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Kafka Cap. 10 Flipbook PDF
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Dez diretivAs institucionAis: NÃo BASTA ArrecADAr, DeSAfioS PArA meLhorAr o BrASiL, criANDo AmBieNTe De NeGÓcioS, SeGurANÇA JurÍDicA e comPeTiTiViDADe
Mostrei a Kafka aquele livro (“Contos Escolhidos” de Edgar Allan Poe) do qual eu não me separava há algumas semanas. Ele folheou, leu o sumário e perguntou-me: – Você conhece a vida de Poe? – Só sei o que Kämpf me disse. Parece que Poe é conhecido por ter sido um alcoólatra. Kafka franziu as sobrancelhas e disse: – Poe era um doente. Era um infeliz, sem defesa diante do mundo. É por isso que se refugiava na embriaguez. A imaginação para ele não passava de uma muleta. A perturbadora estranheza de suas histórias era um meio de tornar o mundo menos estranho. É muito natural. A imaginação não reserva tantas armadilhas de lobos quanto a realidade. (...) Os sonhos contêm sempre uma série de impressões diurnas que não são elaboradas. – Talvez – antecipei com certa prudência – se tente justamente no sonho se livrar de um sentimento de culpa em relação à realidade. O que pensa? – Sim, é isso – disse Kafka. – A realidade é a maior força que existe, ela modela o mundo e o homem. Ela age. É justamente por isso que o sonho contém a realidade. Não é possível escapar dela. O sonho não passa de um atalho que nos traz sempre de volta ao mundo da existência mais imediata. (“CONVERSAS COM KAFKA” de Gustav Janouch) 545
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i ALieNAÇÃo, KAfKA e o SiGiLo fiScAL Informações coletadas por servidores públicos, à custa do público, são propriedade do público, assim como cadeiras, prédios e outros bens materiais usados pelo governo e de propriedade pública. (Joseph Stiglitz)
Kafka, através de seu realismo fabulador, permite vislumbrar nossa alienação por sua arte que revela a deformidade das instituições, da burocracia e da lei nos atos de aplicação do direito. Tal alienação refere-se à diminuição da capacidade dos indivíduos em pensar e agir por si próprios. Enseja, pois, a retomada da reflexão sobre a função da lei, do jurista e do servidor público no Século XXI, na Era da Informação. Nos 7 primeiros capítulos desse livro, o desafio foi mostrar como a dogmática pode contribuir na revelação das deformidades da legalidade. O sigilo fiscal não pode servir de escudo jurídico ao controle social dos atos da administração tributária. O sigilo fiscal não pode comprometer a segurança jurídica pela assimetria de informação em nome do argumento altruísta, segundo o qual o sigilo fiscal existe para proteger a livre concorrência, a privacidade e a intimidade do contribuinte. As consequências do abuso do sigilo fiscal são: difusão de insegurança jurídica sistêmica, fomento exponencial da indústria do contencioso fiscal e bloqueio e não submissão da administração pública ao controle social de seus atos. Participação efetiva no processo democrático exige participantes informados. Gestores públicos e privados sabem disso e, frequentemente, tentam controlar o fluxo de informação. Contudo, não há a mesma liberalidade sobre a disponibilidade da informação no meio público que no ambiente privado. Governo sem informações ou sem meios para adquiri-las nada mais é que o prólogo de uma farsa ou uma tragédia. Informações produzidas e coletadas por servidores públicos são de propriedade intelectual pública. Utilizar informações públicas para interesses privados é ofensa tão séria quanto a apropriação de propriedade pública para propósitos privados. O segredo de qualquer informação pública implica direta ofensa e restrição do cidadão ao exercício do seu direito de deliberação sobre políticas públicas e sobre a eficiência da ação dos servidores públicos. O sigilo produz mais sigilo. É o segredo que fornece a oportunidade para que os grupos de interesse tenham mais influência, seja pela forma crua da corrupção e do suborno, seja pelo “processo democrático” em que se exerce o lobbying que assenta privilégios tributários, acrescenta desigualdade e incrementa complexidade e insegurança jurídica. O sigilo é o alicerce dessa forma persistente de corrupção que mina a confiança nos governos democráticos em grande parte do mundo. O sigilo aumenta a escassez e, consequentemente, o preço da informação, induzindo o afastamento de mais eleitores que não têm “interesses especiais” na participação ativa do processo de decisão democrática. A argumentação que defende o sigilo fiscal cala a voz do servidor público e omite a comunicação do entendimento prático do servidor sobre a interpretação da lei. Por isso, o caminho que propomos é valorizar o servidor público, outorgando relevância e repercussão jurídica aos seus atos interpretativos de modo a construir segurança jurídica e simplicidade na orientação dos atos de aplicação do direito tributário. Sem transparência não há democracia, nem estado de direito, nem segurança jurídica.
