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Kafka Cap2 Flipbook PDF

Livro_Kafka_Cap_2_Planejamento_Tributário_Ao_Contrário_(Praticado_Pelo_Fisco)


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PlAnejAmento tributário Ao contrário (prAticAdo pelo Fisco): FlexibilizAção dA leGAlidAde com o único objetivo de ArrecAdAr mAis Estudo de caso:

A praça é nossa! Desrespeito à legalidade concreta instituiconalmente comunicada ao contribuinte pelos Tribunais Administrativos Era de manhã bem cedo, as ruas limpas e vazias, eu ia para a estação ferroviária. Quando confrontei um relógio de torre com o meu relógio, vi que já era muito mais tarde do que havia acreditado, precisava me apressar bastante; o susto dessa descoberta fez‑me ficar inseguro no caminho, eu ainda não conhecia bem aquela cidade, felizmente havia um guarda por perto, corri até ele e perguntei-lhe sem fôlego pelo caminho. Ele sorriu e disse: “De mim você quer saber o caminho?” “Sim”, eu disse, “uma vez que eu mesmo não posso encontrá‑lo”. “Desista, desista”, disse ele, e virou‑se com um grande ímpeto, como as pessoas que querem estar a sós com o seu riso. (“Desista!” de Franz Kafka, 1922)

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1. “DESISTA!” POIS MINHA AUTORIDADE Como veremos abaixo, denominamos E MINHAS DECISÕES NÃO ESTÃO AQUI “planejamento tributário ao contrário” a PARA ORIENTAR A SUA CONDUTA: mesma atividade prática comumente realiSOBRE O CONCEITO DE “PLANEJAMENTO zada pelo contribuinte, mas, agora, realizada TRIBUTÁRIO” REALIZADO PELO pelo próprio Fisco. Ou seja, se o contribuinte CONTRIBUINTE E O “PLANEJAMENTO explora lacunas da legislação, interpretações TRIBUTÁRIO AO CONTRÁRIO” PRATICADO específicas da jurisprudência ou conceitos inPELO FISCO determinados para pagar menos tributo com a intenção de pagar menos tributo, o Fisco lavra auto de infração alegando que houve abuso de formas jurídicas para pagar menos tributo. Assim, mutatis mutandis, quando é o próprio Fisco que explora lacunas da legislação, interpretações específicas da jurisprudência ou conceitos indeterminados para cobrar mais tributo sem qualquer alteração legislativa institucional, com a intenção de cobrar mais tributo e, por consequência, arrecadar mais, é o que chamamos de “planejamento tributário ao contrário”.1 Deveras, temos assistido à mutação semântica dos valores em torno da expressão “planejamento tributário” que acabou ganhando nas duas últimas décadas evidente conotação negativa. Neste sentido, é ilustrativa a recente entrevista do Secretário da Receita Federal ao jornal O Estado de S. Paulo,2 afirmando o compromisso de atacar sistematicamente o “Planejamento Tributário” como estratégia da fiscalização federal para manter os recordes de arrecadação que vem alcançando sistematicamente no últimos anos. Ou 1. O IBPT – Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário – fundado pelo tributarista Gilberto Amaral que foi pioneiro nesse estilo de pesquisa empírica do direito. As pesquisas do Instituto são sempre disponibilizadas em sua página da internet: https://www.ibpt.org.br/ 2. Jornal O Estado de S. Paulo, 31.12.2013. A Receita Federal vai intensificar, em 2014, a fiscalização sobre as operações de planejamento tributário das empresas. A informação foi dada pelo secretário da Receita Federal, Carlos Alberto Barreto, ele afirma que o foco será no que a Receita classifica de planejamento tributário agressivo: economia tributária no limite do entendimento da lei. “O contribuinte arrisca e pode construir uma situação para tentar não ser alcançado pela norma tributária. Ele constrói a forma jurídica, às vezes sem um propósito negocial efetivo”, explica Alberto Barreto. O secretário da Receita Fedral disse também que haverá novidades para as empresas em 2014. Agora, as questões relacionadas à interpretação da legislação serão resolvidas de forma centralizada, em Brasília, e valerá para toda a Receita. Antes o trabalho ficava a cargo das regiões fiscais. Além disso, o Fisco também prepara uma revisão dos pareceres normativos editados até meados dos anos 1990.

