. Daí o primeiro axioma da comunicação (ao todo são quatro) exposto por Watzlawick, Beavin e Jackson no clássico livro Pragmática da comunicação humana:41 é impossível não comunicar. A simples presença de uma pessoa modifica o comportamento do outro, sem a mínima troca de palavras. Basta a presença do outro para modificar seu comportamento, e impossível fugir desta comunicação. Neste sentido, qualquer comportamento é igual a comunicação! Eis o problema gerado pelo uso indiscriminado do termo “comunicação”. O ICMS-Comunicação, como herdeiro do imposto federal sobre comunicações, sempre incidiu sobre os “Elementos Formais” da comunicação (canal de comunicação + código), que envolvem a infraestrutura técnica necessária para a comunicação. Contudo, os Estados pretendem exercer sua competência além dos limites constitucionais, sujeitando apenas o conteúdo à incidência do ICMS-Comunicação: a mensagem veiculada = “comunicação” como conteúdo que trafega no canal físico. Ou seja, o Estado já tributa a “comunicação” canal físico e pretende, agora, mediante o Auto de Infração objeto do presente caso, tributar o conteúdo comunicado através dos canais de infraestrutura de comunicação.
2.2. É Impossível não se comunicar
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41. WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet Helmick; JACKSON, Don D. Pragmática da comunicação humana. São Paulo: Cultrix, 1993, p. 44.
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Matriz tridimensional da legalida3. MATRIZ TRIDIMENSIONAL DA de: contexto, ato e sentido normativo, LEGALIDADE E PERCURSO FÁCTICOnessa ordem. Primeiro o contexto, pois -NARRATIVO DA TRIBUTAÇÃO DOS a própria existência do fato produtor da SERVIÇOS DE PUBLICIDADE. LEGALIDADE norma (trâmites legislativos) depende 1 (ANTES DA CF/1988): PODER MILITAR de fatos que lhe são anteriores: (i) os E A UNIÃO FORTALECIDA; LEGALIDADE 2 fatos sociais, econômicos e políticos (APÓS A CF/1988): TRANSFERÊNCIA DA que demandaram a produção da norma, COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA TRIBUTAR e o próprio contexto histórico, legal e TRANSPORTES E COMUNICAÇÃO AOS jurídico do momento do ato produtor, ESTADOS; LEGALIDADE 3 (LC 87/1996): que informa e motiva a elaboração do CONFIRMAÇÃO LEGAL; LEGALIDADE 4 enunciado (Constituição, lei ou ato ad(EC 3, EC 33 E EC 42): A CONFIRMAÇÃO ministrativo). Segundo, o ato de enunCONSTITUCIONAL; LEGALIDADE 5 (DECISÃO ciação42 mediante o qual se realiza o STJ/SÚMULA 334) E A “TENTATIVA: fato jurídico, que é fonte material da PARTE I”: CONFIRMAÇÃO JURISDICIONAL; produção da norma: (ii) atos materiais LEGALIDADE 6 (LC 116): A “TENTATIVA de produção do direito (ato do poder PARTE II” E LEGALIDADE 7 (PROJETOS DE constituinte, ato legislativo, ato admiLC 208/2001 E 230/2004): FACTICIDADE DE nistrativo e ato jurisdicional), em que PROCESSO LEGISLATIVO EM CURSO PARA a existência de contexto anterior e a inRETORNAR A VEICULAÇÃO DA PUBLICIDADE terpretação de textos normativos são NA LISTA DE SERVIÇOS DA LC 116 pressupostos. Terceiro – sentido normativo –, interpretante (sujeito que interpreta) que, inserido no contexto histórico de realização do ato normativo, concebe o sentido normativo: (iii) significados da norma, da lei e do sistema legal devidamente situados no tempo histórico e no espaço social (sentido paradigmático das normas constitucionais e legais, e dos atos administrativos e jurisdicionais). É o direito se realizando, rente à realidade. Por isso, não se podem entender as normas sem entender os fatos e contextos que situam e constituem o direito. Aqui se encontram Direito, Economia e Realidade não como formas metafísicas da interdisciplinaridade, mas como formas concretas de relacionamento do espaço factual que se forma e conforma o relacionamento do direito com todas as disciplinas que representam e constituem aqui o que chamamos de realidade.
42. “A existência de um enunciado pressupõe a execução de um ato que coloca a língua em funcionamento. Ao ato mesmo de produção de enunciados chama-se enunciação.” MOUSSALLEM, Tárek M. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 107.
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Aliás, foi sob a análise desse processo narrativo e dialético, entre contexto, ato e sentido normativo, que o Supremo Tribunal Federal (“STF”) restringiu a competência para instituição do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (“IPVA”) sobre aeronaves. Sob o voto condutor do Min. Gilmar Mendes,43 firmou-se o entendimento de que, pelo fato de o IPVA ter sucedido a Taxa Rodoviária Única, as embarcações e as aeronaves não estavam comportadas na expressão “veículo automotor”, rememorando os julgamentos dos Recursos Extraordinários 134.509 e 255.111. No mesmo sentido, constata-se que o ICMS-Comunicação é herança do Imposto Único sobre Telecomunicações (“ISC”), em que o termo “comunicação” abrangia tão somente os serviços de telefonia, televisão e radiodifusão, regulados pela Lei 4.117, de 27.08.1962 (“Código Brasileiro de Telecomunicações”), recepcionada pela CF/1988. A dúvida sobre a relevância desses fatos sociais, econômicos e políticos na mens legis do ato de criação do direito (ou na “intenção” do legislador) não pode obscurecer a importância deles no mundo jurídico: foi a eficácia legal, jurídica e social da Legalidade 1 (antes da CF/1988, em que estava concentrada na União a tributação sobre telefonia, televisão e radiodifusão) que induziu a Constituinte à Legalidade 2 (após a CF/1988), transferindo aquele imposto federal – incidente sobre telecomunicações – aos Estados. Foi essa situação que gerou a necessidade da regulamentação do ICMS por lei complementar, instaurando-se a Legalidade 3 pela edição da LC 87/1996. Foi a eficácia legal da LC 87/1996 e o convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária (“Confaz”) tendente a tributar a radiodifusão do ICMS-Comunicação que levaram o Congresso Nacional a obstar essa pretensão mediante a criação de imunidade específica. Assim, mediante a EC 42, de 19.12.2003 (EC 42), instaurou-se a Legalidade 4, circunstância que induziu os Estados à tentativa de tributar os provedores de acesso à Internet, motivando a Legalidade 5, estabelecida pela Súmula 334 do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”). Os julgados que deram origem a tal Súmula confirmaram a premissa maior (ratio decidendi) de que o conceito de “comunicação” para efeitos de incidência do ICMS-Comunicação é direcionado pelo Código Brasileiro de Telecomunicações [sucedido pela Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472, de 16.07.1997)].
43. Recurso Extraordinário 379.572. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/ jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28379572%2ENUME%2E+OU+37 9572%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/bwn4rdf. Acesso em 14.03.2014.
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Paralelamente, foi aprovada pelo Congresso Nacional a LC 116, de 31.07.2003 (“LC 116”), que originariamente incluía o item 17.07 na lista de serviços. Esse item previa genericamente a veiculação de propaganda como serviço sujeito ao Imposto sobre Serviços (“ISS”), mas foi vetado pelo Presidente da República sob a alegação de que era inconstitucional, pois afetava a imunidade dos periódicos. Mitigada a zona de incidência por veto presidencial, a atual LC 116 retrata a Legalidade 6, que induziu a criação de projetos de leis complementares específicas para restaurar a incidência da tributação municipal sobre provedores de acesso e veiculação de publicidade, indicativas da Legalidade 7. Simultaneamente, a Legalidade 6 deu azo à tese fazendária no sentido de “cavar” nova competência para os Estados mediante criativa interpretação, que silenciosamente invade a sombra do aludido veto para exigir ICMS-Comunicação sobre a veiculação de material publicitário na Internet. O direito intervém no comportamento 3.1. Contextos Histórico e dos agentes econômicos, assim como também Econômico Pré-Constituinte de o comportamento desses agentes (induzidos 1988: crescimento exponencial do pelo direito) serve de motivação (fonte matesetor de serviços, descentralização rial) para alterar o próprio direito: esta dialética e negociação com os Estados para entre fato social e produção normativa é patente a transferência do Imposto Federal no presente caso, e decorre do fortalecimento sobre Comunicações (ISC), incidente do setor de serviços do nosso País. sobre serviços de telecomunicações É notório o crescimento exponencial do Setor de Serviços (terceiro setor) e o forte lobby dos Estados, especialmente de São Paulo, na Constituinte de 1988, para deslocar as mais rentáveis áreas desse setor para a competência estadual, acrescentando o “S” e estendendo o então ICM aos serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação. Recente Estudo do44 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra atualmente que o Setor de Serviços representa 2/3 do emprego urbano. Pode-se verificar que entre 1971 e 2007, a expansão do setor de serviços ocupou proporção maior na composição do PIB brasileiro.45
44. MELO, Hildete et al. O setor de serviços no Brasil: uma visão global, Texto para Discussão n. 549. 45. Setor de serviços e sua interação com a indústria: uma análise para a Região Sudeste pós-Plano Real. Estudo da SEP – Sociedade Brasileira de Política Econômica: http://sep.org.br/artigo/4_congresso/1453_36f7dcf9ceb20b92423cec2789fea796.pdf
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Tal situação tende, naturalmente, a deteriorar a base impositiva do ICMS46 e a aumentar a base tributável do ISS, o que induz o Estado a invadir a competência tributária municipal – em vez de aumentar suas alíquotas mediante lei – para manter crescente sua arrecadação. É o problema ético da ofuscação ou ilusão47 tributária: modus operandi em que o Governo pressiona a Administração Tributária para arrecadar mais e o Fisco, então, alarga sua área de competência impositiva, cavando Autos de Infração e omitindo-se do debate democrático sobre o aumento da carga tributária pelo oneração de novas hipóteses de incidência e da negociação política perante os Municípios. O setor de serviços tem importância fundamental para os países em desenvolvimento. Nas economias avançadas, 2/3 do valor adicionado e do emprego decorre do setor de serviços.48 Esse fato econômico, crescente nos últimos anos, fez com que a base tributária dos Municípios naturalmente aumentasse, em detrimento da base tributária dos Estados. Na qualidade de fonte material, esse fato poderia ensejar ato de produção legislativa para revisão da distribuição das competências constitucionais tributárias. Contudo, não pode motivar a atuação arbitrária do Fisco Estadual que, mediante interpretação criativa da legislação vigente, pretende usurpar competências municipais e alargar sua competência para tributar serviços de comunicação. 3.2. Legalidade 1 (antes da CF/1988). Poder Militar e a União Fortalecida: competência federal para tributar serviços de telecomunicações (telefonia, televisão e radiodifusão)
Antes da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (“CF/1988”), sob a vigência da Constituição de 1967 (“CF/1967”), não cabia ao Estado tributar quaisquer serviços de comunicação ou veiculação de publicidade: o imposto sobre serviços de telecomunicações
46. VITO TANZI, no referendado artigo Globalization, Technological Developments, and the Work of Fiscal Termites, IMF Working Paper 00/181, demarcou como desenvolvimento tecnológico e a globalização vêm provocando inevitáveis fissuras (cupins) nas tradicionais bases tributárias dos países da OCDE: na renda (deslocamento das companhias para países de tributação reduzida), na folha de salários (automação e terceirização) e na parte do IVA sobre bens corpóreos (deslocamento da atividade econômica para o setor de serviços). 47. Conforme Tino Sanandaji (University of Chicago) e Björn Wallace (Stockholm School of Economics) no artigo Illusion and Fiscal Obfuscation: An Empirical Study of Tax Perception in Sweden. 48. Conforme HIPP, C. et al. The incidence and effects of innovation in services: evidence from Germany. International Journal of Innovation Management, vol. 4, n. 4, p. 471-453, Dec. 2000.