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ii PArADoXo DA LeGALiDADe No moDeLo ciViL LAW e o DiLemA Do AGeNTe K. Age de tal forma que os motivos de tuas ações possam ser divulgados aos quatro ventos. (Immanuel Kant)
A ruptura da alienação imposta pela delimitação do universo jurídico implica reconstrução da cópula estrutural entre o sistema legal e o sistema político, entre teoria e prática, em que mediante o recurso instrumental da transparência desvela-se a natureza do exercício do poder, seja atendendo aos interesses “de governo”, seja aos derradeiros interesses “de estado”. O senhor “K”, servidor público de carreira exemplar, sempre entendeu que a operação “X” não era passível de tributação pelo tributo “T”. A empresa “S” que realizou nos últimos cinco anos a operação “X”, apoiada por consultores bem-intencionados, também sempre entendeu que a operação “X” não era tributada pelo tributo “T”. Contudo, em face do sigilo fiscal, a empresa “S” não detinha acesso à informação sobre os critérios normativos do auditor “K” na aplicação do direito para as operações “X”, realizadas também por outras empresas do mesmo ramo. Após mudança de governo, foi nomeado novo dirigente da Fazenda, cargo de confiança do chefe do Executivo, comprometido em aumentar a arrecadação para o estado. Tal chefe do Executivo dá-se conta de que, mediante pequena alteração do entendimento sobre a mesma legislação tributária, pode passar a tributar as operações “X”, obtendo com essa mudança interpretativa o desejado incremento de recursos. Atendendo ao pedido do senhor dirigente da Fazenda, que também o nomeou, o senhor delegado determina que o agente “K” audite a empresa “S” sob suspeita de que não tem pago o tributo “T” em conformidade com a nova interpretação jurídica sobre as operações “X”. O auditor fiscal “K” tem convicção pessoal e profissional de que as operações “X” não são tributáveis pelo tributo “T”, contudo, reconhece que a tese divergente é também plausível e que numa interpretação sistemática da legislação tributária, as operações “X” poderiam sim ser tributadas pelo tributo “T”. Aqui se revela o paradoxo da legalidade instalado entre os precedentes históricos do processo narrativo do direito e a legalidade abstrata e difusa na moldura do sistema de civil law. Eis o dilema do agente fiscal: (i) se não lavrar o auto de infração para os últimos cinco anos, ocorrerá a decadência e poderá ficar sujeito a responsabilidade funcional por omissão na realização da receita; (ii) se lavrar o auto de infração, estará indo contra sua histórica coerência interpretativa sobre a não tributação das operações “X”, alterando a legalidade prática e frustrando a expectativa normativa da sociedade e da empresa “S” de não ser tributada nas operações “X”.