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seja, tudo indica que a tendência dos próximos anos seja aumentar, ainda mais, a pressão da fiscalização para garantir o aumento de arrecadação, avançando sobre a zona cinzenta do planejamento tributário que atua, por definição, na tênue fronteira entre o lícito e o aparente ilícito. Ou seja, sem a possibilidade política de criar, por lei, novos tributos, o Estado aproveita as mesmas brechas legais que dão margem ao contribuinte para pagar menos tributos, para exigir esses mesmo tributos, agora, em nome da mesma lei. Ocorre que a definição de “planejamento tributário” – pagar menos tributo de forma lícita – encerra patente paradoxo institucional. Sob a perspectiva do contribuinte, o Fisco não aceita que se usem formas lícitas apenas com o objetivo de pagar menos tributo; entende, nesses casos, que houve simulação e que a forma é ilícita, pois a única intenção da operação era pagar menos tributo. O fisco apenas aceita que a forma é lícita nos casos em que se paga menos tributo, mas não houve a intenção de pagar menos tributo. Logo, verifica-se que a licitude ou ilicitude está na intenção de pagar menos tributo: se reduzo o tributo com a intenção de reduzir tributo, o ato é ilícito; se reduzo o tributo sem a intenção de reduzir tributo, o ato é lícito. É em razão disso que assistimos à estéril batalha da doutrina em demarcar, “cientificamente”, o conceito de “planejamento tributário” que, por definição é indefinível, pois é produto da própria indeterminação da legislação e da impossibilidade da prática jurídica em produzir provas sobre a metafísica “substancial intenção” do agente: nesse esforço o único dado objetivo é o gênero próximo de que houve efetiva redução da carga tributária. Mas e daí? É a própria legislação que o Estado cria e mantém que propicia a formação dessas quimeras legais: empresas veículo, ágio interno, possibilidades duvidosas no regime de apuração do IRPJ, empresas que se cindem para gozar das vantagens do regime do lucro presumido e pessoas físicas que constituem jurídicas apenas para pagar menos imposto são tão somente algumas das criações do direito positivo. Ora, se não há lei (que sequer seria plausível) que regule o fato da intenção de menos pagar tributo como ilícito e, além disso, não é possível a prova de intenções ou o encontro da verdade real, não há possível legalidade e, por decorrência, nem possibilidade do controle dos respectivos atos de aplicação da lei de uma hipotética “norma geral antielisiva”. Acredito que essas são deformações e patologias da legalidade que não se resolvem pela doutrina, nem pela interpretação em nome, seja do social, seja da liberdade negocial. O que assistimos, destarte, é ao resultado agonizante que decorre da omissão de o Estado-legislador exercer seu dever de atualização, sistema-

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tização, consolidação (que segundo o CTN deveria ser anual)3 da legislação tributária e transparência da legalidade concreta, propondo soluções institucionais para tais problemas concretos, em vez de aproveitar-se, com astúcia, para arrecadar sobre áreas em que a legalidade é precária. Vale aqui a advertência de Saramago, no livro Objecto quase: “Em certos casos, a mínima contemporização é crime”. Não há bem ou mal, apenas incerteza. O planejamento tributário decorre de uma situação perversa: o contribuinte foi empurrado para enfrentar o custo Brasil, caindo na ilegalidade (via informalidade), acomodando-se à legalidade (assalariados que pagam tributos na fonte) ou combatendo a legalidade com as próprias armas da legalidade (contribuintes que têm recursos para pagar esses custos de adequação). O resultado, portanto, é que a incerteza, combinada com o aumento da carga tributária empurram o contribuinte para o planejamento e fomenta o que chamamos a indústria do contencioso tributário. Com efeito, na última década, assistimos 1.1. Parâmetros do enfoque ao combate ideológico e teórico de duas confuncionalista do direito, moralismo cepções sobre o planejamento tributário, reprefiscal, nó sistêmico e fundamentos sentadas por renomados juristas. Em especial, do planejamento tributário ao poderíamos citar a polarização entre Alberto contrário: a existência de “Estado Xavier e Marco Aurélio Greco, respectivamente: Social do Direito” pressupõe a o primeiro (Xavier), em defesa do Estado Libeexistência de “Estado de Direito”, ral, dos princípios da livre-iniciativa, da ampla ou seja, respeito às regras e sua liberdade negocial e da tipicidade cerrada do interpretação institucional fato gerador; o segundo (Greco), em defesa do Estado Social, da solidariedade e da capacidade contributiva (positiva e negativa) como valores constitucionais, oferecendo novas alternativas à “teoria do fato gerador” e propondo a requalificação do fato em sintonia com o propósito negocial (“business purpose”). Não pretendemos a seguir atacar ou defender nenhuma dessas concepções. O objetivo desta análise é reconstruir a relevância da legalidade concreta na prática do direito e demonstrar como a ausência de critérios legais e interpretativos claros causa graves instabilidades institucionais. 3

3. “Art. 212. Os Poderes Executivos federal, estaduais e municipais expedirão, por decreto, dentro de 90 (noventa) dias da entrada em vigor desta Lei, a consolidação, em texto único, da legislação vigente, relativa a cada um dos tributos, repetindo-se esta providência até o dia 31 de janeiro de cada ano.”