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competia à União e o imposto sobre veiculação de propaganda, aos Municípios. Em conformidade à CF/1967, cabia à União tributar a “comunicação” mediante o Imposto Único sobre Serviços de Transportes e de Comunicações (“ISC”): Art. 22. Compete à União instituir imposto sobre: (...). VII – serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza estritamente municipal;
No plano da lei complementar, o art. 68 do CTN prescrevia as seguintes normas gerais sobre o ISC: SEÇÃO V Imposto sobre Serviços de Transportes e Comunicações Art. 68. O imposto, de competência da União, sobre serviços de transportes e comunicações tem como fato gerador: (...) II – a prestação do serviço de comunicações, assim se entendendo a transmissão e o recebimento, por qualquer processo, de mensagens escritas, faladas ou visuais, salvo quando os pontos de transmissão e de recebimento se situem no território de um mesmo Município e a mensagem em curso não possa ser captada fora desse território.
No plano da doutrina, Aliomar Baleeiro,49 em seus comentários ao Código Tributário Nacional, pontifica: (...) Igualmente não há restrição outra em relação ao imposto sobre comunicações senão as de que estão excluídas as intramunicipais. Quaisquer outras que importem em transmitir ou receber mensagens por qualquer processo técnico de emissão de sons, imagens ou sinais, papéis etc., estão sob o alcance do imposto federal, desde que constituam prestação remunerada de serviços. Da columbofilia à TV. Dos serviços pneumáticos às emissões de frequência modulada para fundo musical.
No plano legal, o Executivo Federal, ao estilo do general João Batista Figueiredo, instituiu o ISC pelo Dec.-lei 2.186, de 20.12.1984 (“DL 2.186/1984”), prevendo como hipótese de incidência a telecomunicação:
49. In: Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 258-259.
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Art. 1.º O Imposto sobre Serviços de Comunicações tem como fato gerador a prestação de serviço de telecomunicações destinadas ao uso público (art. 6.º, a e b, da Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962). Parágrafo único. São isentos do imposto os serviços de telecomunicações nas seguintes modalidades: I – telefonia quando prestados: (...) II – televisão e radiodifusão sonora. Art. 2.º A alíquota do imposto é de 25% (vinte e cinco por cento). Art. 3.º Contribuinte do imposto é o prestador do serviço. Art. 4.º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço. § 1.º O preço do serviço será representado pela quantia total paga pelo usuário ao prestador do serviço. § 2.º O montante do imposto integra a base de cálculo de que trata este artigo.
Todos os dispositivos acima citados indicam que a competência federal para tributar serviços de “comunicações”, originariamente, referia-se à infraestrutura de telecomunicações: telefonia, televisão e radiodifusão. 3.3. Legalidade 2 (após a CF/1988): transferência, para os Estados, da competência da União para tributar serviços de transportes e comunicações
Com o fim do período militar, o Poder Constituinte ocupou-se, naturalmente, em se contrapor aos quase 20 anos de tendências centralizadoras da União, mediante a descentralização e o fortalecimento dos Estados. Não por acaso, o objeto da disputa dos Estados foi o promissor setor das telecomunicações, até então gerador de relevante aporte de receitas para a União: surgiu o “S” relativo a serviço de comunicação do novo ICMS. A competência dos Estados e do Distrito Federal para cobrar o ICMS-Comunicação foi prescrita pelo art. 155 da CF/1988: Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (...) § 3.º À exceção dos impostos de que tratam o inciso I, b, do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro tributo incidirá sobre operações relativas a energia elétrica, combustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes e minerais do País.
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Diante da autorização constitucional, os Estados e o Distrito Federal agregaram à base tributária do Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias (“ICM”) os Serviços de Transporte Intermunicipal e Interestadual e de Comunicação (“ICMS”). Cinco anos após a promulgação da CF/1988, a EC 3/1993 (“EC 3”), ao mesmo tempo que criou a competência derivada para a União instituir o controvertido Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (“IPMF”), introduziu pontual alteração no § 3.º do art. 155, em direta metalinguagem normativa ao sentido de “serviços de comunicação” previsto no art. 155, II: § 3.º À exceção dos impostos de que tratam o inciso I, b, do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro tributo incidirá sobre operações relativas a energia elétrica, combustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes e minerais do País. (Redação Original) § 3.º À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro tributo poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País. (Redação dada pela EC 3/1993)
Dizemos que tal alteração foi feita em direta metalinguagem normativa ao sentido de “serviços de comunicação” porque o legislador, ao interpretar a competência estadual prevista no art. 155, II, da CF/1988, o fez restritivamente, de forma a precisar que o ICMS-Comunicação seria o único tributo a incidir sobre os serviços de telecomunicação. No plano vertical do processo de positivação da competência para instituição do ICMS-Comunicação, foi editado o Convênio 66/1988, que definiu as novas feições do ICMS, na forma do art. 34, § 8.º, do ADCT e da LC 24, de 07.01.1975 (“LC 24/1975”). O art. 2.o do referido Convênio previa que: Art. 2.º Ocorre o fato gerador do imposto: X – na geração, emissão, transmissão, retransmissão, repetição, ampliação ou recepção de comunicação de qualquer natureza, por qualquer processo, ainda que iniciada ou prestada no exterior.
Note-se que tal dispositivo confirma a ideia do fato gerador como o funcionamento da estrutura (código e canal físico) que possibilita a comunicação (“ocorre o fato gerador”), em consonância com a legislação em vigor à época, especialmente o Glossário de Termos Técnicos Anexo
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ao Decreto 97.057, de 10.11.1988 (Regulamento Geral da Lei 4.117, de 27.08.1962 – Código Brasileiro de Telecomunicações): Emissão é produção de sinais de telecomunicação em ponto capaz de propiciar sua transmissão através de qualquer meio exterior a uma estação de telecomunicação; Transmissão é transferência unilateral de informação de um ponto a outro por meio de sinais; e Recepção é a entrada de sinais de telecomunicação em qualquer sistema, rede, equipamento, estágio ou dispositivo, para decodificação imediata ou posterior.
Ou seja, até então não se cogitava tributar nada além das telecomunicações, tal qual regulado pelo Código Brasileiro de Telecomunicações vigente à época: para tanto, basta substituir os vocábulos que definem o fato gerador do ICMS-Comunicação no Convênio 66/1988 (depois literalmente reproduzido na LC 87/1996) pela definição dos mesmos termos (“emissão”, “transmissão” e “recepção”) do Regulamento da Lei Geral de Telecomunicações. 3.4. Legalidade 3 (LC 87/1996): confirmação legal de que o ICMS-Comunicação restringe-se aos serviços de telecomunicações, em conformidade com o Código Brasileiro de Telecomunicações e a Lei Geral de Telecomunicações
O art. 2.° da LC 87, de 13.09.1996, estabeleceu normas gerais definitivas quanto ao ICMS e afastou a aplicação transitória do Convênio 66/1988, definindo, denotativamente, o fato gerador do ICMS-Comunicação:
Art. 2.º O imposto incide sobre: (...) III – prestações onerosas de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza;
Após a CF/1988, verifica-se completo alinhamento entre a LC 87/1996, a materialidade do antigo imposto sobre comunicações federal (ISC) e o art. 68 do CTN, sem qualquer alteração da competência tributária dos Municípios. Em conformidade com o Código Brasileiro de Telecomunicações, o Regulamento do ICMS do Distrito Federal – Decreto 18.955, de 22.12.1997, editado logo em seguida à LC 87/1996, confirmou a vocação do ICMS-Comunicação orientado às telecomunicações:
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Art. 2.º (...) § 2.º Entende-se por prestação onerosa de serviços de comunicação o ato de colocar à disposição de terceiro, em caráter negocial, quaisquer meios e modos aptos e necessários à geração, à emissão, à recepção, à transmissão, à retransmissão, à repetição, à ampliação e à transferência unilateral ou bilateral de mensagens, símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza. § 3.º Incluem-se entre os serviços de comunicação tributáveis pelo imposto, os serviços de: I – telecomunicações (Lei 9.472, de 16 de julho de 1997); II – radiodifusão sonora e de sons e imagens, relativamente à veiculação de mensagens de terceiros (Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962); III – telegrama (Lei 6.538, de 22 de junho de 1979).