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iii mANiPuLAÇÃo DA moLDurA DA LeGALiDADe: ceNário De ocuLTAÇÃo Do SiGiLo fiScAL Os agentes fiscais brasileiros aplicam cada vez melhor um sistema tributário cada vez pior. (José Roberto Afonso)
É para atender a esse jogo de interesses que se instala no paradoxo da civil law e se concretiza no dilema do agente K. que se presta, funcionalmente, o vago e ambíguo conceito de “sigilo fiscal”. Mas a quem de fato serve o “sigilo fiscal”? Trata-se de conceito funcional: (i) o “sigilo fiscal” se presta a ocultar que o entendimento histórico da fiscalização foi no sentido de não tributar a operação “X”; (ii) o sigilo fiscal protege o servidor público “K” do constrangimento e da pressão social de justificar seu novo entendimento sem qualquer alteração institucional da legislação tributária; (iii) o sigilo fiscal das autuações dá mais importância e destaque à atuação dos tribunais administrativos paritários de 2ª instância delegatários da solução do caso; (iv) o sigilo fiscal possibilita que o dirigente da Fazenda atenda às demandas do chefe do Executivo; (v) o sigilo fiscal cria a possibilidade de nova fonte de receita tributária, sem a necessária submissão a nova lei autorizativa a ser criada pela Assembleia Legislativa; (vi) o sigilo fiscal permite, potencialmente, ao chefe do Executivo ampliar seus gastos para ganhar apoio popular para sua reeleição sem discutir fonte de custeio nem sistema tributário; (vii) o sigilo fiscal atende à empresa “S” que não sofre a publicidade negativa decorrente de uma autuação que entende injusta e que espera que seja julgada improcedente nos tribunais paritários de 2ª instância; (viii) o sigilo fiscal atende aos atuais gestores da empresa que não se veem responsabilizados nesse momento pelas decisões decorrentes dessa autuação, postergando os efeitos para seus sucessores; (ix) o sigilo fiscal atende aos sócios e acionistas que se beneficiam da não transparência pública da autuação, evitando o imediato impacto sobre a desvalorização social da empresa “S” ou do preço de suas ações em bolsa; enfim, (x) o sigilo fiscal exclui outros atores sociais (empresas congêneres, ONGs, academia e outros estados) da discussão sobre a mudança de critério na tributação das operações “X” e seus decorrentes efeitos no ambiente de negócios, na competitividade, na segurança jurídica e na carga tributária do “contribuinte de fato” que elegeu o chefe do Executivo.
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iV VALorizAÇÃo Do SerViDor PÚBLico e coNTroLe SociAL No ceNário DA TrANSPArÊNciA fiScAL A luz do sol é o mais poderoso de todos os desinfetantes. (Louis Brandeis)
Diante da inversão da lógica do sigilo fiscal, bem ao estilo de Kafka, outros são os efeitos institucionais da realização da transparência de todos os atos dos agentes da Administração Tributária. Teríamos, então, o seguinte cenário: (i) a transparência consolidaria social e juridicamente o entendimento histórico da fiscalização no sentido de não tributar a operação “X”, oferecendo certeza e segurança jurídica para o servidor público “K” e para a empresa “S”; (ii) a transparência, o conhecimento e o controle social sobre os atos de autuação do Fisco protegeriam o servidor público “K” da pressão de seus superiores hierárquicos, garantindo sustentação e apoio social à manutenção da sua coerência histórica e legal no sentido de não tributar a operação “X”, exigindo para alteração desse entendimento mudança institucional discutida publicamente sobre a nova proposta de interpretação da legislação tributária; (iii) a transparência das autuações evitaria o contencioso e reduziria a ação e necessidade do apelo excessivo aos tribunais administrativos paritários de 2ª instância, que ficariam resguardados para decidir sobre efetivas e relevantes divergências sobre a legislação tributária; (iv) a transparência resguarda a função do dirigente da Fazenda, impedindo que a interpretação da legislação seja manejada para atendimento aos caprichos e demandas políticas eleitorais do Executivo; (v ) a transparência impediria a criação de nova fonte de receita tributária sem a necessária lei e sem o respectivo processo democrático, fortalecendo o Poder Legislativo; (vi) a transparência exigiria que