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Ideologias podem mudar a forma de produção das leis ou informar o redesenho de políticas públicas. Diferentemente do que sugere o Fisco no “Estudo de Caso” deste Capítulo,4 sob a orientação de Marco Aurélio Greco, Norberto Bobbio5 propõe um enfoque funcionalista do direito que, baseado na Sociologia, pretende redesenhar os critérios para a produção de normas jurídicas (e não simplesmente mudar a interpretação das já existentes como pretende, em muitos casos, a fiscalização), substituindo sanções negativas por sanções positivas, premiais ou promocionais que estimulem e provoquem o agente a agir de acordo com dados diretivos, no lugar de simplesmente punir como na estrutura da norma secundária de Kelsen. Portanto, o modelo funcional do direito proposto por Bobbio não pode ser utilizado para justificar nova maneira de interpretar o direito, de modo a apreender o verdadeiro fim do negócio jurídico, levando em conta sua intenção ou função.6 Segundo esse autor:

4. Encontramos, por exemplo, na análise de específico Auto de Infração do PIS/ Cofins, lavrado por auditor do Fisco federal, exemplo dessa aderência expressa, dessa visão, sustentada na obra de Marco Aurélio Greco em sua obra Planejamento tributário: “advém que a interpretação e a aplicação do ordenamento jurídico supõe a conjugação entre os valores do Estado de Direito (liberdade, legalidade e proteção à propriedade) com os inerentes ao Estado Social (igualdade, art. 5.º, caput, solidariedade – art. 3.º, I e justiça – art. 3.º I, todos da CF/1988)”. Essa é também a preocupação de vários outros países, como a França, por exemplo, que busca o “realismo fiscal”, ou a Itália que busca reprimir as práticas que inibam a capacidade contributiva. Daí a necessidade apontada por Norberto Bobbio na sua obra Dalla strutura ala funzione, que aponta a necessidade de a doutrina jurídica passar a pensar além da visão estrutural do Direito para a funcional, onde se percebe o sentido garantidor da primeira e o modificador da segunda. 97. A partir daí, podemos dizer que apesar de o Contribuinte ter o direito de organizar sua vida, desde que não o faça fora dos limites da lei e não o contamine com patologias (simulação, fraude e abuso) que agridam o ordenamento jurídico, não é possível pensar no exercício desse direito de uma forma absoluta. Ou seja, deve pensar em exercê-lo de uma forma harmônica e solidária com o convívio em sociedade. 5. BOBBIO, Norberto. Hacia una teoria funcional del derecho. In: Derecho, filosofia e lenguage, Buenos Aires: Astrea, 1976. p. 9-30. 6. Foi no livro Reason, Law and Justice, de 1960, publicado nos Estados Unidos, que o catedrático de Turín iniciou seu interesse pela Teoria Funcional, escrevendo o artigo The Promotion of Action in The Modern State, criticando as técnicas jurídicas de repressão do cidadão e propondo novas técnicas de regulação de conduta que promovessem sanções positivas, prêmios e incentivos.

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O Estado pode limitar a esfera do deixar-fazer de duas maneiras diferentes: obrigando a fazer (ou não fazer) ações que de outro modo seriam facultativas, e este é o método da restrição coativa da liberdade de atuar, ou bem estimulando o fazer (ou não fazer) ações que, apesar disto, continuam sendo facultativas, e este é o método em que se manifesta a função promotora. O fenômeno do direito promotor revela o passo do Estado que, quando intervém na esfera econômica, se limita a proteger esta ou aquela atividade produtiva, o Estado que se propõe inclusive a dirigir a atividade econômica de um país em seu conjunto para este ou aquele objetivo. (...) Entendo por “incentivos” aquelas medidas que servem para facilitar o exercício de uma atividade econômica determinada; por “prêmios”, por outro lado, entendo aquelas medidas que se propõem a dar uma satisfação àqueles que hão cumprido uma determinada atividade.

