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Kafka Cap. 8 Flipbook PDF

Livro_Kafka_Cap_8_Profilaxia_Das_Deformidades_Do_Sistema_Tributário_Brasileiro


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proFilAxiA dAs deFormidAdes do sistemA tributário brAsileiro: iNSTiTuiÇÃo e coNSoLiDAÇÃo Do ÍNDice De TrANSPArÊNciA Do coNTeNcioSo TriBuTário – icAT Estudo de Caso: Pesquisas do NEF/DireitoGV e formação do ICAT Eminentes senhores da Academia:

Conferem‑me a honra de me convidar a oferecer à Academia um relatório sobre a minha pregressa vida de macaco. Não posso infelizmente corresponder ao convite nesse sentido. Quase 5 anos me separam da condição de símio; espaço de tempo que medido pelo calendário talvez seja breve, mas que é infindavelmente longo para atravessar a galope como eu o fiz, acompanhado em alguns trechos por pessoas excelentes, conselhos, aplauso e música orquestral, mas no fundo sozinho, pois, para insistir na imagem, todo acompanhamento se mantinha bem recuado diante da barreira. (...) E eu aprendi, senhores. Ah, aprende‑se o que é preciso que se aprenda; aprende‑se quando se quer uma saída; aprende‑se a qualquer custo. Fiscaliza‑se a si mesmo com o chicote; à menor resistência flagela‑se a própria carne. A natureza do macaco escapou de mim frenética, dando cambalhotas, de tal modo que com isso meu primeiro professor quase se tornou ele próprio um símio, teve de renunciar às aulas e precisou ser internado num sanatório. Felizmente saiu logo de lá. (...) Seja como for, no conjunto eu alcanço o que queria alcançar. Não se diga que o esforço não valeu a pena. No mais não quero nenhum julgamento dos homens, quero apenas difundir conhecimentos; faço tão somente um relatório; também aos senhores, eminentes membros da Academia, só apresentei um relatório. (“Um relatório para a academia”, de Franz Kafka, 1917) 491

A exposição das deformidades do Direito 1. FUNDAMENTOS DA FORMAÇÃO DO ÍNDICE DE TRANSPARÊNCIA DO Tributário brasileiro nos permitiu identificar CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO os principais problemas concretos a serem TRIBUTÁRIO – ICAT enfrentados. Este diagnóstico deve ser aliado à compreensão de que a nova posição socioeconômica que o Brasil logrou alcançar exigirá, nos próximos anos, a realização de grandes projetos, cuja arquitetura financeira dependerá, crescentemente, da previsibilidade e da confiança na aplicação do direito tributário. São desafios que demandam novas respostas do direito tributário. Depois de cinco anos de pesquisas, que incluíram pesquisas empíricas, estudos sobre a experiência internacional e análise crítica de inúmeros relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico ou Econômico (OCDE), o Núcleo de Estudos Fiscais – NEF identificou que a saída mais eficiente e estratégica para o País envolve a construção de confiança entre fisco e contribuinte através de transparência fiscal. Nesse sentido, com o escopo de intervir em instituições de modo a impulsionar uma competição saudável por cada vez mais transparência fiscal, o NEF criou o Índice de Transparência do Contencioso Administrativo Tributário dos Estados Brasileiros (ICAT). O ICAT foi elaborado com o objetivo de medir e incentivar a transparência das instâncias administrativas que julgam processos tributários nos estados e municípios.1 A construção do ICAT ocorreu a partir de um longo processo de investigação, o qual teve início em 2012 e esteve, inicialmente, ligado ao projeto Índice de Transparência e Cidadania Fiscal (ITCF). Buscaremos, neste capítulo, mostrar os resultados e, em seguida, expor os principais pontos do processo de pesquisa que levou à criação do ICAT. O primeiro desafio do ICAT foi definir que critérios deveriam ser utilizados para a mensuração e incentivo da transparência, isto é, precisávamos determinar as informações especialmente relevantes e que devem ser divulgadas para beneficiar fisco, contribuinte e, sobretudo, para melhorar o diálogo entre ambos.

1. Disponível em:http://direitogv.fgv.br/sites/direitogv.fgv.br/files/arquivos/anexos/ icat_versao_1_14_05_2013.pdf. Acesso em 24.04.2014.

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Assim, estudamos casos da experiência internacional, realizamos pesquisas empíricas sobre os gargalos do contencioso tributário no Brasil e estabelecemos um intenso diálogo com os principais atores envolvidos no contencioso administrativo tributário. Ora, para que saiba como suas ações futuras serão julgadas pelo fisco, não basta que o contribuinte conheça a lei abstrata, é preciso que ele conheça como o fisco a interpreta. As pesquisas realizadas pelo NEF mostram que os critérios que agentes da Administração Fiscal utilizam para a interpretação das normas são extremamente contingentes e que este é um dos principais motivos do excesso de contencioso fiscal no Brasil. Percebemos que a publicação de documentos fiscais, como decisões de 2.a instância, decisões de 1.a instância e ampla transparência dos critérios legais utilizados nos autos de infração, torna possível apontar com precisão situações de maior contingência e, assim, propor soluções para o problema da litigiosidade no Brasil. Insistimos também na importância de realizar ações preventivas. Contribuintes não procurarão com tanta frequência o contencioso se informações, disponíveis para todos, sobre julgamentos administrativos tributários mostrarem que a grande maioria das decisões a favor do fisco é coerente com autos de infração lavrados corretamente. O potencial da transparência é maior do que imaginamos, pois legitimidade caminha lado a lado com a eficiência. Pesquisas empíricas2 mostram que quanto mais legítima aos olhos do cidadão for a tributação – e isso envolve necessariamente um incremento da transparência –, maior o nível de cumprimento voluntário de normas tributárias. Nesse sentido, a transparência fiscal é o caminho mais eficiente para o aumento da arrecadação.

2. ALM, James et al. Tax Morale and Tax Evasion in Latin America. (Working Paper 07-04). Georgia State University, 2007. Disponível em: http://www.researchgate.net/ publication/46455679_Tax_Morale_and_Tax_Evasion_in_Latin_America. Acesso em 24.04.2014.

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2. GRITANDO FOGO EM UM O ICAT busca verificar se os sites dos fisTEATRO LOTADO: DESAFIOS PARA cos estaduais disponibilizam informações de PUBLICAÇÃO DOS AUTOS DE importância fundamental para a superação de INFRAÇÃO E DAS DECISÕES DE 1.ª gargalos do contencioso, como autos de infraINSTÂNCIA ADMINISTRATIVA ção, decisões de 1.a e 2.a instância, resultados, andamento, pautas e estoque e tempo do processo. Assim, pretende-se estimular formas de regulação da qual participam diversos atores sociais que podem, por exemplo, utilizar táticas como o “naming and shaming” (nomear e envergonhar) para impulsionar uma competição saudável entre estados por mais transparência no contencioso administrativo. Mecanismos como o ICAT podem ser importantes para que possamos passar de uma administração baseada no controle por meio de regras (vimos que o excesso de regras pode gerar menos controle) para uma gestão que leva em conta procedimentos e é orientada pelo controle institucional e social a posteriori. Temos insistido, por exemplo, na importância do amplo acesso aos documentos fiscais de aplicação do direito. A disponibilização destes documentos — além de ajudar a prevenir a ocorrência de obtenção de vantagens indevidas — é o melhor caminho para lidar com o problema da falta de uniformidade de critérios de interpretação da lei tributária pelo Fisco. Este é, de fato, um grande obstáculo atual à eficiência da Administração Fiscal brasileira. Um debate público informado sobre as diferentes interpretações dos auditores fiscais sobre normas tributárias é a maneira mais democrática de chegar a padrões de interpretação razoavelmente uniformes. A Lei de Acesso à Informação (LAI) fornece as condições de possibilidade para isso: mesmo se acatarmos a ideia de que há dados nos autos de infração e nas decisões de 1.a instância que são sigilosos (como nome da empresa ou valor da autuação), a LAI exige que a Administração Fiscal disponibilize as partes não sigilosas do documento. Ocorre que, ainda assim, muitos empresários e administradores públicos se opõem à publicização de tais documentos. O principal argumento em defesa do sigilo é o de que disponibilizar estes documentos poderia provocar percepções equivocadas no mercado acerca da situação das empresas. Isso decorreria do fato de que, na grande maioria das vezes, autos de infração e as decisões de 1.a instância ainda são atos precários que no final do processo administrativo, após decisão de 2.a instância, acabam por resultar no pagamento de um valor muito menor do que aquele inicialmente exigido (sem contar os inúmeros casos em que tais atos são mal elaborados e, por isso,

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cancelados). A publicidade provocaria, então, um pânico desnecessário. Lembrando a célebre frase de Oliver Wendel Holmes, seria como “gritar fogo em um teatro lotado”.3 Joseph Stiglitz (prêmio Nobel de economia) resolve o dilema anunciado por Holmes de um modo interessante. Segundo ele, é plausível dizer que gritar “fogo” em um teatro pode gerar pânico e, portanto, grandes prejuízos. Contudo, isso não implica a constatação de que não se deve avisar as pessoas de que há fogo, para que possam evacuar ordenadamente o lugar. Em outras palavras, em vez de questionar “devemos disponibilizar autos de infração e decisões de 1.a instância?”, a Administração Pública brasileira deve passar a perguntar “como podemos disponibilizar essas informações?”.4 Estamos, na verdade, diante de um problema de fluxo de informações. O esforço da Administração Pública em manter o segredo acaba por gerar em algumas ocasiões o “vazamento” de informações escassas (por isso, valiosas) e, outras vezes, a exposição momentânea de grande quantidade de dados. É este fluxo instável que causa pânico e rupturas drásticas. Procedimentos democráticos geram um fluxo contínuo de informações (que, por serem públicas, perdem o “valor de troca”) o qual permite a compreensão contextual dos dados por parte dos cidadãos. Se as pessoas tiverem sempre acesso aos autos de infração e às decisões de 1.a instância (ou, ao menos, à parte não sigilosa de seu conteúdo) compreenderão, paulatinamente, que o seu valor frequentemente não corresponde ao montante a ser efetivamente pago e, também, poderão exigir mais zelo em sua elaboração.5 Diz-se frequentemente que hoje, no Brasil, os cidadãos não confiam nas instituições públicas. O primeiro passo para a mudança tem que ser dado pelo Estado. A Administração Pública tem de confiar nos cidadãos e em processos democráticos. Cidadãos podem sopesar evidências e tomar boas decisões, para isso precisam apenas ter acesso às informações necessárias, tal como manda a LAI.6

3. Ver Eurico Marcos Diniz de Santi e Mariana Pimentel Fischer Pacheco, Sigilo fiscal: crônica de uma morte anunciada. Disponível em: Conjur, 2013.