Com a edição da LC 87/1996, toda sedimentação legislativa é uníssona no sentido de confirmar a transferência da materialidade do imposto sobre comunicações federal (ISC) para os Estados: a transferência do “S-Comunicações” pactuada no contexto político da constituinte restringe a competência impositiva dos Estados às atividades de telecomunicações, reguladas pela União, restando intacta a competência municipal para tributar a veiculação de publicidade (item 86 da lista de serviços da LC 56/1987). No âmbito da CF/1988 e da LC 87/1996 3.5. Legalidade 4 (EC 3, EC 33 e EC (Legalidades 2 e 3) era permitida a tributação 42): a confirmação constitucional. do serviço de radiodifusão, juridicamente deImunidade sobre os serviços gratuitos finido como espécie de telecomunicação pelo de radiodifusão Regulamento Geral do Código Brasileiro de Telecomunicações, Decreto 52.026, de 20.05.1963, alterado pelo Decreto 97.057, de 10.11.1988: Art. 6.º Para os efeitos deste Regulamento Geral, dos Regulamentos Específicos e das normas complementares, os termos adiante enumerados têm o seguinte significado: (...) § 3.º Serviço de Radiodifusão: modalidade de serviço de telecomunicações destinado à transmissão, de sons (radiodifusão de sons, radiofonia, ou radiodifusão sonora) ou de sons e imagens (radiodifusão de sons e imagens, radiotelevisão, ou radiodifusão de televisão), por ondas radioelétricas, para serem direta e livremente recebidos pelo público em geral;
Partindo de estudos produzidos no âmbito da Comissão Técnica Permanente do ICMS – Cotepe/ICMS, órgão de assessoramento do Con-
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faz composto de funcionários de carreira dos Estados, experts em matéria tributária, formalizou-se entendimento defendendo a tributação do serviço de radiodifusão, com o benefício fiscal de redução de base de cálculo, conforme Convênios ICMS 5/1995 e 80/2000: CONVÊNIO ICMS 5/1995 Autoriza os Estados e o Distrito Federal a conceder redução da base de cálculo do ICMS nas prestações de serviço de radiodifusão sonora e/ou de imagens e de televisão por assinatura. O Ministro de Estado da Fazenda e os Secretários de Fazenda, Economia, Finanças e Tributação dos Estados e do Distrito Federal, na 77.ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Política Fazendária, realizada em Brasília, DF, no dia 4 de abril de 1995, tendo em vista o disposto na Lei Complementar 24, de 7 de janeiro de 1975, resolvem celebrar o seguinte Cláusula primeira: Ficam os Estados e o Distrito Federal autorizados a conceder redução da base de cálculo do ICMS de tal forma que a incidência do imposto resulte no percentual de no mínimo 5% (cinco por cento), na prestação de serviço de radiodifusão sonora e/ou de imagens e de televisão por assinatura. Cláusula segunda: A redução da base de cálculo será aplicada, opcionalmente, pelo contribuinte, em substituição ao sistema de tributação previsto na legislação estadual. Parágrafo único – O contribuinte que optar pelo benefício previsto na cláusula anterior não poderá utilizar créditos fiscais relativos a entradas tributadas. Cláusula terceira: Na determinação da base de cálculo dos serviços de difusão sonora e de imagens, prestados através de contratos de veiculação em rede nacional ou regional, adotar-se-á a proporcionalidade em relação à população de cada Estado, de acordo com o último recenseamento do IBGE. Cláusula quarta: Este Convênio entra em vigor na data da publicação de sua ratificação nacional. CONVÊNIO ICMS 80/2000 Autoriza o Distrito Federal a conceder isenção[45] e remissão do ICMS incidente na veiculação onerosa de mensagens de terceiros por empresas de radiodifusão de sons e imagens. O Ministro de Estado da Fazenda, os Secretários de Fazenda, Finanças ou Tributação e o Gerente de Receita dos Estados e do Distrito Federal, na 100.ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Política Fazendária, realizada em Teresina, PI, no dia 15 de dezembro de 2000, tendo em vista o disposto na Lei Complementar 24, de 7 de janeiro de 1975, resolvem celebrar o seguinte: Cláusula primeira: Fica o Distrito Federal autorizado a conceder remissão do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS,
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lançado ou não, incidente na veiculação onerosa de mensagens de terceiros por empresas de radiodifusão de sons e imagens, prestados até o dia anterior ao da vigência deste convênio. § 1.º A remissão de que trata o caput desta cláusula não implica restituição de créditos fiscais extintos. § 2.º A remissão de débitos ajuizados fica condicionada ao pagamento pelo interessado dos honorários e custas pertinentes. Cláusula segunda: Este convênio entra em vigor na data da publicação de sua ratificação nacional.
Nesse contexto histórico e legal surgiu a EC 33/2001, que, reiterando a redação anterior dada ao § 3o do art. 155 pela EC 3, novamente expressa a privatividade da competência do ICMS-Comunicação para tributar os “serviços de telecomunicações”: Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (...) § 3.º À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País. (Redação dada pela EC 33/2001)
Foi sobre esse cenário criado pela EC 3, pela EC 33 e pelo Confaz que, mediante pressão legítima e democrática orquestrada por parte das concessionárias, foi editada a EC 42/2003 (“EC 42”), modificando a competência original do ICMS-Comunicação e determinando a imunidade dos serviços de radiodifusão gratuita: Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (...) § 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (...) X – não incidirá: (...)
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d) nas prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita; (Incluído pela EC 42, de 19.12.2003)
Não há sentido em afirmar que a EC 42 acrescentou qualquer sentido ao ICMS-Comunicação. Muito pelo contrário, a EC 42 tão só afirmou sobre o que o ICMS-Comunicação não poderia incidir, outorgando imunidade a esses serviços mediante simples limitação da competência tributária dos Estados. As regras de imunidade, sempre previstas em nível constitucional (haja vista sua função de atuar negativamente sobre os limites da competência tributária dos entes federativos), não têm a capacidade de denotar a extensão, por semelhança, da base de incidência dos tributos: seu único objetivo é impedir o exercício legal do poder tributário dos entes federativos sobre específicos fatos geradores ou específicas atividades ou pessoas. Sob outra vertente, podemos notar que a EC 42, ao limitar a competência dos Estados, considerou serviços que são espécies de serviços de telecomunicação (radiofusão sonora e de sons e imagens de recepção livre, ou seja, rádio e televisão aberta), agora sim em perfeito alinhamento à materialidade do ISC (antes da CF/1988), ao art. 155, II, da CF/1988, à nova referência a “serviços de telecomunicações” introduzida pela EC 3 ao § 3.º do art. 155, (ratificada pela EC 33) e em perfeita linha com o Convênio 66/1988 e a LC 87/1996. 3.6. Legalidade 5 (Decisão STJ/ Súmula 334), a “Tentativa Parte I” e a Confirmação Jurisdicional: o ICMS-Comunicação incide sobre telecomunicações, sendo defeso ao Fisco alargar sua competência impositiva mediante mera interpretação, sem inovação legislativa que coloque em pauta o debate político pertinente
Em aberta guerra fiscal aos Municípios, a partir de 2001 o Confaz editou os Convênios ICMS 78/2001, ICMS 50/2003, ICMS 79/2003 e ICMS 139/2001, propondo redução da base de cálculo do ICMS-Comunicação incidente nas prestações onerosas de serviço de comunicação, na modalidade acesso à Internet, de forma que a carga tributária fosse equivalente a 5% do valor da prestação... Justamente a alíquota paradigmática do ISS dos Municípios. A Ementa dos Embargos de Divergência em Recurso Especial (“EResp”) 456.650/PR, decididos contrariamente ao Fisco (Embargante), resume bem o final dessa pretensão dos Estados: TRIBUTÁRIO. SERVIÇO PRESTADO PELOS PROVEDORES DE ACESSO À INTERNET. ARTS. 155, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, E 2.º, II, DA LC 87/1996. SERVIÇO DE VALOR ADICIONADO. ART. 61 DA LEI 9.472/1997 (LEI GERAL DE TELECOMUNI-
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CAÇÕES). NORMA 4/1995 DO MINISTÉRIO DAS COMUNICAÇÕES. PROPOSTA DE REGULAMENTO PARA O USO DE SERVIÇOS E REDES DE TELECOMUNICAÇÕES NO ACESSO A SERVIÇOS INTERNET, DA ANATEL. Art. 21, XI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO INCIDÊNCIA DE ICMS. (...). Segundo informações da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel, “a Internet é um conjunto de redes e computadores que se interligam em nível mundial, por meio de redes e serviços de telecomunicações, utilizando no seu processo de comunicação protocolos padronizados. Os usuários têm acesso ao ambiente Internet por meio de Provedores de Acesso a Serviços Internet. O acesso aos provedores pode se dar utilizando serviços de telecomunicações dedicados a esse fim ou fazendo uso de outros serviços de telecomunicações, como o Serviço Telefônico Fixo Comutado” (“Acesso a Serviços Internet”, Resultado da Consulta Pública 372 – Anatel). A Proposta de Regulamento para o Uso de Serviços e Redes de Telecomunicações no Acesso a Serviços Internet, da Anatel, define, em seu art. 4.º, como Provedor de Acesso a Serviços Internet – PASI, “o conjunto de atividades que permite, dentre outras utilidades, a autenticação ou reconhecimento de um usuário para acesso a Serviços Internet”. Em seu art. 6.º determina, ainda, que “o Provimento de Acesso a Serviços Internet não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor e seus clientes como usuários dos serviços de telecomunicações que lhe dá suporte”. Por outro lado, a Lei Federal 9.472/1997, denominada Lei Geral de Telecomunicações – LGT, no § 1.º de seu art. 61, dispõe que o serviço de valor adicionado “não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição”. O caput do mencionado artigo define o referido serviço como “a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.” O serviço prestado pelo provedor de acesso à Internet não se caracteriza como serviço de telecomunicação, porque não necessita de autorização, permissão ou concessão da União, conforme determina o art. 21, XI, da Constituição Federal. Não oferece, tampouco, prestações onerosas de serviços de comunicação (art. 2.º, III, da LC 87/1996), de forma a incidir o ICMS, porque não fornece as condições e meios para que a comunicação ocorra, sendo um simples usuário dos serviços prestados pelas empresas de telecomunicações. (...). Nessa vereda, o insigne Ministro Peçanha Martins, ao proferir voto-vista no julgamento do recurso especial embargado, sustentou que a provedoria via Internet é serviço de valor adicionado, pois “acrescenta informações através das telecomunicações. A chamada comunicação eletrônica, entre computadores, somente ocorre através das chamadas linhas telefônicas de qualquer natureza, ou seja, a cabo ou via satélite. Sem a via telefônica impossível obter acesso à Internet. Cuida-se, pois, de um serviço adicionado às telecomunicações, como definiu o legislador. O provedor é usuário do serviço de telecomunicações. Assim o diz a lei.” Conclui-se, portanto, que, nos termos do art. 110 do CTN, não podem os Estados ou o Distrito Federal alterar a definição, o conteúdo e o alcance do conceito de
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prestação de serviços de conexão à Internet, para, mediante Convênios Estaduais, tributá-la por meio do ICMS. Como a prestação de serviços de conexão à Internet não cuida de prestação onerosa de serviços de comunicação ou de serviços de telecomunicação, mas de serviços de valor adicionado, em face dos princípios da legalidade e da tipicidade fechada, inerentes ao ramo do direito tributário, deve ser afastada a aplicação do ICMS pela inexistência na espécie do fato imponível. Segundo salientou a douta Ministra Eliana Calmon, quando do julgamento do recurso especial ora embargado, “independentemente de haver entre o usuário e o provedor ato negocial, a tipicidade fechada do Direito Tributário não permite a incidência do ICMS”. Embargos de divergência improvidos.
Merecem destaque as razões de decidir que constituem a PREMISSA MAIOR (ratio decidendi) do julgado: “o serviço que não for prestado de forma onerosa e que não for considerado pela legislação pertinente como serviço de comunicação não pode sofrer a incidência de ICMS, em respeito ao princípio da estrita legalidade tributária”. OU SEJA, O STJ RESGATA A ORIGEM DO ICMS-COMUNICAÇÃO NA CONSTITUINTE DE 1988, LIMITANDO SUA INCIDÊNCIA AOS SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES: (...) o serviço que não for prestado de forma onerosa e que não for considerado pela legislação pertinente como serviço de comunicação não pode sofrer a incidência de ICMS, em respeito ao princípio da estrita legalidade tributária. (...) A Proposta de Regulamento para o Uso de Serviços e Redes de Telecomunicações no Acesso a Serviços Internet, da Anatel, define, em seu art. 4.º, como Provedor de Acesso a Serviços Internet – PASI, “o conjunto de atividades que permite, dentre outras utilidades, a autenticação ou reconhecimento de um usuário para acesso a Serviços Internet”.
A partir da Ementa também se resgata a PREMISSA MENOR da decisão: “o Provimento de Acesso a Serviços Internet não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor e seus clientes como usuários dos serviços de telecomunicações que lhe dá suporte”: (...) a Lei Federal 9.472/1997, denominada Lei Geral de Telecomunicações – LGT, no § 1.º de seu art. 61, dispõe que o serviço de valor adicionado “não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição”. O caput do mencionado artigo define o referido serviço como “a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações”. O serviço prestado pelo provedor de acesso à Internet não se caracteriza como serviço de telecomunicação, porque não necessita de autorização, permissão ou
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concessão da União, conforme determina o art. 21, XI, da Constituição Federal. Não oferece, tampouco, prestações onerosas de serviços de comunicação (art. 2.º, III, da LC 87/1996), de forma a incidir o ICMS, porque não fornece as condições e meios para que a comunicação ocorra, sendo um simples usuário dos serviços prestados pelas empresas de telecomunicações.
Entende o STJ que o provedor de acesso à Internet é usuário e tomador do serviço de comunicação prestado pela concessionária de serviços de telecomunicações, já tributada pelo ICMS, limitando-se a executar serviço de valor adicionado: O serviço prestado pelos provedores de acesso à Internet cuida, portanto, de mero serviço de valor adicionado, uma vez que o prestador se utiliza da rede de telecomunicações que lhe dá suporte para viabilizar o acesso do usuário final à Internet, por meio de uma linha telefônica. (...) a provedoria via Internet é serviço de valor adicionado, pois “acrescenta informações através das telecomunicações. A chamada comunicação eletrônica, entre computadores, somente ocorre através das chamadas linhas telefônicas de qualquer natureza, ou seja, a cabo ou via satélite. Sem a via telefônica impossível obter acesso à Internet. Cuida-se, pois, de um serviço adicionado às telecomunicações, como definiu o legislador. O provedor é usuário do serviço de telecomunicações. Assim o diz a lei”.
A Ementa da decisão fecha citando o art. 110 do CTN e o voto da Min. Eliana Calmon no Recurso Especial, acabando por destacar o ponto mais importante desse julgado: é defeso ao Fisco alargar sua competência impositiva mediante mera interpretação, sem inovação legislativa que coloque em pauta o debate político pertinente. O princípio da tipicidade, aqui invocado, garante a legalidade e o inalienável princípio da separação dos Poderes. O Poder Executivo não pode subtrair prerrogativas do Poder Legislativo: Conclui-se, portanto, que, nos termos do art. 110 do CTN, não podem os Estados ou o Distrito Federal alterar a definição, o conteúdo e o alcance do conceito de prestação de serviços de conexão à Internet, para, mediante Convênios Estaduais, tributá-la por meio do ICMS. Como a prestação de serviços de conexão à Internet não cuida de prestação onerosa de serviços de comunicação ou de serviços de telecomunicação, mas de serviços de valor adicionado, em face dos princípios da legalidade e da tipicidade fechada, inerentes ao ramo do direito tributário, deve ser afastada a aplicação do ICMS pela inexistência na espécie do fato imponível. Segundo salientou a douta Ministra Eliana Calmon, quando do julgamento do recurso especial ora embargado, “independentemente de haver entre o usuário e o provedor ato negocial, a tipicidade fechada do Direito Tributário não permite a incidência do ICMS”.
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Enfim, a ratio decidendi (fundamento jurídico que sustentou a decisão e a tese acolhida pelo STJ, além da Súmula 334) foi que a área de abrangência do ICMS-Comunicação cinge-se às operações de telecomunicações: competência originária adquirida e pactuada nos debates constituintes entre União Federal, Estados e Municípios, formalizada na CF/1988. 3.7. Legalidade 6 (LC 116) e a “Tentativa Parte II”: a falácia baseada na distorção das razões de veto do item 17.07 da lista de serviços e a pretensão de exigir, agora, ICMS-Comunicação sobre a propaganda veiculada pelos provedores de acesso
A LC 116 decorreu da apreciação do Projeto de LC 1, de 19.02.1991 (“PLP 1/1991”), de iniciativa do então Senador Fernando Henrique Cardoso. Sua declarada intenção era regulamentar o art. 156, III, da CF/1988, que previa a competência municipal para tributar os serviços que não fossem de competência estadual (transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação), e estivessem previstos em lei complementar. Após mais de 12 anos de tramitação, o PLP 1/1991 foi aprovado pela Câmara e pelo Senado, seguindo para aprovação do Presidente da República. O então Presidente Luis Ignácio Lula da Silva vetou parcialmente o projeto de conversão do PLP 1/1991, exercendo a competência prevista no art. 66, § 1o, da CF/1988: Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará. § 1.º Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá -lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto.
Entre os dispositivos vetados estava o item 17.07 da lista de serviços, que previa a incidência do ISS sobre “veiculação e divulgação de textos, desenhos e outros materiais de propaganda e publicidade, por qualquer meio”. O motivo do veto foi o respeito às imunidades constitucionais: O dispositivo em causa, por sua generalidade, permite, no limite, a incidência do ISS sobre, por exemplo, mídia impressa, que goza de imunidade constitucional (cf. alínea d do inciso VI do art. 150 da Constituição de 1988). Vale destacar que a legislação vigente excepciona – da incidência do ISS – a veiculação e divulgação de textos, desenhos e outros materiais de publicidade por meio de jornais, periódicos, rádio e televisão (cf. item 86 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei 406, de 31 de dezembro de 1968, com a redação da LC 56, de 15 de dezembro de 1987), o que sugere ser vontade do projeto permitir uma
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hipótese de incidência inconstitucional. Assim, ter-se-ia, in casu, hipótese de incidência tributária inconstitucional. Ademais, o ISS incidente sobre serviços de comunicação colhe serviços que, em geral, perpassam as fronteiras de um único município. Surge, então, competência tributária da União, a teor da jurisprudência do STF, RE 90.749-1/BA, 1.ª T., rel. Min. Cunha Peixoto, DJ de 03.07.1979, ainda aplicável a teor do inciso II do art. 155 da Constituição de 1988, com a redação da EC 3, de 17 de março de 1993.
Merece destaque na formação dessa Legalidade 6 a impossibilidade de o Poder Executivo alterar a redação do item 17.07 para excepcionar os jornais, os periódicos, o rádio e a televisão, justificada pelo disposto no § 2o do art. 66 da CF/1988: Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará. § 2.º O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea.
A leitura atenta do fundamento do veto e do art. 66, § 2.º, da CF/1988 sugere que a intenção do Poder Executivo não era suprimir da competência municipal o ISS sobre veiculação de propaganda, tampouco transferir tal competência aos Estados por meio da incidência do ICMS-Comunicação: era incluir as exceções que estavam previstas no DL 406/1968 e na LC 56/1987, relativas à veiculação de propaganda por meio de jornais, periódicos, rádio e televisão. Nesta linha, lê-se ao final da Mensagem de Veto: Em razão dos vetos lançados, determinei à equipe de Governo empreender estudos com vistas à elaboração de projeto de lei complementar cumprindo eventuais adequações. Em breve espaço de tempo, encaminharei proposição neste sentido ao elevado crivo dos Senhores Congressistas.
Para não pairarem duvidas, é importante mencionar que a parte final das razões do veto do item 17.07 não modifica o raciocínio desenvolvido neste Estudo. A referência (i) aos serviços de comunicação que ultrapassam as fronteiras de um Município e (ii) ao Recurso Extraordinário 90.749-1/ BA (“RE 90.749”) não ampliam a interpretação do termo “comunicação”: ele continua restrito aos serviços de telecomunicação. O próprio RE 90.749 julga caso específico de telecomunicações em que há conflito de competência entre os Municípios e a União. As razões do veto recolocam essa discussão no plano constitucional atual, ou seja, inclui a hipótese de haver conflito de competência entre os Municípios e os Estados, a teor do art. 155, II, da CF/1988: nada se altera em relação à restrição do sentido de
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comunicação aos serviços de telecomunicação para efeitos de tributação pelo ICMS-Comunicação. O referido veto ao item 17.07 tem gerado interpretações distorcidas tanto por parte do Fisco como por parte dos Tribunais, no sentido de que, não sujeito ao ISS, os serviços de veiculação de propaganda estariam compreendidos na competência estadual do ICMS-Comunicação. Entretanto, aquela premissa não leva a essa conclusão. O fato de o veto ao item 17.07 impedir a exigência daquela hipótese legal pelos Municípios nada acrescenta à competência dos Estados: supressão de competência não implica transferência de competência! A competência constitucional para a tributação dos serviços de veiculação de material publicitário continua restrita aos Municípios: compete aos Municípios instituir ISS sobre os serviços que não sejam da competência estadual e estejam previstos em lei complementar. Não é dado aos Estados tributar serviços de competência municipal somente em razão de a lista de serviços da LC 116, após o veto presidencial, não prever tal incidência. Na Resposta à Consulta do Estado de São Paulo n. 186, de 10.11.2005, um dos argumentos do Fisco Paulista era que a veiculação de propaganda seria tributável pelo ICMS-Comunicação porque o ISS somente incidiria sobre as atividades de promoção de vendas, planejamento de campanhas ou sistemas de publicidade, elaboração de desenhos, textos e demais materiais publicitários (item 17.06 da lista de serviços anexa à LC 116). Confira-se o seguinte trecho que demonstra o equívoco da Administração Tributária Estadual em pretender tributar, por exclusão, a veiculação de publicidade na Internet: Em síntese, a veiculação ou divulgação de publicidade, por qualquer meio, são prestações de serviço de comunicação e, como tal, estão reservadas à tributação pelo ICMS, competindo aos Municípios tributar a criação da propaganda, a elaboração artística, o planejamento da divulgação, enfim, tudo o que, relativo à propaganda e à publicidade, não diz respeito à veiculação e à divulgação.
Tal “Resposta à Consulta” que parece fundamentar a pretensão jurídica dos Estados de alargar a materialidade histórica do ICMS-Comunicação, incluindo os serviços de publicidade, configura exultante exemplo de petição de princípio (petitio principi) – falácia em demonstrar uma tese partindo do princípio de que ela é válida. Por exemplo: se a Bíblia é a voz divina (premissa pressupostamente válida pelo locutor), então nela está a voz de Deus. Ora, pressupor como válida, sem demonstração, a premissa de que “veiculação ou divulgação de publicidade, por qualquer meio, são prestações de serviço de comunicação e, como tal, estão reservadas à tributa-
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ção pelo ICMS” e, por isso, compete “aos Municípios tributar a criação da propaganda, a elaboração artística, o planejamento da divulgação, enfim, tudo o que, relativo à propaganda e à publicidade, não diz respeito à veiculação e à divulgação” não é “interpretação”: é enganação! Até a vinda da LC 116, o Deputado Júlio Semeghini propôs o Projeto de LC 208, de 2001 (“PLP 208”), que pretendia incluir o seguinte item na lista de serviços da LC 56, de 1987:
3.8. Legalidade 7 (Projetos de LC 208/2001 e 230/2004): facticidade de processo legislativo em curso para retornar a veiculação da publicidade na Lista de serviços da LC 116
“102 os serviços definidos no art. 61 da Lei 9.472, de 16 de julho de 1997”.
A justificativa do PLP 208 era a “omissão no texto da lei complementar de um conjunto de serviços de valor adicionado que hoje são oferecidos por meio da Internet e que não existiam quando da proposição original da lei”. E complementa que a alteração não abrangeria “os serviços de telecomunicações que suportam o fornecimento de serviços como o provimento de acesso à Internet ou de conteúdo gerado por prestadores de serviço pela Internet. A referência ao art. 61 da Lei 9.472, de 16 de julho de 1997 (Lei Geral das Telecomunicações), visa assegurar a aderência do que se pretende à definição legal dos serviços”. A Comissão de Constituição e Justiça proferiu seu Parecer ao PLP 208 somente em novembro de 2003, após a aprovação da LC 116 e, especialmente por esse motivo, propôs um “emendamento com o caráter de substitutivo formal”. O substitutivo pretende incluir o item 1.09 na lista de serviços da LC 116: “serviços de provimento de acesso à rede mundial de computadores – Internet”. Além do PLP 208, também tramita atualmente no Congresso Nacional o Projeto de LC 230/2004 (“PLP 230”), de Relatoria do Deputado Antônio Carlos Mendes Thame. O PLP 230 foi proposto exatamente em razão do veto àquela disposição do item 17.07 da LC 116, ou seja, com o objetivo de incluir novamente o referido item na competência tributária municipal, atentando para a adequada redação: 17.07A – Veiculação e divulgação de textos, desenhos e outros materiais de publicidade, por qualquer meio (exceto em jornais, periódicos, rádio e televisão), excluindo-se da base de cálculo os valores referentes à locação dos espaços efetivamente utilizados na veiculação e os descontos legais em favor de agências de publicidade.
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A justificativa do PLP 230 é “resgatar a redação constante do Dec. -lei 406/1968, que trata da ‘veiculação e divulgação de textos, desenhos e outros materiais de publicidade, por qualquer meio (exceto em jornais, periódicos, rádio, e televisão), respeitando as imunidades constitucionais apontadas como exceção (em pleno alinhamento, pois, com as razões de veto do item 17.07 na versão original da LC 116), e consagrar a veiculação como prestação de serviço e não como serviço de comunicação, objeto de tributação pelos Estados membros. Como discutido doutrinária e jurisprudencialmente, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a veiculação deve ser tratada como serviço de publicidade, não se confundindo com os serviços de comunicação”. O PLP 230 também já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, nos seguintes termos: No mérito, a proposta visa a introduzir no ordenamento jurídico hipótese de incidência do ISS que deixou de constar formalmente da tabela de serviços sujeitos a esse imposto em 2003, quando da aprovação da Lei Complementar 116. O Projeto de Lei Complementar elaborado pelo Congresso Nacional consignava esses serviços no item 17.07 (...). Encaminhado à sanção do Presidente da República, foi objeto de veto (...). A proposta ora sob análise elimina as nódoas apontadas naquela ocasião, ao ressalvar expressamente a veiculação de publicidade por meio de jornais e periódicos, além de, na redação do Substitutivo da CFT [comissão de finanças e tributação], também os “livros”. (...) No que respeita aos serviços de comunicação, as ressalvas introduzidas quanto à veiculação por rádio, televisão e Internet parecem afastar a invasão da competência estadual (ICMS), como apontado nas “razoes” do veto presidencial. (...) O entendimento da melhor doutrina quanto ao tema é o de que a efetiva prestação de “serviço de comunicação” depende da ocorrência de certos elementos essenciais. (...) Sem esses elementos não se configura a “comunicação”, com o que se afasta a competência tributante do Estado em favor do Município, por meio do ISS. É esse o caso dos serviços de que trata o Projeto sob exame. A veiculação de publicidade não preenche os requisitos da vontade do destinatário da mensagem e da interação entre emissor e destinatário, pelo que não se pode considerar que estejam ao alcance da incidência do ICMS. A fim de que se possam efetivamente sujeitar ao ISS, no entanto, cumpre inscrever esses serviços expressamente na Lista anexa à Lei Complementar 116, de 2003, como ora se põe.
Ou seja, enquanto o Estado, isoladamente, prefere lavrar Autos de Infração sob o “FUNDAMENTO JURÍDICO” DE RESPOSTA À CON-
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SULTA50 e, sob a tese de fragorosa petição de princípio [“porque serviço de veiculação de publicidade é competência do ICMS-Comunicação, então, aos Munícipios compete tributar a criação da propaganda, a elaboração artística e o planejamento da divulgação” (ou seja, porque eu tenho “a força” [para lavrar autos de infração], eu [Estado] entendo assim)], o Congresso Nacional, atento às regras democráticas e às razões de veto do item 17.07,51 promove projeto de LEI COMPLEMENTAR, sob amplo debate nacional, regularmente aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, determinando e confirmando que a tributação sobre veiculação de publicidade, por qualquer meio, é de competência dos Municípios. RESPOSTA À CONSULTA ou LEI COMPLEMENTAR para fundamentar tributação e exercício de competência tributária impositiva não é questão de opinião, nem de força, nem de interpretação: é extrapolação e invasão de competência por simples e, portanto, inválido ato administrativo de “Resposta à Consulta” inconstitucional.
50. Reitere-se, o seguinte trecho da RC 186/01, que demonstra o equívoco da Administração Tributária Estadual em pretender tributar, por exclusão, a veiculação de publicidade na internet: “Em síntese, a veiculação ou divulgação de publicidade, por qualquer meio, são prestações de serviço de comunicação e, como tal, estão reservadas à tributação pelo ICMS, competindo aos Municípios tributar a criação da propaganda, a elaboração artística, o planejamento da divulgação, enfim, tudo o que, relativo à propaganda e à publicidade, não diz respeito à veiculação e à divulgação”. 51. Reiterem-se as razões do veto ao Item 17.07 da Lista de serviços: “O dispositivo em causa, por sua generalidade, permite, no limite, a incidência do ISS sobre, por exemplo, mídia impressa, que goza de imunidade constitucional (cf. alínea d do inc. VI do art. 150 da CF/1988). Vale destacar que a legislação vigente excepciona – da incidência do ISS – a veiculação e divulgação de textos, desenhos e outros materiais de publicidade por meio de jornais, periódicos, rádio e televisão (cf. item 86 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei 406, de 31.12.1968, com a redação da LC 56, de 15.12.1987), o que sugere ser vontade do projeto permitir uma hipótese de incidência inconstitucional. Assim, ter-se-ia, in casu, hipótese de incidência tributária inconstitucional. Ademais, o ISS incidente sobre serviços de comunicação colhe serviços que, em geral, perpassam as fronteiras de um único município. Surge, então, competência tributária da União, a teor da jurisprudência do STF, RE 90.749-1/BA, 1.ª T., rel. Min. Cunha Peixoto, DJ 03.07.1979, ainda aplicável a teor do inciso II do art. 155 da Constituição de 1988, com a redação da EC 3, de 17 de março de 1993”.
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A superação do problema que se coloca acerca da incidência do ICMS-Comunicação sobre a veiculação de publicidade pelos provedores de acesso à Internet requer, antes de tudo, sua compreensão. Definitivamente, não se trata de questão semântica, como grande parte da doutrina parece convergir ao pretender identificar e atribuir um “verdadeiro” significado para vocábulos vagos, ambíguos e abstratos como “prestação”, “serviço” e “comunicação”. O termo “prestação” pode designar desde a adequação material de uma conduta (prestação positiva ou negativa decorrente de posição subjetiva ex vi Pontes de Miranda) até a ideia formal de resultado do processo jurisdicional (prestação jurisdicional). “Presta-se” para pouco, portanto. A expressão “serviço” não padece de melhor sorte. Os civilistas, pretendendo esgotá-la, criaram a imagética dualidade obrigações de dar e obrigações de fazer, sem considerar a possibilidade de que todo “dar” envolve, em alguma parcela, a incômoda satisfação de um “fazer”, situação que colocaria as obrigações de dar como parte ou subespécie das obrigações de fazer. O fato é que tal classificação pretendeu explicar, mas não logrou êxito em resolver os intermináveis problemas conceptuais do vocábulo “serviço”, ex vi da tentativa de encontrar, no fato incindível, a “atividade preponderante” (o engraxate presta serviço ou vende graxa? A gráfica vende papel ou presta serviço de impressão de folhetos de publicidade?). O direito tributário nacional, mais pragmático que o civil e imbuído de encontrar solução prática para a questão da discriminação de competências entre Estados e Municípios, criou a lista de serviços: definição extensiva ou denotativa, que dirimiu muitos problemas, mas não esgotou o debate, afinal, “a lista” é exaustiva ou exemplificativa? Enfim, quem já frequentou aulas e leu livros de Semiótica, Linguística, Teoria da Linguagem ou Teoria do Conhecimento, que têm por objeto o estudo da “comunicação” e do “significado”, sabe que estes vocábulos, talvez refletindo os limites destas ciências, são de difícil apreensão. Não seria falso dizer que a palavra “comunicação” comunica pouco. Aliás, Watzlawick, no já citado clássico livro “Pragmática da comunicação humana”,52 já vaticinava a maldição da comunicação: “é impossível não se comunicar”. Ou seja, mesmo o silêncio absoluto de quem não quer se
4. ORIGENS DE UMA FALSA “QUESTÃO JURÍDICA”: MANIPULAÇÃO DO PODER DE TRIBUTAR MEDIANTE FRAUDE À CF/1988, FRAUDE À LC 87/1996, FRAUDE À LC 116 E O PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ÀS AVESSAS PELA EXPLORAÇÃO DA VAGUIDADE E IMPRECISÃO DOS TERMOS DA LEGISLAÇÃO
52. Op. cit.
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comunicar já comunica que não quer se comunicar. Desta forma, tudo é comunicação e, portanto, nada deixa de ser comunicação: qual será, então, o destino da lista de serviços e da competência dos Municípios? Será que todos os subitens do item 23 (Serviços de programação e comunicação visual, desenho industrial e congêneres) da lista anexa à LC 116 deverão ser mitigados em razão do ICMS-Comunicação? Como se vê, é desastroso relacionar o amplo conceito de comunicação ao critério material de qualquer hipótese tributária. Trata-se de atentado à Federação pretender fiar discriminação de competências tributárias à baixa densidade conceptual do termo “comunicação”: útil para semear eterna dúvida e insegurança, mas inútil para oferecer, de modo isolado, referencial semântico para credenciar decisão vinculada. Destarte, utilíssimo para fundamentar qualquer decisão. As leis não passam de “caixinhas de palavras” que podem ser organizadas tais quais caleidoscópios, das mais diversas formas nas estantes dos supermercados, e fazem da legalidade um produto de consumo perecível e virtual. Cabe ao Fisco sedimentar e construir sua legalidade sobre o texto normativo, por expertise, competência privativa e dever legal. O conceito de fraude à lei – que designa atos que aparentemente se subsomem a lei, mas que, em verdade, são contrários ao “espírito” da lei ou à boa-fé, pois realizados com o objetivo de prejudicar terceiros – vem sendo largamente utilizado para tipificar a indesejável conduta de o contribuinte utilizar-se das margens da legalidade e do lícito para pagar menos tributo (e.g. criar Pessoa Jurídica para pagar menos Imposto sobre a Renda): diz-se que o contribuinte fraudou a lei fiscal, pois teve como único objetivo a redução da carga tributária. Que falar, então, de um Estado que distorce o pacto político-constitucional de partilha das competências tributárias na CF/1988 (alinhada com a EC 3, a EC 33 e a EC 42, e sedimentada pela legalidade vertical do Convênio 66/1988 e da LC 87/1996, em que o objeto impositivo sempre foi tributação sobre “telecomunicações”) para, agora, mediante nova e criativa interpretação, arrecadar mais? É o que chamamos planejamento tributário às avessas: fraude ao sentido e à mens legis da Constituição e das leis com o único objetivo de arrecadar mais. Nosso desafio, pois, é superar esse meio ambiente de discórdia, da díade tão bem expressa na etimologia da palavra “diabólico” (aquele que separa e divide o sentido). A principal missão do Fisco não é tão somente arrecadar. Como advertiu Richard Bird,53 nessa matéria nós brasileiros somos campeões e modelos mundiais. Nosso desafio é fortalecer nossas 53
53. Na palestra de encerramento do I Colóquio Internacional do NEF, realizado em dezembro de 2009, no Auditório da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.
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instituições, construindo novos paradigmas de legalidade que irradiem segurança jurídica aos operadores do sistema tributário: auditores fiscais e contribuintes. 5. O “O OVO DA SERPENTE”: SOBRE O NOVO DIREITO ALTERNATIVO54 EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA (“APLICAÇÃO DA NORMA É SUA CONSTANTE RECRIAÇÃO”) E ÉTICA PÚBLICA NO ATO DE APLICAÇÃO DO DIREITO
Em 11.10.2000, o Fisco Paulista editou o Comunicado CAT 108, esclarecendo dúvidas de contribuintes acerca da base de cálculo do ICMS-Comunicação em casos de: 54
serviços não medidos de comunicação, cujos preços sejam cobrados por períodos definidos, envolvendo tomadores e prestadores localizados em unidades da Federação distintas.
A base legal desse Comunicado foi o art. 11, § 6.o, da LC 87/1996, o mesmo utilizado como fundamento da autuação da EMPRESA K, e nada fora mencionado acerca da veiculação de publicidade pelos provedores de acesso à Internet. As únicas bases de incidência mencionadas foram: serviço especial de TV por assinatura, serviço de radiochamada (“pager”) e serviço de provimento de acesso à Internet (posteriormente declarado pelo STJ como não sujeito à incidência do ICMS-Comunicação). Ou seja, à época a “hipótese de incidência” do ICMS-Comunicação sobre serviços veiculação de publicidade na Internet ainda não havia sido “descoberta”. Em 17.02.2006, o Fisco Paulista finalmente proferiu a Resposta à Consulta 389 (“RC 389/2006”), esclarecendo dúvidas de um determinado contribuinte acerca da incidência do ICMS-Comunicação sobre a veiculação de publicidade em páginas eletrônicas. Foi curiosa a resposta dada pelo Consultor José Leônidas Barbosa Pereira e pela Consultora Cristiane Redis Carvalho, baseada nas seguintes afirmações de doutrina: Há um sentimento presente, mas retrógrado, no mundo jurídico, de necessidade de subsumir plenamente fatos a normas. Esse sentimento é reflexo de outro sentimento: o de que somente a subsunção pura e simples pode trazer certezas. Ora, aplicação da norma é sua constante recriação. Nem a certeza pode ser absoluta, nem a certeza está acima de todos os outros valores e princípios ordenadores do direito. Pela necessidade psicológica de subsumir, e considerada a dificuldade de fazê-lo buscando “prestações de serviço de comunicação” para encontrar fatos geradores do ICMS, a doutrina procurou uma “primeira maior” para os casos reais, 54. A alusão ao Direito Alternativo remete ao movimento jurídico surgido especialmente nos Tribunais do Sul do Brasil que, em nome da modernidade politicamente correta, tinha a pretensão de mudar a ordem jurídica vigente: seu lema é “fiat justitia, pereat mundus”, que quer dizer “faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça”.
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tentando substituir o texto legal por outro, “fornecer meios para que terceiros se comuniquem”, com o que, a partir da complexidade dos fatos sociais, discordamos. Indecisão e incerteza, vez ou outra, surgem, pois o raciocínio puramente formal não é possível. Assim é o direito, inclusive o direito tributário. Não se escapa à necessidade de valoração das decisões.
Concordamos que é desconfortável quando a lei não se adequa aos sentimentos do intérprete e de sua ideologia: mas é para isso que a lei serve, para limitar ímpetos e o exercício subjetivo do poder. “Recriar o direito” é burlar o direito posto: aliás, é isso que muitas consultorias privadas, condenadas pelo Fisco, fazem ao encontrar formas alternativas para que o contribuinte possa pagar menos tributo de forma lícita. Conspira para esse cenário o “Mito” jurídico55 que atordoa e embota a razão induzindo a equívoca ideia de que a única missão institucional do Fisco é arrecadar, e que na consecução desse objetivo perpétuo (já que os gastos públicos, na prática, também não têm limites) todos os players (advogados, os juízes, tribunais superiores, Delegacias de Julgamento, o Tribunal de Impostos e Taxas (“TIT”) e, por vezes, os próprios Auditores Fiscais) atrapalham quando pretendem firmar suas decisões em critérios estritamente legais. Eis aqui “O ovo da serpente”56 do presente caso: a crença de que o Fisco pode “ajeitar” a legalidade aos seus interesses, a qualquer custo e ao 55. A mitologia jurídica segundo Santi Romano, caracteriza-se pela “scarsa importanza la realtà giuridica (…) cioè il complesso di principi, delle ideologie e delle concezioni che stanno alla base del ‘ius conditum’, e invece vengono in prima linea le ideologie che combattono per informare di sé il ‘ius condendum’. È allora perfettamente naturale che si trovino l’una di fronte all’altra diverse ed opposte concezioni, alle quali la lotta conferisce il carattere della fede e della forma immaginosa del mito”. Frammenti di un dizionario giuridico. Milano: Giuffrè, 1983. p. 129. 56. Referência ao filme O ovo da serpente de Ingmar Bergman: boa alegoria sobre as origens autoritárias e impositivas de nosso Fisco colonial, formado por estruturas jurídicas importadas da Metrópole com o único objetivo de extrair as riquezas brasileiras sem contrapartidas de investimento: primeiro pau-brasil, depois ouro, agora, mesmo depois da independência, da república, do período militar, da constituinte de 1988, sofisticaram-se as bases impositivas (PIS, Cofins, ICMS etc.), mas a estrutura continua a mesma. Nesse marcante filme, Ingmar Bergman retrata uma semana na vida de Abel Rosenberg, um trapezista judeu desempregado, após descobrir que seu irmão Max se suicidou. Em plena Alemanha da República de Weimar na década de 1930, Bergman reconstrói meticulosamente a Berlim da época, assolada pela Grande Depressão, para tecer uma profunda reflexão sobre as origens do Nazismo. Seu protagonista é um homem de meia-idade, mergulhado no alcoolismo, numa típica vida sem perspectiva ante um momento de profunda baixo-estima social, cenário da formação de um Estado doentio e delirante.
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preço da própria legalidade. Desta forma, o Fisco contorna os obstáculos da democracia e da legalidade, explorando a criatividade no ato de aplicação do direito, o que fomenta o contencioso. Assim, resta ao prestigioso TIT, com sua formação paritária e seu alto grau de legitimidade, não servir de palco para encenações e analisar, seriamente, atos administrativos que pretendem “cavar” novas legalidades. É patente na moderna literatura internacional – de Richard Bird57 a Vito Tanzi58 – que o principal stakeholder de um sistema tributário é a 57. BIRD, Richard M. Tax Reform in Latin America: A Review of Some Recent Experiences. Latin American Research Review, vol. 27, n. 1, 1992. BIRD, Richard M. et al. “Societal Institutions and Tax Effort in Developing Countries”. In: ALM, James e MARTINEZ-VAZQUEZ, Jorge; RIDER, Mark (eds.). The Challenges of Tax Reform in the 21st Century. Norwell, MA: Springer Science Business Media, 2006. BIRD, Richard M.; JANTSCHER, Milka Casanegra (orgs.). Improving Tax Administration in Developing Countries. Washington: International Monetary Fund, 1992. BIRD, Richard M. et al. The VAT in Developing and Transitional Countries. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. 58. TANZI, Vito. Globalization, Technological Developments, and the Work of Fiscal Termites. IMF Working Paper No. 00/181. Novembro, 2000. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=880256. Acesso em 14.03.2014. TANZI, Vito. The Role of the State and Public Finance in the Next Generation. OCDE Journal on Budgeting, vol. 8, 2008. Disponível em< http://www.oecd.org/ dataoecd/43/0/43410951.pdf> Acesso em 14.03.2014 . TANZI, Vito. Inflation and the Personal Income Tax: An International Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. TANZI, Vito et al. Income Distribuition Determinantes and Public Spending Efficience. Working Paper Series n. 861. Janeiro de 2008. European Central Bank. Disponível em: http://www.ecb.int/pub/pdf/scpwps/ecbwp861.pdf. Acesso em 14.03.2014. TANZI, Vito. The Economic Role of The State in the 21st. Century. Cato Journal, vol. 25, n. 3 (Fall 2005). Cato Institute. Disponível em: http://www.cato.org/pubs/ journal/cj25n3/cj25n3-16.pdf. Acesso em 14.03.2014. TANZI, Vito. The Shadow Economy, Its Causes and Its Consequences. Edited lecture given at the International Seminar on the Shadow Economy Index in Brazil. Brazilian Institute of Ethics in Competition, 12 March 2002, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.etco.org.br/user_file/shadowEconomy/03_Artigo_Tanzi_Shadow_Economy.pdf. Acesso em 14.03.2014. TANZI, Vito; ZEE, Howell H. Consequences of the Economic and Monetary Union for the Coordination of Tax Systems in the European Union – Lessons from the U.S. Experience. IMF, August 1998.
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Administração Tributária, pois, mais que ingenuamente aplicar a lei, o Fisco cria o derradeiro sentido dela, com força e presunção de validade de ato administrativo. Seja no ato de lançamento, na resposta à consulta ou na edição de instrução normativa, o Fisco cria e outorga sentido à legalidade e só por isso há de agir de modo ético, coerente e responsável com essa importante e exclusiva prerrogativa. James Alm (Departament of Economics – Tulane University) e Benno Torgler (School of Economics and Finance – Queensland University of Tecnnology) defenderam, no recente artigo “Do Ethics Matter? Tax Compliance and Morality” (janeiro 2011), que pesquisas feitas na Austrália e Inglaterra, demandadas pela própria Administração Tributária desses países, demonstram, empiricamente, que nenhum Fisco tem estrutura e auditoria suficiente para justificar todo volume da arrecadação voluntária. Defendem, assim, que na relação Fisco-Contribuinte, aspectos éticos influenciam o comportamento do contribuinte: (i) orgulho – crença de que se é parte de um grupo de alto status e (ii) respeito – crença de que se é respeitado pelo grupo. Assim, se as pessoas possuem valores que as levam a sentir que autoridades merecem ser obedecidas, elas são capazes de desenvolver um comportamento autorregulatório, o que justifica o grande volume de arrecadação voluntária. Outras pesquisas empíricas sobre o cumprimento de normas tributárias indicam que o índice cumprimento de normas tributárias é mais alto se o governo aparenta agir com legitimidade. Além disso, contaram que indivíduos próximos de pessoas que não agem eticamente tendem a praticar eles mesmos atos não éticos. Por fim, concluíram que alguns contribuintes não pagarão seus tributos se eles não apreciam a forma pela qual esses tributos são gastos, se o Estado é unresponsive (irresponsável), ou se sentirem que são tratados de forma injusta. Ou seja, há evidências de que o cumprimento das normas é afetado pela ausência de procedimentos legítimos e democráticos por parte do Fisco. É essencial entender que, especialmente em países como o Brasil, em que a tributação é concentrada no consumo (tributação indireta), as grandes empresas são, em verdade, parceiras da Administração Tributária. Funcionam como grandes agências terceirizadas de apoio ao fisco: interpretam a legislação tributária, formalizam o crédito tributário, recolhem o dinheiro aos cofres públicos e repassam o custo tributário no preço das mercadorias e dos serviços. Olhando para este cenário, vemos os derradeiros contribuintes: as pessoas físicas. Mais que temor, a Administração Tributária deve exarar confiança: (i) agir com lealdade e moralidade; (ii) de forma técnica, eficiente, racional e transparente; (iii) atentar-se e compreender as especificidades de diferentes
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grupos de contribuintes; e (iv) ter em mente que a conexão entre tributação e serviços públicos é um importante fator de legitimidade da tributação e que estimula o comportamento espontâneo das obrigações tributárias. Recentemente, Everardo Maciel em seu relatório final sobre “A moral tributária como fator determinante para o melhoramento da eficácia nas administrações tributárias”, tema da 45.ª Assembleia Geral do Centro Interamericano de Administrações Tributárias – CIAT, ocorrida em abril de 2011, em Quito – Equador, advertiu: Sendo a moralidade tributária uma via de mão dupla entre o Estado e o contribuinte, é imperioso que a moralidade da Administração Tributária seja percebida por todos. Ela começa pela conduta dos seus agentes, para os quais a ética é um predicado essencial. (...) Outra vertente da moralidade tributária do Estado é a transparência da Administração, em virtude do que ela se obriga a prestar contas de suas atividades à sociedade, com uso intensivo dos meios de comunicação, dizer o que fez e o que não fez, e sujeitar-se à avaliação pública do seu desempenho por meio de auditorias independentes.
Não é por acaso que, ex vi do art. 142 do CTN, a atividade de lançamento é privativa da autoridade administrativa e vinculada à lei: aplicar a legislação pressupõe essa expertise de interpretar, identificar e limitar-se a padrões coerentes sedimentados pela legalidade tributária. Além da ingenuidade, subtrair-se a essa tarefa pública de outorgar sentido e racionalidade à legislação significa abuso do poder delegado pelo sistema jurídico à Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (“FAZESP”). Significa esvair-se das expectativas normativas e democráticas de o cidadão-contribuinte encontrar na FAZESP as derradeiras respostas sobre o sistema tributário estadual. 6. APROVEITANDO-SE DA MALDIÇÃO DO LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO,59 DESVIO DE FINALIDADE DAS OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS RELATIVAS A OBRIGAÇÕES PRINCIPAIS QUE INEXISTIAM NO PASSADO, DESÍDIA ADMINISTRATIVA E CRIME DE PREVARICAÇÃO COM CONFISSÃO
Sabemos a importância da técnica do “lançamento por homologação” e das “obrigações acessórias” para o indispensável sucesso da arrecadação e eficiência das três esferas fiscais. Mas a Administração Tributária não pode abusar desses seus direitos, outorgados legitimamente pelo CTN: o lançamento por homologação e as obrigações acessórias são formas de viabilizar a cobrança dos tributos e não meios escusos de aumentar a carga tributária. 59
59. A Maldição do Lançamento por Homologação é analisada no Capítulo 4.
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Outra lógica perversa é a da dúvida. Como justificar a imposição de multas absurdas de 50% sobre o valor da operação, em razão da falta de emissão de documentos fiscais, quando sequer o Fisco sabia da existência da obrigação principal?
6.1. Desvio de finalidade das obrigações acessórias relativas a obrigações principais que inexistiam no passado
Essa situação, que promove o contencioso tributário a níveis insuportáveis, sistemicamente é abrandada por “generosos” e irresistíveis planos de anistia e parcelamento, que perdoam as multas e “só” exigem o controvertido principal em 180 parcelas a perder de vista. É a indústria da incerteza e da ilegalidade patrocinada por esse esquema fiscal, em que vítimas de autuações bilionárias se sentem acuadas nos conturbados processos administrativos que se formam em torno do retórico valor simbolicamente devido à Administração Tributária, muitas vezes sem qualquer consistência legal. É o que se verifica no presente caso: como autuar o Contribuinte exigindo multas sobre o valor de uma operação que não era tributável à época? É tributo de tolo: pagar, discutir ou esperar para parcelar?! Essa nova exigência de ICMS-Comunicação passou a ser feita pelo Fisco Estadual somente no ano de 2011. Ora, mesmo tendo sido recorrentemente fiscalizada, a EMPRESA K nunca foi autuada pela ausência de recolhimento do ICMS-Comunicação sobre as receitas decorrentes de veiculação de propagada em suas páginas eletrônicas. De repente, foi surpreendida com autuação de R$ X bilhões sendo que aproximadamente 80% desse valor refere-se às multas pelo descumprimento de “obrigação acessória”: 50% do valor das operações supostamente tributáveis, em razão da ausência de emissão de documentos fiscais daquelas operações que o Fisco não entendia como sujeitas ao ICMS-Comunicação. E fica a pergunta: qual a finalidade dessas multas no presente caso em que inexistia a obrigação principal? Poderia o Contribuinte ter emitido documentos fiscais (obrigações acessórias) em relação a operações (obrigações principais) que nem o Fisco entendia como tributáveis? Antes tivesse sonegado o tributo e as multas seriam muito mais brandas: até 150% sobre tributo devido e não sobre o valor das operações atualizado (e atualizável), a módicos juros de 3% ao mês. A única justificativa para a existência das obrigações acessórias é a garantia das obrigações principais: sem documentos que retratem as operações econômicas, não há como verificar-se o cumprimento da obrigação principal. Contudo, no presente caso, a ausência da emissão de documentos fiscais relativos às operações de veiculação de publicidade não impediu o Fisco de verificar a suposta existência de obrigação principal. Ou seja, fica patente o desvio de finalidade das obrigações acessórias no presente caso,
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quando o Fisco se utiliza da ausência delas não para punir o contribuinte que ocultou a obrigação principal, mas para aumentar simbolicamente sua arrecadação. 6.2. Desídia administrativa e crime de prevaricação com confissão
Há duas teses jurídicas, formadas mediante criativa interpretação, em que o Fisco justifica a autuação: a primeira, mais conservadora, defende que com o veto do item 17.07 da lista de serviços da LC 116, a competência para tributar a veiculação de publicidade passou a ser dos Estados; a segunda, mais ousada, entende que o veto foi apenas a confirmação da não recepção do anterior item 86 da LC 56, defendendo que os Estados sempre foram titulares dessa competência. É paradoxal, como vimos acima, que em 11.10.2000, o Fisco Paulista tenha editado o Comunicado CAT 108, esclarecendo dúvidas de contribuintes acerca da base de cálculo do ICMS-Comunicação (cuja base legal foi o art. 11, § 6.o, da LC 87/1996, ou seja, o mesmo utilizado como fundamento da autuação da EMPRESA K), e nada tenha mencionado acerca da veiculação de publicidade pelos provedores de acesso à Internet: serviços não medidos de comunicação, cujos preços sejam cobrados por períodos definidos, envolvendo tomadores e prestadores localizados em unidades da Federação distintas.
O motivo para que o Fisco não tenha se manifestado sobre outros fatos geradores do ICMS-Comunicação é que, à época, ele sequer sonhava com essa nova hipótese de incidência. Contudo, ao “descobri-la” em 2011, não teve rubor de veicular sua tese na máquina do tempo do direito, com os confortáveis efeitos declaratórios ex tunc dos Autos de Infração. Que ato ilícito é esse que o contribuinte é acusado de não pagar um tributo que nem o Fisco havia concebido como devido à época? Pretender levar a termo essa tese cria um constrangimento legal inevitável para o próprio Fisco, seja pela tese de que tal tributo era devido desde 1988, com a promulgação da Constituição, seja pela tese de que era devido desde 2003 (com o veto do item 17.07): como ficam os créditos tributários que ocorreram desde então, não foram exigidos nem fiscalizados e já foram atingidos pela decadência? Sem dúvida, é caso de crime de omissão da Administração Tributária: crime de prevaricação por falta de exercício da obrigação de cobrar os “tributos devidos”. O pior, na presente situação, é que o crime já foi confessado pelo próprio Auto de Infração lavrado contra a EMPRESA K e pela tese que pretende justificá-lo: falta tão só apurar a autoria e saber como os autores da omissão pretendem restituir esses montantes “perdidos” aos cofres públicos!
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Em verdade, sabemos que esses tributos nunca foram exigidos nem pensados no passado. Nada justificaria a omissão do Fisco diante da posse de sofisticados sistemas de informação, a transferência do sigilo bancário pela LC 105 e o SPED Contábil e Fiscal. O fato é que cabe à Administração Tributária orientar a atividade do contribuinte no lugar de usar de “artimanhas & travessuras” para ludibriar o oponente, manipular sua competência e pretender, ainda, alcançar o passado punindo o descumprimento de obrigações que nunca incidiram porque nunca foram sequer pensadas. E tudo isso para quê? Para fomentar ainda mais a indústria da dúvida, do maniqueísmo e o contencioso fiscal. Aplicar a lei é expertise da Administração Tributária: pressuposto lógico de que quem cria uma lei é saber como aplicá-la. E não é pedir demais: com a mínima moralidade que o Direito pode esperar da Administração Pública ex vi do art. 37 da CF/1988. C.1. A célebre proposição de Ludwig 7. DEZ CONCLUSÕES INSTITUCIONAIS Wittgenstein que abre este Estudo é, ao mesSOBRE O USO INDEVIDO E ABUSIVO mo, tempo chave de sua solução: “Os limites DO LANÇAMENTO COMO FORMA da minha linguagem significam os limites do DE EXERCER A “CRIATIVIDADE” NA meu mundo”. O termo “comunicação”, objeto CRIAÇÃO DE NOVAS HIPÓTESES do conflito, é ambíguo, vago e pode significar: DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA NÃO (i) os elementos formais e técnicos que garanDISCUTIDAS NEM AUTORIZADAS tem a infraestrutura de comunicação e (ii) a PELO PODER LEGISLATIVO “comunicação” entendida como o conteúdo ou mensagem comunicada. Ou seja, o Estado pretende tributar, ao mesmo tempo, (i) o serviço de comunicação que já tributa e, agora, (ii) inovar, exigindo ICMS-Comunicação também sobre o conteúdo comunicado. C.2. Ocorre que a tributação sobre comunicação no Brasil sempre se restringiu à “comunicação” na acepção (i): os elementos formais e técnicos que garantem a infraestrutura de comunicação. Os elementos materiais da comunicação, previstos na acepção (ii), foram historicamente destinados aos Munícipios, ou seja, a “comunicação” entendida como o conteúdo ou mensagem comunicada: é o caso da veiculação de publicidade (item 86 da lista de serviços da LC 56). Portanto, só são tributáveis pelo ICMS-Comunicação aqueles contribuintes que têm infraestrutura para comunicar (telecomunicação). C.3. A transferência, na Constituinte de 1988, da competência do imposto sobre comunicações da União para os Estados, integrando o ICMS, não alterou a competência dos Municípios, que continuaram como titulares da tributação dos conteúdos comunicados. Tradutores, advogados, decora-
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dores, paisagistas, contadores, o teatro, o cinema, a publicidade, execução de música e veiculação de propaganda são todas atividades onerosas tributáveis pelos Municípios e que, inevitavelmente, envolvem “comunicação”: o ICMS-Comunicação não atinge o ato de comunicar um conteúdo, incide sobre a infraestrutura de comunicação. Conforme se verifica nos pressupostos teóricos da comunicação humana (item 4), é impossível não se comunicar: ou seja, mesmo o silêncio absoluto de quem não quer se comunicar já comunica que não quer se comunicar. Desta forma, tudo é comunicação e, portanto, nada deixa de ser comunicação: não é necessário extremar o argumento ad absurdum para perceber que a pretensão de os Estados tributarem a própria realização da comunicação e seu conteúdo esvaziaria a lista de serviços: afinal, no extremo tudo é comunicação. C.4. Há registros de discussões, mesmo antes da CF/1988, sobre a incidência ou não do Imposto sobre Comunicação da União – ISC, sobre serviços de infraestrutura (telecomunicação) restritos ao âmbito territorial do Município. Mas nunca houve qualquer pretensão de alargar a materialidade do imposto sobre serviços de comunicação em direção aos conteúdos de tais comunicações, como pretende o Estado de São Paulo no Auto de Infração. A análise da matriz tridimensional da legalidade, considerando os respectivos atos de demarcação de competência e instituição dos tributos em contexto histórico, demonstra que a hipótese tributária do ICMS-Comunicação restringe-se aos serviços de telecomunicação, incidindo sobre dada infraestrutura de comunicação. Trata-se de definição material que foi objeto do pacto constituinte de 1988, sendo confirmada pela regulamentação do Código Brasileiro de Telecomunicações, pelo Convênio 66/1988, pela LC 87/1996 e pela Lei Geral de Telecomunicações utilizada como ratio decidendi pelo STJ no julgado sobre os provedores de acesso à Internet. C.5. A premissa maior ou ratio decidendi para a tentativa de os Estados tributarem os provedores de acesso (fundamento jurídico que sustenta a decisão e a tese acolhida pelo STJ, além da criação da Súmula 334) foi que a área de abrangência do ICMS-Comunicação cinge-se às operações de telecomunicações, tal qual regulamentadas pela Lei Geral das Telecomunicações: competência originária adquirida e pactuada constitucionalmente nos debates constituintes perante União Federal, Estados e Municípios. C.6. A análise sob a perspectiva do tempo, oferecida pela matriz tridimensional da legalidade, revela que o cenário da Legalidade 6 (a Tentativa Parte II), em que se pretende exigir inauguralmente o ICMS-Comunicação sobre a veiculação de material publicitário, decorre justamente da frustração da Legalidade 5 (a Tentativa Parte I). Como já dito, na Legalidade 5 (não
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por acaso denominada “a Tentativa Parte I”, o Fisco tinha a pretensão de tributar os provedores de acesso e foi barrado pelo STJ. Ou seja, frustrada a tese de tributar os provimentos de acesso como serviços de comunicação, “a Tentativa Parte I” foi causa para o início de autuações, antes nunca cogitadas, sobre a veiculação de material publicitário dos mesmos provedores de acesso, configurando, agora, “a Tentativa Parte II”. C.7. O veto ao item 17.07 tem gerado interpretações distorcidas tanto por parte do Fisco como por parte dos Tribunais, no sentido de que, não sujeito ao ISS, os serviços de veiculação de propaganda estariam compreendidos na competência estadual do ICMS-Comunicação. Mas, aquela premissa não leva a essa conclusão. O fato de o veto ao item 17.07 impedir a exigência dessa hipótese legal pelos Municípios nada acrescenta à competência dos Estados: supressão de competência não implica transferência de competência. A competência constitucional para a tributação dos serviços de publicidade continua restrita aos Municípios: compete aos Municípios instituir imposto sobre os serviços que não sejam da competência estadual e estejam previstos em lei complementar. Não é dado aos Estados tributar serviços de competência municipal somente em razão de a lista de serviços da LC 116, após o veto presidencial, não prever tal incidência. C.8. O Projeto de LC 230/2004, em trâmite no Poder Legislativo, sob amplo debate nacional, e regularmente aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, define, determina e confirma que a tributação sobre veiculação de publicidade, por qualquer meio, é de competência dos Municípios. Enquanto isso, assistimos ao Fisco paulista, isoladamente, lavrando Auto de Infração sob o “FUNDAMENTO JURÍDICO” de RESPOSTA À CONSULTA produzida por próprios agentes da máquina estatal e sob a controvertida tese do “direito tributário alternativo” ex vi da Resposta à Consulta 389: “aplicação da norma é sua constante recriação”. Verifica-se, portanto, que para cavar e atrair a competência Municipal, o Estado tem lavrado autos de infração, distorcendo o pacto político-constitucional de partilha das competências tributárias (tal qual firmado na CF/1988, alinhada com a EC 3, a EC 33 e a EC 42, e sedimentada pela legalidade vertical do Convênio 66/1988 e da LC 87/1996), cujo objeto impositivo sempre foi tributação sobre “telecomunicações”. Trata-se de perfeito enquadramento ao que podemos chamar de planejamento tributário às avessas: fraude ao sentido e à mens legis da Constituição e das leis com o único objetivo de arrecadar mais. C.9. Assistimos ao abuso de poder fundamentado na crença de que o Fisco pode “ajeitar” a legalidade aos seus interesses, a qualquer custo e ao preço da própria legalidade. Desta forma, o Fisco contorna os obstá-
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culos da democracia e da legalidade explorando a criatividade no ato de aplicação do direito, o que fomenta o contencioso. Resta ao TIT não servir de palco para encenações e analisar, de forma imparcial (aproveitando-se da formação paritária e de seu ambiente jurídico confiável e legitimador), atos administrativos que pretendem “cavar” novas legalidades, em frontal desvio de finalidade da função desse importante e tradicional Tribunal. Falando em desvio de finalidade, que dizer das multas aplicadas pelo Fisco Estadual em razão de suposto descumprimento de obrigações acessórias? A justificativa para a existência das obrigações acessórias é garantir que o Fisco possa exercer seu poder-dever de fiscalização do cumprimento das obrigações principais. Considerando que sequer o Fisco sabia da existência de obrigações principais, não parece fazer sentido a imputação de descumprimento de obrigações acessórias à EMPRESA K. Caso soubesse da incidência do ICMS-Comunicação sobre veiculação de material publicitário, seria melhor que o Contribuinte tivesse sonegado o tributo: a multa seria de 150% sobre o imposto devido, bem inferior aos 50% sobre o valor das supostas operações, aplicado ao caso concreto e representante de 80% do valor do Auto de Infração. C.10. Enfim, sabe-se que esses tributos nunca foram pensados nem exigidos no passado. Além disso, nada justificaria a omissão do Fisco diante da posse de sofisticados sistemas de informação, transferência do sigilo bancário pela LC 105 e do SPED Contábil e Fiscal. O fato é que cabe à Administração Tributária orientar a atividade do contribuinte no lugar de usar de “artimanhas & travessuras” para ludibriar o oponente, manipular sua competência e pretender, ainda, alcançar o passado punindo o descumprimento de obrigações que nunca incidiram porque nunca foram sequer pensadas. Quer aumentar a arrecadação? Crie um novo tributo. Ou aumente a alíquota do ICMS sobre Telecomunicações. A inesgotável capacidade criativa para gerar novos sentidos sobre um mesmo texto legal, alargando-se a competência tributária, não é conduta digna do Poder Público.
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