Não há qualquer sanção positiva, prêmio ou incentivo em todo esse aparato autoritário e repressivo ao planejamento tributário que se formou na última década: apenas mais sanções negativas, decorrentes de fatos que, não obstante em conformidade com a lei, são requalificados, oportunamente, e punidos por multas de até 150% (federais) – unicamente com fundamento na subjetividade da função, da intenção ou do fim atribuído ao negócio jurídico. Ocorre que na visão de Norberto Bobbio, a troca da concepção de “Estado Liberal” para “Estado Social” informa uma nova orientação para formulação de políticas públicas que incentivem a produção e aplicação de novas normas jurídicas finalísticas; contudo, não autoriza nem pode informar a radical alteração da interpretação de regras estruturadas e produzidas em contextos históricos completamente diversos. Klaus Tipke, a seu turno, adverte que os tributos são necessários para a construção e manutenção do Estado, seja ele um Estado Social ou um Estado Liberal.7 Mas isso não altera a dinâmica de funcionamento do sistema jurídico de um Estado Democrático de Direito. Independentemente de um Estado Social ou Liberal, a forma de interpretação e aplicação das normas não muda! O que muda são os valores norteadores da concepção e redação dos textos legislativos.

7. TIPKE, Klaus. Moral tributária do estado e dos contribuintes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,, 2012. p. 13.

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1.2. Moralismo Fiscal e o Nó Sistêmico: (i) o Fisco alega matéria constitucional como fundamento das autuações; (ii) o contribuinte não pode alegar inconstitucionalidade em defesa administrativa e (iii) os órgãos julgadores administrativos (DRJ e CARF) não possuem competência para julgar matéria constitucional

O fato de o Preâmbulo da Constituição Federal do Brasil de 1988 (“CF/1988”) instituir Estado Democrático Social de Direito (ou a mera referência no art. 1.º), sob a divina “proteção de DEUS”, não implica juridicamente a existência jurídica de “DEUS”, tampouco autoriza a mudar radicalmente a interpretação do direito: informa apenas valores que, assim como “a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”, também inscritos no mesmo parágrafo, devem pautar a produção normativa e o desenho institucional do nosso País.8 Substituir a certeza e a racionalidade das leis por esses “valores altamente vagos e abstratos” ou em nome do “interesse público”, por exemplo, é o que afeta a liberdade, implanta a insegurança, a incerteza e corrompe o desenvolvimento, gerando desigualdade e injustiça. É tal falta de critérios normativos, sim, que dá espaço para essa espécie de MORALISMO FISCAL defendida pelo Fisco, em que o bem ou o mal se personificam nas figuras inverossímeis do bom e do mau contribuinte. Autor agraciado com dois Prêmios Jabutis, Dimitri Dimoulis9 explica que as abordagens MORALISTAS do direito sobrevalorizam os métodos de interpretação. Primeiro, ampliando os poderes decisórios do aplicador e permitindo que o julgador avalie comparativamente direitos e princípios em conflito e decida qual possui o maior peso e que, portanto, deve prevalecer no caso concreto. Segundo, restringindo a liberdade de decisão do julgador quando falta clareza-concretude normativa. Alega-se que, mesmo em tais casos, os métodos de interpretação apontariam sempre a melhor solução, devendo ser aplicado, de preferência, o método de interpretação teleológica, analisando a função social de cada instituto, assim como empregando critérios substanciais relacionados à justiça/equidade da decisão. Dimoulis denomina tal posição MORALISMO JURÍDICO e SEUS DEFENSORES DE MORALISTAS. Assim, já não importa o fato gerador previsto em lei, mas, sim, a intenção negocial, isto é, se houve verdadeiro propósito negocial na operação

8. SANTI, E. M. D. de. Poder da violência simbólica e o “Planejamento tributário ao contrário”. In: ADEODATO, J. M.; BITTAR, E. C. B. (org.). Filosofia e teoria geral do direito: Homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Junior por seu septuagésimo aniversário. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.364. 9. DIMOULIS, Dimitri. A relevância prática do positivismo jurídico. Revista Brasileira de Estudos Políticos, 2011, n. 102, p. 215-253.