o Poder Executivo submetesse à sociedade e ao Legislativo a ponderação sobre a tributação da operação “X”, resgatando o tema fiscal nos debates para sua reeleição; (vii) a transparência fiscal atende à empresa “S”, visto que a ampla publicidade de uma autuação injusta deixaria o agente “K” sujeito ao crime de excesso de exação, bem como exporia socialmente a arbitrariedade do ato da administração tributária, evitando a autuação e tornando desnecessário o custo com o contencioso tributário e a prolongada espera por uma decisão administrativa imprevisível de 2ª instância; (viii) a transparência imediata da autuação permite a pronta responsabilização dos atuais gestores, diretores e sócios pelas decisões tomadas, incentivando uma governança corporativa socialmente responsável e aberta ao diálogo com a administração fiscal, sem heranças malditas para seus sucessores; (ix) a transparência fiscal atende aos sócios e acionistas que exercem seu direito de agir em tempo hábil de modo a evitar maiores prejuízos decorrentes da eventual autuação sobre a desvalorização social da empresa ou do preço de suas ações em bolsa; enfim, (x) a transparência inclui outros atores sociais (empresas congêneres, ONGs, academia e outros estados) na discussão sobre eventuais mudanças nos critérios da tributação das operações “X”, propiciando debate aberto e democrático sobre as repercussões fiscais na cadeia produtiva e na carga tributária suportada pelo cidadão e eleitor que, através da transparência, aprende que é também contribuinte de fato e de direito, conectando sistema tributário e sistema político. dez
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V eNfreNTANDo oS LimiTeS Do DireiTo: rumoS DA DemocrAciA fiScAL NA erA DA iNformAÇÃo Na sociedade em rede, o poder forte não é o da repressão e o das armas, mas o da comunicação. (Manuel Castells)
O direito não é varinha mágica. O projeto de sistema tributário instalado no texto constitucional, limitando o número de impostos e formalizando o pacto federativo, não impediu o aumento da carga tributária, o avanço da guerra fiscal ou o aumento da complexidade. Em 25 anos, das 74 emendas constitucionais, 33 foram usadas para criar ou aumentar tributos: criação do IPMF, depois convertida na CPMF, aumento da base de cálculo do PIS/ COFINS para receita bruta, autorização da progressividade para o IPTU, instituição da Contribuição de Iluminação Pública, novas hipóteses de incidência para Cide combustíveis, edição do PIS/COFINS importação, exigência do ICMS na importação de pessoa física, aumento da carga tributária nominal pela inauguração do PIS/COFINS não-cumulativo, constitucionalização do malsinado regime da substituição tributária para o ICMS e a oportuna desvinculação de arrecadação de impostos e contribuições sociais da União (DRU). Não precisamos de mais regras. O que falta é mais debate e consciência política: a carga tributária sobe porque os gastos públicos aumentam. Além disso, há que se romper a prática de o fisco servir aos interesses do chefe do Executivo, utilizando o sigilo fiscal como barreira estratégica para ocultar a promíscua relação entre privilégios fiscais e financiamento de campanhas políticas. Não basta arrecadar. É preciso orientar o foco no debate político sobre tributação, federalismo e tamanho do Estado. O direito pode formalizar o pacto federativo, mas não é suficiente para definir limites e contornos da federação. É preciso delimitar que serviços públicos queremos nas três esferas de poder e quanto estamos dispostos a pagar. É necessário saber o custo nacional da guerra fiscal entre União, Estados e Municípios. Dilemas fiscais e federativos não se resolvem em conversa de técnicos. São problemas da nossa frágil democracia, na qual o eleitor não se sente contribuinte nem é convidado a deliberar sobre assuntos de Estado. O mundo mudou. A Era da Informação oferece a tecnologia e o fluxo comunicacional que nos faltou antes. A Lei de Responsabilidade Fiscal iniciou esse trabalho, a Lei de Transparência e a Lei de Acesso consolidaram a possibilidade do efetivo exercício do poder orientado pela sociedade em rede. Falta empoderar o povo. O gigante acordou, parece ter achado o caminho das ruas, ouviram sua voz. Falta informá-lo e dar valor à sua deliberação.
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Vi LeGALiDADe coNcreTA, AumeNTo Do fLuXo De iNformAÇÃo, iGuALDADe e SeGurANÇA JurÍDicA
Se não sei como me comportar perante a lei, então, não sou livre. (John Rawls)
A legalidade não está na lei. É um processo histórico que se constrói no eixo paradigmático do tempo. A legalidade inspira-se na lei, mas se realiza no ato de aplicação do direito. Daí a importância do conhecimento público do processo narrativo do direito, no qual encontramos o motivo legal dos documentos de aplicação do direito tributário, motivação concretamente interpretada para todos os fatos geradores previstos na prática construída pela própria Administração Pública. Tal possibilidade decorre do incremento da transparência que acontece ao lado de profundas transformações sociopolíticas vividas pela introdução do novo paradigma da tecnologia de informação. Neste novo cenário, a internet possibilitou a ampliação e a transformação da capacidade das redes em organizar a ação social, a ação comunitária e também a ação que leva a uma mudança de percepção e valores sobre o exercício do poder. Na tradição do direito, a legalidade que conhecemos está ligada ao modelo de rede centralizada em que todos os sujeitos de direito se conectam ao mesmo centro para discutir sua legalidade individual, mas sem acesso, informação ou controle de como a legalidade é aplicada aos demais pontos da rede. Assim, o poder fica convenientemente concentrado nas mãos do gerenciador central da “legalidade” que pode distribuir a legalidade que quiser, “legalidade” para quem quiser ou mesmo sequer aplicar a lei aos pontos que lhe convier. Trata-se, pois, de relação de poder unilateral que implica relação de dominação da instituição centralizadora sobre outros indivíduos e outras instituições, mas tudo em nome da legalidade que serve ao poder, dominação e privilégios ocultos de grupos que se beneficiam da complexidade na realização da lei. Há necessidade, pois, para apreender a “verdadeira” legalidade, de se identificar a sedimentação dos critérios legais eleitos pelas autoridades competentes, na corrente histórica dos respectivos atos de concreção do direito, oferecendo segurança jurídica e isonomia pelo simples aumento do fluxo de informação: é esse o papel da “legalidade concreta” na Era da Informação.
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Vii ruPTurA DA LÓGicA DoS TrÊS PoDereS: coNTroLe SociAL, ciDADANiA fiScAL e GoVerNANÇA em reDe O conceito de transparência é, agora, o centro do debate político mundial. (Jeffrey Owens)
Quem vigia os vigilantes? Na sociedade de informação, redes flexíveis e distribuídas podem manter sua flexibilidade e, ao mesmo tempo, coordenar decisões e permitir o controle social da legalidade de modo mais eficiente que no paradigma de controle centralizado. A internet possibilitou a ampliação e a transformação da capacidade das redes em organizar a ação social, a ação comunitária e também a ação que leva à mudança de percepção e valores sobre o poder. É através desses novos sistemas de mobilização que se pode considerar uma teoria da democracia conectada às noções de “governança em rede” e “regulação responsiva” da administração tributária de modo a fornecer uma resposta republicana a dilemas atuais como planejamento tributário, guerra fiscal, desigualdade, corrupção e complexidade. Em contraposição a concepções de democracia em que os vigilantes dos vigilantes, em última análise, são sempre parte do Estado (corregedores). Aqui se propõe o exercício da cidadania fiscal pela sociedade em rede, mediante formas de responsabilização deliberativa e circular, permitindo que todos sejam capazes de responsabilizar a todos e cada organização possa ser responsabilizada por indivíduos que dela participam. A fórmula de Montesquieu que limitava a dominação pela separação clara entre três poderes públicos é insuficiente. A segurança jurídica torna-se nesse contexto questão pragmática: isto é, conecta diálogo entre diversos atores sociais fortemente marcado pela referência a textos legais – não se refere exclusivamente à relação entre um intérprete (como um juiz ou um administrador público) com um texto. O pressuposto para a constituição de tais círculos de deliberação, capazes de limitar o abuso de poder (desmontar alianças de grupos econômicos e políticos) é a transparência dos atos de concretização do direito. Além de ideal de democracia, as teorias sobre democracia, governança em rede e regulação responsiva conformam um “ideal de efetividade”: ações conduzidas por redes de atores governamentais e não governamentais podem ajudar a superar o déficit de força de concretização de normas jurídicas. O desafio atual é encontrar respostas regulatórias capazes de fortalecer instituições e, ao mesmo tempo, levar a sério novos atores, novas demandas e expectativas. Abusos de poder podem ser limitados de forma mais eficiente por uma pluralidade complexa de muitos poderes separados ou “nós semiautônomos de governança em rede”. Tais nós de governança pública, privada ou híbrida necessitam, por um lado, ter autonomia suficiente para não serem dominados por outros nós de governança e, por outro, precisam ter capacidade para pôr limites ao poder. O potencial transformador da educação fiscal e a sua conexão com a política reside no empoderamento da sociedade que deve ter direito de conhecer e discutir a concretização das normas pela administração fiscal. Transparência na aplicação das leis e clareza acerca do posicionamento de instituições é a chave para educação fiscal e para o exercício da cidadania, resgatando a relação entre tributação, política e direito. dez
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Viii eSTrATÉGiA De comBATe Ao PLANeJAmeNTo TriBuTário NA SocieDADe DA iNformAÇÃo A transparência e informação sobre o pagamento de tributos é forma estratégica para o controle social do planejamento tributário. (James Alm)
A ideia de “planejamento tributário” – seja para pagar menos ou cobrar mais tributo de forma lícita – encerra patente paradoxo institucional que se alimenta da incerteza que separa o lícito do ilícito, introduzindo insegurança jurídica no plano da aplicação do direito, falta de isonomia e ocultação de privilégios. Sob a perspectiva do contribuinte, o fisco não aceita que se usem formas lícitas apenas com o objetivo de pagar menos tributo; entende, nesses casos, que houve simulação e que a forma é ilícita, pois a única intenção da operação era pagar menos tributo. O fisco apenas aceita que a forma é lícita nos casos em que se paga menos tributo, mas não houve a intenção de pagar menos tributo. Logo, verifica-se que a licitude ou ilicitude está na intenção de pagar menos tributo: se reduzo o tributo com a intenção de reduzir tributo, o ato é ilícito; se reduzo o tributo sem a intenção de reduzir tributo, o ato é lícito. É estéril a batalha da doutrina em demarcar, cientificamente esse conceito que é produto da própria indeterminação da legislação e da impossibilidade da prática jurídica em produzir provas sobre a metafísica intenção de pessoas jurídicas. Por outro lado, verificamos a crescente prática do que denominamos “planejamento tributário ao contrário”, que denota a mesma atividade prática realizada pelo contribuinte, mas, agora, realizada pelo próprio fisco: é a administração pública explorando lacunas da legislação, interpretações específicas da jurisprudência ou conceitos indeterminados para cobrar mais tributo. O maniqueísmo entre (i) a defesa do estado liberal, dos princípios da livre-iniciativa, da ampla liberdade negocial e da tipicidade cerrada do fato gerador versus (ii) a defesa do estado social, da solidariedade e requalificação do fato gerador em sintonia com o propósito negocial, até hoje, tão-só fomentou a indústria do contencioso tributário, oferecendo munição jurídica para contribuinte e fisco aprofundarem suas divergências. Acredito que essas são deformações que exploram a zona de autarquia da legalidade que não se resolvem pela doutrina, nem pela interpretação em nome, seja do social, seja da liberdade negocial. A solução está em incrementar segurança jurídica pela revelação da legalidade concreta na prática do direito. A saída para coibir o planejamento tributário – seja por parte do fisco, seja por parte do contribuinte – é aumentar o fluxo de informação sobre a legalidade prática, através da transparência dos critérios legais que fundamentam os atos de lançamento, bem como dos dados de arrecadação das pessoas jurídicas. A existência de “Estado Social do Direito” pressupõe a existência de “Estado de Direito”, ou seja, respeito às regras e à interpretação institucional consolidada pelas autoridades administrativas. É o controle social, viabilizado pela transparência e simetria de informação sobre a aplicação da lei, na Era da Informação, que possibilita a inversão do paradigma do crime e do comando/ controle para o paradigma dos serviços da administração nesse novo movimento do empoderamento da sociedade rumo à regulação em rede.
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iX ALÉm DA ALieNAÇÃo: rePeNSANDo A reDiSTriBuiÇÃo De reNDAS e A TriBuTAÇÃo DAS PeSSoAS JurÍDicAS As teorias da tributação, que recomendam amplos sistemas, talvez ou nunca resultam em sistemas tributários do mundo real. (Vito Tanzi)
O esforço deste livro de dez capítulos que se encerra nestas dez conclusões foi demonstrar pela análise de casos concretos a condição de alienação que nós juristas vivenciamos (o autor, também) sob o manto autista da legalidade abstrata. Assim, procuramos desvelar e reconstruir conceitos como “Legalidade Concreta” (Capítulo 1), “Planejamento Tributário ao Contrário” (Capítulo 2), “Indústria do Contencioso Tributário Pernicioso” (Capítulo 3), “Maldição do Lançamento por Homologação” (Capítulo 4), “Princípio da Comodidade Fiscal” (Capítulo 5), “Ilusão e Ocultação Fiscal” (Capítulo 6) e “Responsabilidade Dispersiva” (Capítulo 7). No Capítulo 8, buscou-se oferecer uma “Profilaxia do Sistema” mediante ação regulatória positiva do “Índice de Transparência” que pretende exibir as deformidades da legalidade como estratégia para incrementar o diálogo, difundir boas práticas e sensibilizar o sistema político através das modernas noções de controle social e cidadania fiscal. No Capítulo 9, entre a lógica do realismo de Kafka e a foto “O grito no grito”, procurou-se uma perspectiva mais ampla para o problema: a cultura burocrática de privilégios advinda da estrutura de direito administrativo do “Patrimonialismo de Estado Português”. Dados sobre desigualdade de Stiglitz, Krugman e Piketty chamam a atenção para o aumento da concentração de renda e o ensejo da tributação sobre heranças e sobre grandes riquezas, em escala mundial. É consistente a percepção do avanço de um “capitalismo patrimonial” em que a elite dirigente da economia é ocupada não por indivíduos talentosos mas por dinastias familiares e normas sociais que perpetuam essa desigualdade histórica. Nesse plano abstrato, Vito Tanzi denuncia a formalização da desigualdade pela deformação da legalidade tributária mediante o exercício democrático (ou não) do lobbying que cria complexidade tributária: são as abelhas (honey bees) e os cupins tributários (fiscal termites) em ação. No plano concreto, merece registro a prática nacional da “indústria do contencioso pernicioso” que, no Brasil, corresponde a 11% do PIB, ao passo que nos Estados Unidos, segundo dados do Internal Revenue Service (IRS), é de aproximadamente 0,2%. Nesse cenário, a tentação de utilizar a tributação progressiva e a criação de tributos sobre a herança e a riqueza encontra os limites da democracia que encorajam lobbies, os limites da concretização do direito na distinção do lícito/ilícito e as dificuldades na realização das provas no abstrato processo de ação e criação de pessoas jurídicas mediante exercício do planejamento tributário. A possibilidade de o jurídico processar gêneros próximos e diferenças específicas inviabiliza a existência prática da realização de sistemas tributários ao estilo Robin Hood. Falham as regras e os princípios de direito. Apostamos, pois, na solução da transparência e simplicidade que propicie o aumento da base tributária para que a “justiça” se faça pela melhor distribuição de oportunidades mediante alocação eficiente de recursos públicos na educação, saúde e informação do cidadão-contribuinte. Há limites para utilizarmos o direito e o sistema tributário para melhorar as condições de igualdade e distribuição de renda, mas podemos trabalhar para um sistema que ao menos não piore tal situação criando mais injustiça: a igualdade prática exige, também, legalidade concreta e prática no mundo real. dez
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X reformA TriBuTáriA PeLA TrANSPArÊNciA DoS AToS De iNTerPreTAÇÃo Do DireiTo A simplicidade é a maior das sofisticações. (Leonardo da Vinci)
A reforma do sistema tributário federal, estadual e municipal não admite fórmula única e acabada. A estrutura tributária resulta da acomodação, sempre imperfeita, entre os vários segmentos da sociedade e requer ajustes ao longo do tempo. É preciso, entretanto, que haja pleno conhecimento das “regras do jogo” mediante sua ampla disseminação. Não das regras estabelecidas na estática legislação tributária, mas das regras concretamente aplicadas no dia a dia. Daí a contínua preocupação do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Direito GV com o acesso à informação, a transparência e a modernização da administração tributária nacional. Aferições feitas pelo NEF apontam para grau muito modesto de transparência da atividade fiscal. A administração tributária omite-se até na divulgação de suas opiniões sobre como o contribuinte deve aplicar a legislação tributária, dessa forma aumentando os riscos tributários e o custo de fazer negócios. Isso impacta negativamente o empreendedorismo e a competitividade. A ideia central deste livro é incrementar diálogo produtivo entre academia, sociedade e administração tributária sobre temas como transparência tributária, cidadania fiscal, respeito ao contribuinte e acesso à informação: caminhos para uma fiscalidade mais justa e republicana. Aproveitam-se, assim, os bons ventos da globalização, acelerada pela Era da Informação. O maior desafio da justiça na tributação não é o direito e seus conceitos, abstratos e vagos, mas a difícil conexão entre direito e democracia. A obsessão pela transparência da administração tributária pode soar como crítica insistente, mas é fé mesmo. Fé na administração tributária como agente de transformação. O país não precisa tanto mudar leis, a Constituição ou realizar uma mágica reforma tributária. A melhor estratégia está na mudança de mentalidade dos operadores do direito, no incremento de efetivo controle social e na superação do paradigma do crime segundo o qual todo contribuinte é visto como sonegador. A tecnologia da informação permite hoje a criação de um federalismo cooperativo em rede que se iniciou com nosso pioneiro Sistema Público de Escrituração Digital – SPED. Espelho da realidade tributária que pode viabilizar o controle e diálogo entre tributos da União, Estados e Municípios, permitindo a realização concreta do princípio da não-cumulatividade aplicado simultaneamente a todas as bases tributáveis do consumo e circulação de bens. Além disso, é momento de repensar modelos do século passado que delegaram o dever de interpretar para o contribuinte. É hora de avançar sobre novas tecnologias em que a mera informação do fato gerador permite o oferecimento de uma guia nacional para o pagamento de todos os tributos incidentes de forma integrada. O amanhã chegou: representantes da sociedade civil, professores, advogados e, em especial, os servidores públicos que atuam nas três esferas do fisco nacional serão os grandes protagonistas das mudanças de que tanto precisamos para nos modernizarmos e nos tornarmos os melhores do mundo: sim, melhorar o Brasil. Nós podemos!
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