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que permitiu a redução da carga tributária. Instaura-se um perigoso espaço em que exigir bilhões de reais em tributos resume-se a questão de boa-fé. Ou má-fé? Mas como saber? Ilustrando esse problema, no “Estudo de Caso” dos autos de IPI e PIS/ Cofins lavrados em face da EMPRESA K, o Fisco utiliza diversos adjetivos e princípios constitucionais para requalificar a conduta da EMPRESA K. No Auto de PIS/Cofins, por exemplo, apoia-se exclusivamente em princípios constitucionais como isonomia tributária, capacidade contributiva, solidariedade social e livre concorrência, sem citar a violação de qualquer dispositivo legal, e insistindo que o abuso consistiria na economia tributária decorrente das operações realizadas pela EMPRESA K: Por todo o exposto no caso em concreto desse lançamento de ofício, o Contribuinte exerceu de forma abusiva seu direito de auto-organizar-se, visando reduzir artificialmente as bases de cálculo do IPI, da COFINS e do PIS, o que gerou uma série de efeitos nefastos, entre eles: o de ferir a isonomia tributária, os princípios constitucionais da capacidade contributiva, o da solidariedade social, o direito econômico à concorrência justa, entre outros.

Tal conduta do Fisco (moralismo fiscal) cria o que podemos chamar de “nó sistêmico”: (i) a Administração Tributária alega matéria constitucional como fundamento da lavratura dos Autos de Infração; (ii) o contribuinte não pode, na defesa administrativa, aduzir matéria constitucional; e (iii) os órgãos julgadores administrativos (DRJ e CARF10) não possuem competência para julgar matéria constitucional. Não é possível o desenvolvimento de um 1.3. Ausência de “Estado Estado Democrático de Direito, seja de orientaDemocrático de Direito” – Liberal ou ção Social ou Liberal, sem que os cidadãos saiSocial – em Matéria Tributária: se bam como agir perante as normas. Tampouco não sei como me comportar perante pode haver abuso quando não sabemos qual é a lei, então não sou livre o direito aplicável. Estado de Direito é precondição para a existência de um Estado Democrático, seja Social ou Liberal. Ocorre que, na prática, não repousamos em 10. Em atenção ao pedido de acesso à informação Protocolo 16853.000571/2013-76, o Ministério da Fazenda informou que o CARF restringe-se a julgar as matérias que constam do seu Regimento Interno (Portaria 256/2009) em que não existe previsão de apreciação de matéria constitucional. Além disso, a Súmula 2 prevê que o CARF não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária. Também estão nessa linha os seguintes julgados: Acórdão 101-94876, de

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um efetivo Estado de Direito. Não basta dizer que todos são iguais perante a lei: para que essa regra se realize, é essencial termos contraprestação e informação sobre todos os atos administrativos de aplicação da lei. Afinal, são esses atos de concreção do direito que informam à sociedade a legalidade aplicada pela Administração Pública. O fato é que, no Brasil, ao menos em relação ao sistema tributário, não há Estado de Direito. Embora existam numerosas normas tributárias (legalidade abstrata), não há pleno conhecimento das “regras do jogo” (legalidade concreta). É preciso conhecer não apenas as regras estabelecidas na estática legislação, mas também aquelas concreta e dinamicamente aplicadas no dia a dia pela Administração Tributária.11 É no exercício da legalidade concreta que detectamos problemas no uso de expressões como “planejamento tributário abusivo” e “propósito negocial”. A questão não está apenas na vagueza das expressões, mas também no seu uso, pelo Fisco, sem qualquer uniformidade. O pressuposto de que a legalidade não está na lei, mas na qualificação concreta do fato, é excelente instrumento fomentador do abuso de direito e do desvio de finalidade na aplicação da lei: se não há lei anterior, não há legalidade, não há previsibilidade, não há segurança jurídica, não há direito. Ainda mais em um sistema marcado pela falta de transparência, litigiosidade perniciosa, pela incoerência institucional, instabilidade interpretativa e falta de vinculação a precedentes. Pode-se construir qualquer legalidade concreta pela oportuna (re)qualificação do fato! Ademais, para que exista legalidade não basta lei, conforme exige o art. 3.º do CTN. É também necessária a possibilidade de vinculação do ato de lançamento. E a vinculação do ato administrativo depende da lei e da prova: se não há lei que regule o fato da intenção de pagar tributo como ilícito e, além disso, não é possível a prova de intenções, não é possível vincular nem controlar o ato de lançamento.

25.02.2005 Acórdão 103-21568, de 18.03.2004, Acórdão 105-14586, de 11.08.2004, Acórdão 108-06035, de 14.03.2000, Acórdão 102-46146, de 15.10.2003, Acórdão 203-09298, de 05.11.2003, Acórdão 201-77691, de 16.06.2004, Acórdão 202-15674, de 06.07.2004, Acórdão 201-78180, de 27.01.2005, Acórdão 204-00115, de 17.05.2005. 11. SANTI, Eurico Marcos Diniz de; COELHO, Isaias. Contribuinte não pode ser visto como potencial criminoso. Disponível em: